teologia para leigos

14 de novembro de 2011

OS BENS ESSENCIAIS (ÁGUA, SOLO, ETC.) SÃO COMERCIÁVEIS?

Há realidades sagradas: o ar, a água, a luz, «o pão de cada dia» para todos, um tecto, a instrução, um ambiente harmonioso, a informação, a dignidade, a liberdade democrática, a fruição, a liberdade religiosa, a sexualidade, a solidariedade, a responsabilidade, a posse universal do solo – são realidades «cavalgadas» por Deus, são de Deus, são bens universais tal como Deus é universal. Há que enxotar, delas, Mamon para longe… «Não é possível montar os dois cavalos ao mesmo tempo» [Mt 6:24; Lc 16:13]

Os Mercados Financeiros têm de ser sujeitados, pela força, a políticas justas, e não o contrário... «À força», porque entre ambos «há um grande abismo» [Lc 16:26], entre ambos existem fetiches insuspeitadamente fortes – ex.: «o mercado requer uma boa medida de violência exterior ao seu âmbito para que estabeleça e mantenha as condições do seu funcionamento».

Mas Jesus disse: ‘O Sábado foi feito para o Homem’ e não o contrário… [Mc 2:27]. «O Sábado» - Jesus tinha uma noção sistémica muito clara (e nunca somente psicologizante, cordial ou egotista) do Reino.



trigo nos EUA



O «capital» é o Real das nossas vidas
A irracionalidade global do capitalismo



milho em África
 

Eis o que devemos responder aos que rejeitam qualquer tentativa de pôr em questão os fundamentos da ordem democrático-liberal capitalista considerando que essas tentativas são perigosamente utópicas: é com as consequências dessa mesma ordem que nos confrontamos na crise actual. Embora o liberalismo se apresente como o anti-utopismo encarnado, e o triunfo do neoliberalismo como sinal de que deixámos para trás os projectos utópicos responsáveis pelos horrores totalitários do século XX, torna-se hoje claro que a verdadeira época utópica foi a feliz época clintoniana de 90, com a sua crença em que atingiríamos o «fim da História» e em que a humanidade descobriria, enfim, a fórmula óptima da ordem económica e social.

Mas a experiência mostra-nos que o mercado não é um mecanismo benigno que funciona melhor quando o abandonamos aos seus próprios automatismos: o mercado requer uma boa medida de violência exterior ao seu âmbito para que estabeleça e mantenha as condições do seu funcionamento.

A derrocada financeira em curso demonstra como é difícil desbravar o espesso emaranhado das premissas utópicas que determinam os nossos actos. Como Alain Badiou sucintamente afirma:

«O cidadão comum terá de «compreender» que é completamente impossível «tapar o buraco» da segurança social, mas que é preciso colmatar sem olhar a despesas o «buraco» financeiro de biliões que ameaça os bancos? Teremos de aprovar ‘com um ar grave e sério’ que ninguém pense na possibilidade de nacionalizar uma fábrica que a concorrência pôs em dificuldades e na qual trabalham milhares de operários, mas que a nacionalização se impõe como uma evidência no caso de um banco que a especulação levou à bancarrota? De quel réel cette crise est-elle le spectacle?», Le Monde, 18 Outubro 2008]


Podemos, a partir daqui, generalizar a ideia: embora reconhecêssemos sempre a urgência dos problemas enquanto combatíamos a SIDA, a fome, a escassez da água, o aquecimento global, etc., parecia haver sempre um tempo para reflectir, para adiar decisões (recorde-se como a principal conclusão da última cimeira de dirigentes mundiais em Bali, apregoada como uma vitória, foi que, dentro de dois anos, voltariam a encontrar-se para continuar as conversações…). Mas, com a derrocada financeira, a urgência de agir foi incondicional e foram efectivamente disponibilizados de um momento para o outro montantes de proporções inconcebíveis. Salvar as espécies ameaçadas, salvar o planeta do aquecimento global, salvar os doentes da SIDA e as pessoas que morrem por falta de meios que lhes dêem acesso a tratamentos dispendiosos, salvar crianças famintas… enfim, tudo isso pode esperar um momento mais. O apelo «Temos de salvar os bancos!», em contrapartida, impõe-se como um imperativo incondicional à acção imediata.

O pânico (nos EUA) foi tão absoluto que se estabeleceu instantaneamente uma unidade transnacional e não-partidária, e todos os desentendimentos entre os dirigentes mundiais foram postos de parte por um momento a fim de se evitar a catástrofe. Mas o que esta cooperação «supra-partidária» dos dois partidos americanos significava era que os próprios procedimentos democráticos tinham, de facto, sido suspensos: não havia tempo para um debate como devia ser, e os que se opuseram ao plano do Congresso foram rapidamente obrigados a ceder perante a maioria. Bush, McCain e Obama reuniram de urgência, explicando logo a seguir a uma assembleia estupefacta que pura e simplesmente não havia tempo para discussões: estávamos numa situação de emergência e as coisas tinham de ser feitas o mais depressa possível… Por fim, não esqueçamos que os fundos mobilizados, e que eram de uma envergadura sublime, não serviram para a resolução deste ou daquele problema «real» ou concreto, mas essencialmente para restabelecer a confiança nos mercados − ou seja, serviram somente para agir sobre as crenças das pessoas!

Será necessária alguma prova mais de que o Capital é o Real das nossas vidas, um Real cujos imperativos são muito mais absolutos do que as exigências mais urgentes da nossa realidade social e natural? Foi Joseph Brodsky quem elucidou com perspicácia a solução adequada no que se refere à busca desse misterioso «quinto elemento», o ingrediente mais essencial da nossa realidade: «Ao lado do ar, da terra, da água e do fogo, o dinheiro é a quinta força natural que um ser humano as mais das vezes tem de ter em conta» [Joseph Brodsky, Less Than One: Selected Essays, Nova Iorque, Farrar Strauss and Giroux, 1986, p. 157] Se tivéssemos alguma dúvida a este respeito, um rápido relance sobre a recente crise financeira seria mais do que suficiente para a dissipar.

Em finais de 2008, uma equipa de investigadores, que estudava as tendências epidémicas da tuberculose na Europa de Leste ao longo das décadas mais recentes, tornou públicos os seus principais resultados. Depois de terem analisado dados relativos a mais de 20 Estados, os investigadores de Cambridge e Yale estabeleceram uma correlação clara entre os empréstimos concedidos a esses Estados pelo FMI e o aumento de casos de tuberculose: após o termo dos empréstimos, a epidemia de tuberculose começa a regredir. A explicação dessa correlação aparentemente extravagante é simples: a condição dos empréstimos concedidos é a introdução, pelos Estados que os obtêm, duma «disciplina financeira» − ou seja, a redução da despesa pública − e a primeira vítima das medidas destinadas ao restabelecimento da «saúde financeira» é a própria saúde, a despesa pública com os serviços de saúde. Abre-se, então, o campo que permite aos ocidentais humanitários denunciarem o estado catastrófico dos serviços médicos nos países em causa, oferecendo-lhes o seu auxílio sob a forma de beneficência.

A derrocada financeira tornou impossível que continuasse a ser ignorada a irracionalidade global do capitalismo. Comparem-se os 700 biliões de dólares dispendidos pelos EUA para a estabilização do sistema bancário com o facto de, dos 22 biliões de dólares prometidos pelas nações mais ricas a título de auxílio a prestar às mais pobres, só 2,2 biliões terem sido até ao momento disponibilizados. A culpa da crise alimentar não pode ser imputada aos suspeitos do costume − ou seja, à corrupção, à ineficácia e ao intervencionismo dos Estados do Terceiro Mundo − pelo contrário, está directamente ligada à globalização agrícola, como o próprio Bill Clinton em pessoa deixou claro, nos seus comentários sobre a crise, numa reunião das Nações Unidas, celebrada para assinalar o Dia Mundial da Alimentação, objecto de uma comunicação significativamente noticiada sob o título: «Falseámos o Problema da Alimentação Global». [Associated Press, 23 Outubro 2008] O fulcro do discurso de Clinton foi o reconhecimento de que a presente crise mostra como «falseámos os dados do problema, e eu próprio o fiz durante a minha presidência», encarando as culturas como mercadorias e não como um recurso manifestamente vital para as populações pobres.




poço em Natwarghad (Índia)_2003_a água é um bem universal... raro!


Clinton foi extremamente preciso em atribuir as culpas, não a Estados ou governos isolados, mas às políticas ocidentais de longo prazo impostas pelos EUA e pela União Europeia, e aplicadas durante décadas pelo Banco Mundial, pelo FMI e outras instituições internacionais. As políticas em causa pressionaram os países africanos e asiáticos a conceder subsídios governamentais para fertilizantes, sementes mais produtivas e outros meios agrícolas, favorecendo assim a exploração das melhores terras em vista da exportação e aniquilando, ao mesmo tempo, a capacidade de auto-suficiência, em matéria de produção alimentar, dos países implicados. O resultado destes «ajustamentos estruturais» foi a integração da agricultura local na economia global: à medida que cresciam as exportações das suas colheitas, os países que as exportavam viam-se obrigados a recorrer cada vez mais à importação de bens alimentares, enquanto os camponeses, expulsos das suas terras, eram forçados a instalar-se em bairros miseráveis e a trabalhar nas oficinas, como sub-contratados, os únicos locais que lhes oferecia um posto de trabalho. Deste modo, muitas regiões são mantidas num estado de dependência pós-colonial, tornando-se cada vez mais vulneráveis às flutuações do mercado: nos últimos anos a subida espectacular dos preços dos cereais (causada igualmente pela sua utilização como biocombustíveis, em vez de como ‘bens alimentares’) tem sido causa de cenários de fome em vários países, do Haiti à Etiópia (veja-se o caso de Moçambique).

No período recente, as estratégias deste tipo tornaram-se mais sistemáticas e diversificadas: grandes empresas internacionais, em parceria com os governos, procuram hoje compensar a penúria de terras aráveis dos países onde estão sediadas através da implantação de enormes unidades de agricultura industrial no exterior. [Vivienne Walt, «The breadbasket of South Korea: Madagascar», Time, 23 Novembro de 2008] Por exemplo, em Novembro de 2008, a Daewoo Logistics, na Coreia do Sul, anunciava que concluíra com Madagáscar um arrendamento por noventa e nove anos de cerca de trezentos mil hectares de savana, equivalendo a quase metade das terras aráveis da ilha. A Daewoo planeia dedicar mais de três quartas partes das terras arrendadas ao cultivo do milho, usando a restante área para a produção de óleo de palma, um produto da maior importância no mercado global dos biocombustíveis. Mas esta parte é apenas a porção emersa do iceberg: várias firmas europeias, nos últimos dois anos, adquiriram também direitos que lhes permitem usar vastas áreas de terra para produções agro-alimentares e de biocombustíveis − tal é, entre outros, o caso da companhia britânica Sun Biofuels, que explora, com os referidos propósitos, plantações na Etiópia, em Moçambique e na Tanzânia. O solo fértil de África atrai, do mesmo modo, certos países do Golfo Pérsico (ricos em petróleo), que, contando com grandes extensões desérticas, se vêem obrigados a importar a maior parte dos seus géneros alimentares. A verdade é que, embora Estados tão ricos possam pagar sem problemas as importações de bens agrícolas de consumo, os sobressaltos dos mercados globais dos produtos alimentares têm vindo a intensificar as suas preocupações quanto a garantirem fontes de provisões seguras.

Mas, qual é, então, o incentivo que move a outra parte, constituída por países africanos assediados pela fome, cujos agricultores não dispõem das ferramentas necessárias, nem de infra-estruturas − fertilizantes, combustíveis e transportes − que lhes permitiria uma produção eficaz e a colocação das suas colheitas no mercado? Os porta-vozes da Daewoo afirmam que o acordo celebrado beneficiará também Madagáscar, não só porque as terras arrendadas não estavam a ser utilizadas, mas também porque:


«…embora a Daewoo tencione exportar o rendimento da terra, … tenciona investir cerca de 6 biliões de dólares ao longo dos próximos 20 anos na construção das instalações portuárias, estradas, centrais produtoras de energia, sistemas de irrigação, cujo conjunto é necessário ao desenvolvimento da sua actividade na ilha, criando assim milhares de postos de trabalho que acolherão muitos desempregados do país. Os empregos criados ajudarão a população de Madagáscar a poder dispor do dinheiro de que precisa para comprar géneros alimentares, ainda que estes tenham de ser importados[ibidem]


O círculo da subordinação pós-colonial volta a fechar-se, e a dependência alimentar só pode tender para se exacerbar.

Não estaremos assim a aproximarmo-nos de um estado global em que a potencial escassez de três recursos materiais de importância fundamental (petróleo, água e bens alimentares) se tornará o factor determinante da política internacional? Não será a escassez alimentar − que se torna visível em crises (por enquanto) esporádicas que têm lugar aqui e ali − um dos sinais dum apocalipse a caminho? Embora as manifestações da escassez sejam sobre-determinadas por múltiplos factores (a procura crescente em Estados que se desenvolvem rapidamente como a Índia e a China; as colheitas afectadas por alterações de ordem ecológica; a utilização de grandes fracções das terras aráveis de países do Terceiro Mundo para produções destinadas à exportação; a utilização determinada pelo mercado de cereais para fins não alimentares como a produção de combustível), parece evidente que estamos, aqui, não perante um problema que diz respeito ao curto prazo e que pode ser resolvido por meio duma regulação adequada do mercado, mas antes na presença de sinais que indicam um problema a longo prazo impossível de se solucionar através dos meios ao alcance de uma economia de mercado. Alguns apologistas da nova ordem mundial assinalam que a escassez alimentar é por si só um indicador de progresso material − ou seja, indicador do facto de que as populações dos países do Terceiro Mundo (que conhecem um rápido processo de desenvolvimento) ganham melhor e por isso se permitem alimentar-se melhor. Todavia, o problema é que esta nova procura alimentar atira milhões de seres humanos para situações de fome nos países que não conhecem um crescimento económico semelhante.

Não poderemos dizer o mesmo acerca da crise energética que se anuncia e das dificuldades de provisão de água das populações?

Se quisermos enfrentar adequadamente estes problemas, será necessário inventarmos novas formas de acção colectiva a uma escala alargada − nem as formas estabelecidas de intervenção do Estado, nem as muito gabadas formas de auto-organização local poderão encarregar-se de levar a cabo a tarefa. Se os mesmos problemas não forem resolvidos de uma maneira ou de outra, o cenário mais provável será uma nova era de apartheid, fazendo com que certas áreas protegidas do mundo gozem de abundância de água, alimentação e energia, isoladas face a um «exterior» caótico caracterizado pelo caos generalizado, pela fome e pelas guerras permanentes. Que deveriam fazer as populações do Haiti e de outras regiões vítimas de condições extremas de privação? Não terão todo o direito de recorrer à revolta por meios violentos? O comunismo está, uma vez mais, às portas da cidade.
Clinton tem razão quando diz que «a produção alimentar não é uma mercadoria como as outras. Devemos regressar a uma política visando um máximo de auto-suficiência alimentar. É uma loucura pensar que podemos desenvolver esta ou aquela região do mundo sem aumentarmos a sua capacidade de se alimentar pelos seus próprios meios Mas é necessário acrescentar, a este propósito, pelo menos dois pontos.

Primeiro, como já antes observamos a propósito do Mali, embora impondo a globalização da agricultura aos países do Terceiro Mundo, os países ocidentais desenvolvidos cuidam ao máximo de manter a sua própria auto-suficiência alimentar mediante os apoios que concedem aos seus agricultores, etc. (Lembremo-nos que os apoios financeiros concedidos aos agricultores representam mais de metade do total do orçamento da União Europeia, o que mostra bem como o Ocidente nunca abandonou a «política da máxima auto-suficiência alimentar»).

Segundo ponto, deveríamos fazer ver que a lista dos produtos e serviços que, como a alimentação, não são «mercadorias como as outras» é muito mais vasta, incluindo não só a defesa (aspecto do qual todos os «patriotas» têm consciência), mas também, e sobretudo, a água, a energia, o meio ambiente enquanto tal, a cultura, a educação e a saúde

Neste domínio, quem decidirá das prioridades e como o fará, se tais decisões forem abandonadas ao mercado?

É aqui que temos de levantar, uma vez mais, a questão do comunismo.


Slavoj Zizec

in «DA TRAGÉDIA À FARSA» (parte do capítulo ‘De novo o comunismo’), Relógio d’Água editores, Out. 2010, pp.94-101. ISBN 978-989-641-196-1.