teologia para leigos

10 de novembro de 2011

ENDIVIDAMENTO DAS FAMÍLIAS PORTUGUESAS - UM MITO

O ENDIVIDAMENTO DAS FAMÍLIAS PORTUGUESAS
- um Mito Ideológico… ou de como as nossas reacções não passam de ‘caixa de ressonância’ dos tambores neo-liberais






«Temos vivido acima das nossas possibilidades?»


Faz hoje parte do senso comum a ideia de que todos os portugueses, sem excepção, andaram a viver acima das suas possibilidades.[1] (…)

A ideia de que andamos todos a viver acima das nossas possibilidades não só não é verdade, como não é inócua. Ela contribui, intencionalmente ou inadvertidamente, para a aceitação de que é chegada a hora de pagarmos a factura da nossa irresponsabilidade, individual e colectiva.

É certo que as famílias portuguesas se endividaram ao longo das duas últimas décadas e que este endividamento cresceu a um ritmo muito acelerado. Na última década, de um valor de cerca de 60% em 2000, medido em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB), a dívida das famílias portuguesas atingiu, em 2010, o valor de 95%. Também é verdade que, no contexto da Zona Euro, estes valores só são superados pela Dinamarca (150%), Holanda (130%), Irlanda (120%) e Reino Unido (100%), sendo o valor médio para esta Zona de cerca de 65%.

O crédito total concedido às famílias é hoje superior ao crédito que as instituições financeiras concedem às empresas, o que traduz uma maior dependência da banca em relação a este segmento de mercado.[2] Embora a dívida das famílias portuguesas seja muito elevada quando medida em percentagem do PIB, o valor do crédito total concedido às famílias portuguesas corresponde a menos de metade do valor médio do crédito concedido na UE (União Europeia) [137.967 e 284.842 mil milhões de euros, respectivamente], o que equivale a uma dívida de 12.962 mil euros per capita (para uma média de 15.455 mil euros na UE dos 27 países).[3]

O endividamento das famílias portuguesas é o resultado das políticas monetárias e financeiras das duas últimas décadas que promoveram a desregulamentação do sistema financeiro português com vista à criação de uma união monetária entre países muito diferentes, da qual Portugal fez parte desde o início. Assistiu-se desde então à abolição de barreiras legais, o que tornou mais fácil a concessão de crédito por parte das instituições bancárias, e uma intensa inovação financeira que permitiu potenciar o nível de crédito para uma mesma captação de depósitos. Tudo isto num clima de forte concorrência que fomentou ainda mais a oferta de crédito, em particular no segmento do crédito à habitação. Verificou-se ainda uma acentuada descida das taxas de juro, o que tornou o crédito mais acessível a um conjunto mais vasto de famílias.

O endividamento está também directamente relacionado com a política habitacional pública, considerando que os empréstimos à habitação representam cerca de 80% do total da dívida das famílias. Com efeito, a política habitacional concentrou-se quase exclusivamente no apoio à compra ou construção de habitação própria, através de um sistema de crédito bonificado e de um conjunto de incentivos fiscais favoráveis (por exemplo, deduções fiscais das ‘contas poupança habitação’). E isto ocorreu num contexto de uma praticamente inexistente política pública de arrendamento, com escassez de casas para arrendar e, portanto, rendas elevadas para as casas disponíveis.[4] Segundo dados do Eurostat, cerca de 75% das famílias portuguesas são hoje proprietárias da habitação onde residem, um valor ligeiramente acima da média europeia. (…)



1. Crédito à habitação: grande peso, baixo risco

Além do contexto macroeconómico que contribuiu para o endividamento dos portugueses, importa analisar com algum detalhe o conteúdo e a distribuição da dívida, bem como a sua relação com a riqueza gerada no país.

Como já foi referido, cerca de 80% do crédito às famílias destina-se à aquisição ou construção de habitação própria. Este facto é relevante pois mitiga a gravidade do endividamento das famílias.

Em primeiro lugar, porque este tipo de crédito confere um baixo nível de risco: a dívida contraída pelas famílias está razoavelmente protegida pelo valor do imóvel, considerando que não se verificou em Portugal, como aconteceu noutros países, uma sobrevalorização dos preços da habitação. A esta segurança acrescem ainda as garantias pessoais prestadas pelos fiadores neste tipo de crédito.

Em segundo lugar, porque o peso dos encargos mensais das prestações dos empréstimos à habitação no rendimento mensal das famílias é relativamente reduzido em Portugal, quando comparado com outros países da Zona Euro.[5] De facto, a taxa de incumprimento relativa ao crédito à habitação é considerada baixa, situando-se na ordem dos 2% relativamente ao crédito contraído. Já o crédito ao consumo e outros fins, que representa apenas cerca de 20% do crédito pelas famílias, apresenta taxas de incumprimento na ordem dos 8%. Uma diferença que se explica pelo menor risco-associado face ao crédito à habitação, como já foi referido, pela importância da habitação na vida das famílias e pela maior vulnerabilidade dos devedores face às condições desfavoráveis destes empréstimos no pouco regulado segmento do crédito ao consumo.

É ainda de registar que o crédito mal-parado das famílias (total do crédito à habitação e crédito ao consumo e 'outros fins') se situa abaixo do crédito mal-parado das empresas (de acordo com o Banco de Portugal, 3% e 5%, respectivamente).


 

2. Só 40% das famílias, as de maiores rendimentos

Não só o endividamento das famílias portuguesas se concentra em empréstimos que representam um risco diminuto, como esta dívida se concentra em famílias que pertencem aos escalões de rendimento superior. De facto, segundo dados do Inquérito ao Património e Endividamento das Famílias, levado a cabo pelo Instituto Nacional de Estatística e pelo Banco de Portugal em 2006-2007, apenas cerca de 40% das famílias portuguesas participam no mercado da dívida, sendo que 30% das famílias participam no mercado do crédito à habitação e 10% participam apenas no mercado do crédito 'para outros fins'.[6]

Este inquérito revela que a dívida se concentra nos estratos de rendimento mais alto, em agregados jovens, com nível educacional elevado e cujo representante é trabalhador assalariado. Facilmente se constata que as características socioeconómicas das famílias endividadas estão relacionadas e reflectem as condições de procura e oferta do mercado de crédito.

Se, por um lado, são os agregados mais jovens e em início de vida que têm maior necessidade de recorrer ao crédito, por outro, também são os estratos com maior nível educacional, maior nível de rendimento e com uma situação estável no mercado de trabalho que acedem mais facilmente ao crédito.

Pode, então, concluir-se que, não só, mais de metade dos portugueses têm vivido exclusivamente com os seus recursos, como aqueles que recorrem ao crédito têm vivido de acordo com as suas possibilidades. (…)


O crescimento do peso da dívida das famílias no PIB (a que aludimos acima) também se deve ao abrandamento da actividade económica.[7]

E é hoje certo que as medidas de austeridade impostas pela UE e pelo FMI para os próximos três anos impossibilitarão qualquer recuperação económica nesse período.

A exigência de reequilíbrio das finanças públicas gerará inclusivamente uma recessão severa, podendo agravar os desequilíbrios financeiros do sector privado e, desta forma, contribuir para a fragilização dos próprios bancos, que até agora beneficiavam de um negócio com risco reduzido (o negócio do crédito à habitação).


Ana Cordeiro Santos

Economista, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

in Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, Julho de 2011, p. 24.



[1] [Nota do Editor deste blog] Pelo que o discurso dominante oficial (sacrificial) conclui: ‘Teremos todos, agora, de pagar por isso…».
[2] ‘Relatório de Estabilidade Financeira’, Banco de Portugal, Maio de 2011.
[3] ‘European Credit Research Institute’ (dados de 2009).
[4] Maria Manuel L. Marques, Vítor Neves, Catarina Frade, Flora Lobo, Paula Pinto e Cristina Cruz, ‘O Endividamento dos Consumidores’, Almedina, Coimbra, 2000.
[5] Luísa Farinha, «O endividamento das famílias portuguesas: evidência recente com base nos resultados do IPEF 2006-2007», in ‘Relatório de Estabilidade Financeira 2007’, Banco de Portugal, Lisboa, 2007; e Eurostat, «Housing Conditions in rope in 2009», ‘Statistics in Focus’ 4/2011, European Union, 2011.
[6] Dados obtidos em Luísa Farinha, op. cit. Embora estes dados se refiram a 2006-7, tendo em conta que o endividamento das famílias abrandou nos últimos quatro anos, não é de esperar que a participação das famílias portuguesas no mercado de crédito tenha aumentado nos últimos anos. Ver ‘Relatório de Estabilidade Financeira’, Banco de Portugal, Maio de 2011.
[7] Se aferirmos o peso da dívida ao PIB, basta que o PIB baixe para que a percentagem da dívida suba… É óbvio! Ou seja, quanto mais recessão maior é a dívida, mesmo que ninguém contrate um único cêntimo a mais de crédito junto da Banca!!! [Nota do Editor deste blog]