teologia para leigos

29 de novembro de 2011

HERODES ANTIPAS E AS DESIGUALDADES SOCIAIS



A urbanização da Galileia

Esta situação difícil dos agricultores galileus agravou-se ainda mais quando, num curto período de vinte anos, Herodes Antipas [filho de Herodes, o Grande] reconstruiu Séforis e mandou construir a nova capital, Tiberíades. Tudo aconteceu antes que Jesus completasse os vinte e cinco anos. Aqueles galileus que levavam séculos a viver em aldeias e em barracas, a cultivar pequenas parcelas da sua propriedade, conheceram pela primeira vez, dentro do seu próprio território, a proximidade de duas cidades que iriam mudar de repente o panorama da Galileia, provocando uma grave desintegração social.[1]

Já no tempo dos asmoneus se tinha estabelecido em Séforis uma guarnição armada para garantir o controlo da zona e assegurar o pagamento dos impostos. Herodes [Antipas] continuou a utilizá-la como o principal centro administrativo da Galileia até que, à sua morte, ficou arrasada pelo levantamento (revoltoso) de Judas e pela posterior intervenção dos soldados romanos. Antipas não hesitou em reconstruir Séforis quando chegou ao poder. Edificada sobre uma colina que dominava terras férteis, era, na altura, o melhor sítio para a capital da Galileia. Antipas denominou-a de «imperial» (Autocrátoris). De facto, só o foi até aos anos 18/19, em que se fundou Tiberíades, a nova e esplêndida capital construída por Antipas na margem do ‘mar’ da Galileia, num terreno que fora antigamente um cemitério.

No Império romano, as cidades eram construídas para serem residência das classes dirigentes. Nelas viviam os governantes, os militares, os cobradores de impostos, os funcionários administrativos, os juízes, os notários, os grandes latifundiários e os responsáveis pelo armazenamento dos produtos. A desigualdade do nível de vida entre as cidades e as aldeias era notória. Nas povoações agrícolas da Galileia, as pessoas viviam em casas muito modestas feitas de barro ou por pedras por trabalhar, e com tecto de colmo. As ruas eram de terra batida e sem pavimento. A ausência de mármores ou outros elementos decorativos era total. Em Séforis, pelo contrário, podia ver-se edifícios bem construídos, cobertos de telhas, com chão de mosaicos e frescos, ruas pavimentadas e até uma avenida com cerca de treze metros de largura, bordejada de um lado e de outro por filas de colunas. Tiberíades era ainda mais monumental, com o palácio de Antipas, diversos edifícios administrativos e a porta da cidade com duas torres arredondadas, de carácter puramente ornamental e simbólico, a fazer uma separação nítida entre a população da cidade e a das aldeias.

Séforis tinha entre oito e doze mil habitantes. Tiberíades, à volta de oito mil. Não podiam competir em tamanho, poder ou riqueza com Cesareia Marítima, onde residia o prefeito de Roma, nem com Citópolis, nem com as cidades marítimas de Tiro e Sídon[2]. Eram centros urbanos mais pequenos, mas que não deixavam de ser uma novidade importante na Galileia. O campo tinha de abastecer, agora, dois importantes aglomerados urbanos que não cultivavam a terra. Famílias camponesas, acostumadas a trabalhar as terras para garantirem o indispensável à subsistência, viram-se obrigadas a aumentar a sua produção a fim de manterem as classes dirigentes[3].

Era a partir de Séforis e de Tiberíades que se fiscalizava e administrava toda a Galileia. Os agricultores experimentavam de perto, pela primeira vez, a pressão e o controlo das autoridades herodianas. Não era possível fugir ao pagamento de rendas e de taxas. A organização do fisco e da armazenagem era cada vez mais eficaz. As exigências que provinham do sustento dos centros de uma administração em progresso eram cada vez mais elevadas. E, enquanto em Séforis e em Tiberíades crescia o nível de vida e a possibilidade de aquisição de mercadorias luxuosas, nas aldeias faziam-se sentir cada vez mais a insegurança e os problemas para poder subsistir. Séforis e Tiberíades acabavam por introduzir relações até então desconhecidas, quer no controlo, quer no poder administrativo, quer no que diz respeito à cobrança de impostos.

A agricultura das famílias da Galileia (policultura) tinha sido tradicionalmente muito diversificada. Os agricultores cultivavam diferentes produtos tendo em conta as suas múltiplas necessidades, o mercado de intercâmbio e a mútua reciprocidade que existia entre as famílias e entre vizinhos. A partir de agora fora incrementada a monocultura. Aos grandes latifundiários interessava mais aumentar a produção, facilitar o pagamento de impostos e negociar a armazenagem dos produtos. Entretanto, os proprietários das pequenas parcelas e os assalariados ficavam cada vez menos protegidos. As elites urbanas não pensavam nas necessidades das famílias pobres, as quais tinham de se alimentar de cevada, feijão, milho da índia, cebolas ou figos, enquanto aquelas exigiam produtos como trigo, azeite ou vinho, os quais eram de maior relevância para o armazenamento e para o lucro. [E hoje, século XXI, como é?]

Foi nesta época que começaram a circular, na Galileia, as moedas cunhadas por Antipas na cidade de Tiberíades. O sistema de amoedação facilitava a compra de produtos e o pagamento do tributo a Roma[4]. Por outro lado, permitia aos ricos acumular mais facilmente os seus ganhos e assegurar o futuro em épocas de escassez. A circulação de moeda estava controlada pelas elites urbanas e favorecia os mais ricos. Concretamente, as moedas de ouro e prata eram utilizadas para acumular «tesouros» ou mammona, que serviam para adquirir honra, fama e poder. De facto, só nas cidades se podia «entesourar»[5]. As moedas de prata serviam para pagar o tributo imperial por cada pessoa, bem como os diversos impostos. As moedas de bronze utilizavam-se para equilibrar o intercâmbio de produtos. Eram estas as moedas que, normalmente, manuseavam os agricultores.

Ao que se julga, ao longo da sua vida, Jesus presenciou o crescimento de uma desigualdade que favorecia a minoria privilegiada de Séforis e de Tiberíades, e originava insegurança, pobreza e desintegração de bastantes famílias camponesas. Aumentava o endividamento e a perda de terras por parte dos mais débeis. Os tribunais das cidades poucas vezes apoiavam os agricultores [Lc 12:57ss; Lc 18:1ss]. Aumentava o número de indigentes, jornaleiros e prostitutas. Cada vez eram mais os pobres e os famintos por não poderem usufruir da terra dada por Deus ao seu povo[6].

A actividade de Jesus no meio das aldeias da Galileia e a sua mensagem do «reino de Deus» representavam uma forte crítica a semelhante estado de coisas. A sua firme defesa dos indigentes e dos famintos, o seu acolhimento preferencial aos últimos daquela sociedade, bem como a sua condenação da vida sumptuosa dos ricos das cidades, eram um desafio público àquele sistema sociopolítico desenvolvido por Antipas, que favorecia os interesses dos mais poderosos e afundava na indigência os mais débeis. A parábola do pobre Lázaro e do rico que vive faustosamente, ignorando quem morre de fome à porta do seu palácio [Lc 16:19-31]; a narração do latifundiário insensato que só pensava em construir silos e armazéns para os seus cereais [Lc 12:16-21]; a crítica severa contra os que acumulam riquezas sem pensar nos necessitados [fonte QMt 6:24; Lc 12:33-34; Lc 16:13; Mt 6:19-21]; as bem-aventuranças, declarando felizes os pobres, os famintos e os que choravam por perderem as suas terras [Lc 6:20-21]; as exortações dirigidas aos seus seguidores para partilharem a vida com os mais pobres daquelas aldeias e andarem como eles, sem ouro, sem prata, sem cobre, sem duas túnicas e sem sandálias [Mt 10:9-10]; os seus apelos à compaixão para com os que mais sofriam e ao perdão das dívidas [Lc 6:36-38] e tantos outros ditos, permitem compreender ainda hoje como vivia Jesus o sofrimento daquele povo e com que paixão ele procurava um mundo novo, mais justo e fraterno, onde Deus pudesse reinar como Pai de todos[7].[JAP]



[1] Segundo E. W. Stegemann/W. Stegemann, «o endividamento e a expropriação dos pequenos agricultores são os símbolos da época romana».
[2] Tanto Cesareia Marítima como Citópolis eram o dobro de Séforis e de Tiberíades, com uma população entre os vinte e os quarenta mil habitantes.
[3] É preciso referir, no entanto, que houve gente do campo, como os artesãos [era o caso de José e de Jesus, que eram tekton’s, ou seja, artesãos e não meros ‘carpinteiros’ como se usa dizer], que encontrou trabalho na construção das novas cidades e em alguns serviços urbanos (Freyne, Sanders).
[4] Normalmente, em todo o Império era costume o uso da moeda para pagar o salário dos militares.
[5] O termo aramaico mammon (da raiz ‘mn) significa «o que está seguro», o que dá segurança. Segundo Jesus, acumular mammon é incompatível com o serviço a Deus: «Ninguém pode servir a Deus e ao Dinheiro (mammon)» [fonte Q=Lc 16:13; Mt 6:24; Evangelho Apócrifo de Tomé 47:1-2].
[6] Na Galileia que Jesus conheceu, a maioria são «pobres» (penetes), mas possuem a sua pequena casa e o seu pedaço de terra, podendo subsistir graças a uma dura vida de trabalho. Os evangelhos não falam destes pobres, mas dos «indigentes» (ptochoi, ochlos), que não possuem terra, carecem de tecto e vivem ameaçados pela fome e pela desnutrição. [a propósito da expressão ‘ochlos’, cf. José Mª Castillo]
[7] Nos evangelhos não se regista nenhuma visita de Jesus a Séforis nem a Tiberíades. Dado o carácter itinerante de Jesus, tal facto resulta surpreendente e não parece uma omissão casual. Os investigadores discutem sobre qual poderia ter sido a razão. Os estudos mais recentes parecem descartar razões de carácter religioso e cultural, pois nem Séforis, nem Tiberíades eram cidades helénicas paganizadas. Bastantes pensam que Jesus as evitou para que a sua mensagem não ficasse mediatizada pelas elites (Horsley, Theissen, Reed e, em parte, Crossan). Actuando nas aldeias, tinha provavelmente a intenção de apresentar com clareza as implicações sociais do reino de Deus (Freyne). Ao mesmo tempo, Jesus procurava talvez evitar a proximidade ameaçadora de Antipas. A região fronteiriça de Cafarnaúm, com a possibilidade de cruzar o lago, permitia-lhe dirigir-se rapidamente para fora dos seus domínios (Hochner, Reed, Sanders).