teologia para leigos

8 de novembro de 2011

AS DESIGUALDADES SOCIAIS EXIGEM SEUS SACERDOTES 2/2

[os Telejornais «da Crise» têm-se afanosamente ocupado dos «casos de sucesso»: são inúmeros «os números de circo» que todos eles nos têm servido ao almoço e ao jantar. A mistificação, a divinização do exótico e do dejecto, a intoxicação neo-liberal, a Nova Religião, o «ópio do Povo» [Rui Reininho]... Alguns cristãos alimentam-se dessa fezada!]

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Não há ‘Sistema de Castas’ sem exclusão



«Intocáveis» - recolhendo o esterco...



 A este propósito, foi exemplar o conflito que opôs B. R. Ambedkar e Gandhi durante a década de 30. Embora Gandhi tenha sido o primeiro político hindu a advogar a plena integração dos Intocáveis [os párias, os sem-casta] e lhes tenha chamado «os filhos de Deus», via na sua desvalorização uma corrupção do sistema hindu original. O que Gandhi tinha em vista era antes uma ordem (formalmente) não hierárquica de castas no interior da qual cada indivíduo tivesse um lugar determinado: Gandhi sublinhava a importância do trabalho de recuperação dos lixos e celebrava os Intocáveis por cumprirem essa missão «sagrada».

É aqui que os Intocáveis ficam expostos à maior tentação ideológica: em termos que evocam a actual «política de identidade», Gandhi permitia-lhes «enamorarem-se de si próprios» na sua identidade humilhante, aceitarem o seu trabalho degradante como uma tarefa social nobre e necessária, verem inclusivamente na natureza degradante do seu trabalho um sinal do seu espírito de sacrifício, da sua disposição de assumirem uma tarefa suja em benefício da sociedade. Até mesmo a sua injunção mais «radical», recomendando que todos, sem exceptuar os brâmanes, limpassem os seus próprios excrementos, acaba por encobrir o verdadeiro problema, que, mais do que uma atitude individual, releva da natureza da organização global da sociedade.

(O mesmo risco ideológico intervém hoje, quando somos bombardeados de todos os lados com a injunção de reciclarmos o lixo que fazemos, de pormos as garrafas, os jornais velhos, etc., nos contentores apropriados. Deste modo, a culpa e a responsabilidade são personalizados: não é a organização global da economia que devemos incriminar, mas a nossa atitude subjectiva que devemos inflectir.)

Ora, a tarefa não é mudarmos a nossa personalidade interior, mas abolir a intocabilidade enquanto tal − ou seja, não um simples elemento do sistema, mas o próprio sistema que o engendra. Ao contrário de Gandhi, Ambedkar viu claramente que assim era, quando:

‘sublinhava a futilidade da mera abolição da intocabilidade, uma vez que, sendo esse mal produto de uma hierarquia social de certo tipo, era todo o sistema de castas que deveria ser eliminado: «Os sem-casta [Intocáveis] existirão enquanto as castas existirem.» … Gandhi, por seu lado, replicou que estavam aqui em causa os próprios fundamentos do hinduísmo, entendido este como uma civilização que, na sua forma original, ignorava efectivamente a hierarquia.’[1]

Embora Gandhi e Ambedkar se respeitassem mutuamente e tenham colaborado com frequência no combate pela dignidade dos Intocáveis, há um aspecto em que diferem irremediavelmente: trata-se da diferença entre a solução «orgânica» (que resolve o problema através do regresso à pureza do sistema original antes da sua corrupção) e a solução verdadeiramente radical (que identifica o problema como «sintoma» do conjunto do sistema − sintoma que só pode ser removido através da abolição do sistema no seu conjunto).[2] Ambedkar viu claramente como a estrutura das quatro castas não reúne quatro elementos pertencentes à mesma ordem: enquanto as primeiras três castas (sacerdotes, reis-guerreiros, mercadores-produtores) formam um Todo consistente, uma tríade orgânica, os intocáveis são, como o «modo de produção asiático», a «parte dos sem-parte», o elemento inconsistente no interior do sistema, que representa o lugar daquilo que o sistema enquanto tal exclui − e, nessa medida, os intocáveis representam a universalidade. Ou, como diz Ambedkar através dum hábil jogo de palavras: «Os sem-casta existirão enquanto existirem castas.» Enquanto existirem castas, existirá um elemento excedentário e excrementício de valor zero, que, embora fazendo formalmente parte do sistema, não tem lugar próprio no seu interior. Gandhi oblitera este paradoxo, como se fosse possível uma organização harmoniosa em termos de castas.

O paradoxo dos Intocáveis está no facto de serem duplamente marcados pela lógica excrementícia: não só lidam com a impureza dos excrementos, como o seu próprio estatuto formal no interior do corpo da sociedade é o do excremento.

É por isso que o paradoxo propriamente dialéctico é que, se quisermos romper com o sistema das castas, não basta transformarmos o estatuto dos intocáveis, elevando-os à condição de «filhos de deus» − o primeiro passo deverá ser precisamente o contrário: universalizar o seu estatuto excrementício ao conjunto da humanidade.

Martinho Lutero, abertamente, propôs uma identidade excrementícia semelhante para o homem: o homem é como um excremento divino, caído do ânus de Deus − e, com efeito, só no interior desta lógica protestante da identidade excrementícia do homem é que podemos formular o verdadeiro sentido da Encarnação.

 Na Igreja Ortodoxa, Cristo perde, em última análise, o seu estatuto excepcional: a sua própria idealização, a sua exaltação como nobre modelo, redu-lo a uma imagem ideal, uma figura a ser imitada (todos os homens têm o dever de se esforçar por serem Deus) − a imitatio Christi é uma fórmula mais ortodoxa do que católica.

No catolicismo, a lógica predominante é a de uma troca simbólica: os teólogos católicos gostam de ponderar com argumentos escolásticos de ordem jurídica de que modo pagou Cristo o preço pelos nossos pecados, etc. (…)

Estamos aqui perante aquilo a que nos poderíamos ironicamente referir como a posição teológico-cósmica proletária, cujo «juízo infinito» é a identidade do excesso e da universalidade: o excremento da terra é o sujeito universal.

(Este estatuto excrementício do homem é já assinalado pelo papel do sacrifício nos Vedas originais: através da substituição da vítima sacrificial aos humanos, o sacrifício dá testemunho do papel excêntrico e excepcional do homem na grande cadeia alimentar − parafraseando Lacan, o objecto sacrificial representa o homem para os outros membros «comuns» da cadeia alimentar.)


Eis uma passagem bastante surpreendente, senão abertamente chocante, das Memórias de Pablo Neruda, que se refere precisamente ao espaço excrementício invisível e ao que se pode descobrir através da sua experiência − o episódio descrito por Neruda teve lugar quando ele era cônsul do Chile no Sri Lanka (Ceilão):

“O meu bungalow solitário ficava longe de qualquer zona urbana. Depois de o ter arrendado, tentei descobrir onde ficava a retrete, sem conseguir dar com ela fosse onde fosse. De facto, não se encontrava perto do banho, mas nas traseiras da casa. Examinei-a com curiosidade. Era uma caixa de madeira com um buraco no meio, muito parecida com as peças do mesmo género que eu conheci no Chile rural da minha infância. Mas as nossas sanitas estavam colocadas por cima de um poço fundo ou de um regato. Aqui, o receptáculo era um simples balde de metal instalado por debaixo do buraco redondo.

O balde era limpo todas as manhãs mas eu não fazia a menor ideia de como desaparecia o seu conteúdo. Um dia, levantei-me mais cedo do que o costume, e fiquei desconcertado com o que vi.

Nas traseiras da casa, movendo-se como uma estátua sombria, vi entrar a mulher mais bela que alguma vez pudera ver em Ceilão, uma tamil da casta dos párias. Vestia um sari vermelho e dourado de pano barato. Trazia nos pés descalços pesadas argolas. Dois pequenos pontos vermelhos brilhavam em cada uma das suas narinas, duas contas de vidro, sem dúvida, mas que nela se diriam rubis.

Aproximou-se solenemente da latrina, sem sequer me relancear de passagem, não se dando ao trabalho de reconhecer a minha existência, e, a seguir, afastou-se e desapareceu, levando à cabeça aquele recipiente repugnante, deslocando-se com os passos de uma deusa.

Era tão maravilhosa que, esquecendo a humilde tarefa que desempenhava, eu não era capaz de a tirar do pensamento. Como um arisco animal da floresta, pertencia a uma outra espécie de existência, a um mundo diferente. Chamei-a, mas em vão. A partir desse momento, ponho de vez em quando uma oferenda no seu caminho: um pano de seda ou alguma fruta. Ela passa sem ouvir, nem olhar. Aquela ignóbil rotina transformou-se, devido à sua beleza sombria, na cerimónia prescrita de uma rainha indiferente.

Uma manhã, decidi-me a levar o caso até ao fim. Segurei-a com força pelo pulso e olhei-a nos olhos. Não havia língua que me permitisse falar com ela. Sem um sorriso, deixou-se conduzir e, pouco depois, estava nua na minha cama. A sua cintura delgada, as suas ancas cheias, as taças transbordantes dos seus seios faziam-na parecer uma dessas esculturas milenares que encontramos no sul da Índia. Era o encontro entre um homem e uma estátua. Ela conservou os olhos abertos o tempo todo, completamente sem reagir. Tinha razão ao desprezar-me. A experiência nunca mais se repetiu.”[3]

Neruda limita-se, depois, a passar a outros assuntos. Mas a passagem é notável e não pelos motivos mais óbvios: a descrição despudorada de uma violação, com os detalhes mais sujos discretamente silenciados («deixou-se conduzir e, pouco depois, estava nua na minha cama» − como ficou nua? É evidente que não foi ela a despir-se), a mitificação da passividade da vítima apresentada como indiferença divina, a falta da mais elementar decência ou vergonha por parte do narrador (se se sentia atraído pela rapariga, não o embaraçava saber que ela cheirava, via e manipulava os seus excrementos todas as manhãs?).

O seu traço mais digno de atenção é a divinização do excremento: uma deusa sublime aparece no preciso local onde os excrementos se escondem. Devemos considerar com a máxima seriedade a seguinte equação: elevar o Outro exótico à condição de uma divindade indiferente equivale estritamente a tratá-la como excrementos.

Slavoj Zizek


«Viver no Fim dos Tempos», Relógio d’Água, Junho 2011, pp. 44-48. ISBN 978-989-641-238-8.


[1] Christophe Jaffrelot, Dr Ambedkar and Untouchability, Nova Deli, Permanent Black, 2005, pp. 68-69.
[2] Não é este o formato do discurso do Ministro Mota Soares ao dizer que «os utentes do Subsídio de Desemprego devem procurar voltar o mais rápido possível ao mercado de trabalho [ao estado originário em que se encontravam antes de caírem no desemprego] para não se habituarem a subsídios…»? Donde a conclusão: «os subsídios devem ser muito baixos e de muito curta duração» para não fabricarem preguiçosos, nem alimentarem vícios… , afirmação produzida também por Isabel Jonet na TSF e na TV.[nota deste editor]
[3] Pablo Neruda, Memoirs, Nova Iorque, Farra, Strauss and Giroux, 2001, pp. 99-100. Devo o conhecimento deste texto a S. Anand, de Nova Deli.