MOTINS URBANOS, DESPREZO DE CLASSE
Tottenham_Agosto_2011 |
A ordem moral
britânica contra a «escumalha»
Alguns meses antes das eleições legislativas de Maio de 2011, o deputado trabalhista Stephen Pound considerava o eleitorado inglês menos preocupado com um eventual regresso ao poder dos conservadores do que com uma outra perspectiva: o receio, «quase físico», de ver «um Lumpen-proletariado vestido com imensa bijutaria espalhafatosa bater à sua porta e devorar as suas jovens filhas aos pares». Mesmo num período de relativa tranquilidade, um certo desprezo aflora à superfície das relações sociais do Reino Unido, uma das sociedades mais desiguais do mundo. Bastaram algumas noites de motins e pilhagens, no mês de Agosto, para que esse desprezo latente rebentasse à luz do dia.
As ruas inglesas recuperaram a calma, mas a agitação apoderou-se dos editoriais, das contas do Twitter e dos discursos dos responsáveis políticos. De forma incansável, um adjectivo, «feral» («selvagem»), associa-se ao tema dos amotinados, descritos sem pruridos como «ratazanas» [BBC News, 9 Agosto 2011; Daily Telegraph, 10 Agosto 2011; Daily Mail, 11 Agosto 2011]. Richard Littlejohn, jornalista do Daily Mail, chegou a avançar uma solução para se desembaraçar da «matilha de órfãos selvagens que assombram os bairros desfavorecidos»: «matá-los à mocada, como as focas bebés» [«The Politics of Envy was Bound to End Up in Flames», 12 Agosto 2011, http://www.daily-mail.co.uk/] .
Desde há anos que os comentadores se dedicavam a documentar a estupidez do «subproletariado» britânico; a partir de agora, eles descrevem-no como infestado por animais ameaçadores.
O primeiro-ministro conservador David Cameron, influenciado por análises desse tipo e por uma (compreensível) atmosfera de cólera e de pavor, sugeriu que as pessoas, dadas como culpadas de participação nos motins e nas pilhagens, sejam expulsas das suas habitações sociais e privadas dos seus apoios sociais. Uma mensagem límpida: se vocês são pobres e cometerem um crime, serão punidos duas vezes.
Com esta febre a levar à histeria, e a histeria ao absurdo, foram decretadas as mais despropositadas penas em processos expeditos: «Uma mãe de dois filhos não implicada nos tumultos, acaba de ser condenada a cinco meses de prisão por ter aceite uns calções provenientes de uma loja pilhada», postava a conta Twitter da polícia da cidade de Manchester, antes de a mensagem ser retirada. Uma pena de quatro anos − superior à aplicada em alguns assassinatos − foi infligida a dois jovens por terem tentado organizar, através do Facebook, um motim que nunca aconteceu.
Nos dias que se seguiram aos episódios de violência, a sociedade inglesa assemelhava-se à dos «animais doentes com peste» descrita por Jean da La Fontainte (1621-1695). Em 2009, o «escândalo das despesas» revelou que um grande número de parlamentares rapinava o dinheiro público. Mas só três deputados foram presos. Alguns tinham facturado aos contribuintes o mesmo tipo de ecrãs plasma que foram furtados nas pilhagens. Dado como culpado por ter obtido o reembolso de 8750 libras esterlinas (cerca de 10 mil euros) por uma televisão Bang & Olufsen, o deputado trabalhista Gerald Kaufman teve simplesmente de devolver o dinheiro. Por seu lado, Nicolas Robinson, um homem de 23 anos sem cadastro, vai passar seis meses na prisão: durante um motim, roubou água mineral no valor de 3,50 libras (cerca de 3,70 euros). Tudo depende de se ser poderoso ou miserável…
Pobres contra pobres
David Cameron começou por surpreender no discurso que fez a 15 de Agosto último. Os recentes acontecimentos, afirmou, «constituem um sinal de alarme para o nosso país: acabam de nos explodir na cara problemas sociais que estavam em incubação desde há décadas.» Será que os conservadores estavam a querer defender teses progressistas e a convidar a que fossem tomadas em consideração as raízes socioeconómicas dos motins? Não exactamente. Os «problemas sociais» que o primeiro-ministro identificava prometendo ter «a coragem de os enfrentar», resumiam-se a «um lento desmoronamento moral»: «Fihos sem pais, escolas sem disciplina e recompensas sem esforço».[1] Promover a lógica segundo a qual a pobreza decorreria de problemas comportamentais, de falhas (ou mesmo de escolhas) individuais constitui uma boa forma de legitimar o projecto conservador de corte dos orçamentos ligados à protecção social. Uma das mais contestadas propostas do governo consistiu em limitar o apoio à habitação, concedido principalmente a trabalhadores pobres. (…)
No Reino Unido, como noutros lugares, o desprezo e a intolerância suscitam a mais das vezes o opróbrio geral! (…) É a época em que os jornalistas e os dirigentes políticos de todos os quadrantes explicam que «a partir de agora fazemos todos parte da classe média». Todos, com excepção de um grupo que se situa no fundo da escala social. O suposto aburguesamento dos operários teria, na realidade, feito aparecer, como que por decantação, um refugo supérfluo. «Aquilo a que chamávamos as respeitáveis classes operárias, praticamente desapareceu», afirmava em 2007 o jornalista Simon Heffer. «Em geral, aqueles que dantes os sociólogos identificavam como “os trabalhadores” não fazem nada: vivem do Estado-providência»[2]
Raros são aqueles que, no seio da elite britânica, se preocupam tão pouco em disfarçar o seu discurso: tão raros como os que não partilham esta análise. Retomando as teorias do libertário norte-americano Charles Murray[3], a direita assegura que as pessoas que não integraram a classe média são excrescências «naturais» de mães solteiras. O New Labor de Tony Blair preferia qualificá-los como «excluídos». Sublinhando sempre, como Mathew Taylor, antigo director de estratégia de Tony Blair, que o conceito implica «que a pessoa se exclua a si própria, que a sua condição social se veja reproduzida pelo seu comportamento individual».
Uma evolução destas (pessoas) constitui uma vitória para a antiga primeira-ministra Margaret Thaetcher, instigadora da contra-revolução liberal no Reino Unido. Em 1978, seis meses antes da sua vitória, declarava: «Na verdade, a pobreza extrema desapareceu deste país». Se ela perdurava, aqui e acolá, era às vezes «porque algumas pessoas não sabem seguir um orçamento[4] (…) mas sobretudo porque o que persiste são os defeitos individuais».
Assistimos, então, à consolidação do consenso político segundo o qual toda a gente deve tender para a incorporação na classe média, mesmo que tenha de se punir os que «recusem» fazê-lo. Um trabalho de sapa desagrega os antigos pilares da identidade operária britânica: indústrias que faziam viver cidades inteiras, como por exemplo as docas ou as minas; instituições, como os sindicatos ou os investidores sociais; e certos valores, como o da solidariedade, desde então preterida em favor do individualismo.
A primeira consequência deste assalto é a modificação da forma como se olha para as classes populares. Num estudo da consultora Britain Thinks publicado em 2011, 71% das pessoas inquiridas descrevia-se como pertencendo às classes médias. «Desde o final dos anos 80 que coloco a mesma questão, que se prende com a identidade social», nota Deborah Mattinson, responsável pelo estudo. «Ora, desde há pouco tempo, a categoria “classes populares” parece representar um insulto, tal como outros termos como por exemplo ‘chav’»[5], mesmo para pessoas para quem a única categoria apropriada seria “classes populares”, mas que já não desejam ser associadas a uma categoria vista como desvalorizadora quando comparada com essa outra, mais gratificante, de “classes médias”.
No momento em que também a esquerda neotrabalhista abandona a ideia de que a pobreza e o desemprego resultam do sistema capitalista, surge um sentimento de culpa entre as vítimas do modelo económico vigente. Para elas, já não se trata de mudar as suas condições de vida, mas de lhes escapar.
No entanto, ninguém sugere que as classes populares não tenham evoluído. Em 1979, mais de 7 milhões de pessoas trabalhavam no sector industrial: hoje não são mais do que 2,5 milhões. Desde essa altura, encontramos menos trabalhadores nas minas e na grande indústria do que em call centers, supermercados ou escritórios. As tarefas são mais «limpas», menos físicas e podem ser executadas por mulheres. Mas os empregos são mais precários, menos prestigiosos e (ainda) mais mal pagos. Após três décadas de liberalização das leis sobre o trabalho, perto de 1,5 milhões de pessoas têm de se contentar com um trabalho a meio tempo. Um número equivalente de trabalhadores temporários pode ser despedido em menos de uma hora, sem qualquer indemnização. E não têm direito a férias pagas.
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Em 2009, um estudo da Fundação Prince’s Trust estabeleceu que os jovens no desemprego eram mais susceptíveis do que os outros a sofrerem de ansiedade, de depressão ou de manifestarem comportamentos suicidas. Em Tottenham, onde os motins começaram, há 34 pedidos de emprego por cada oferta de trabalho. A imensa maioria das pessoas intimadas tem menos de 24 anos e está no desemprego. Será mesmo de espantar que esta população − que se considera sem futuro por não ter um emprego a conservar, nem uma carreira a construir − se tenha mais facilmente envolvido nos motins de Agosto passado do que a dos bairros ricos?
A pobreza e o desemprego não conduzem mecanicamente à pilhagem, mas basta uma minoria para mergulhar um bairro no caos.
Longe de constituírem o levantamento político dos pobres e dos deserdados que alguns esperavam, os motins de Agosto fizeram as suas principais vítimas entre os mais desprotegidos. Pobres contra pobres: uma divisão útil ao poder conservador, que não perde nenhuma oportunidade de a explorar. As «revelações» da imprensa sensacionalista relativas a «esses imigrantes que vivem no luxo»[6] estimulam seguramente o ressentimento de uma parte dos 5 milhões de pessoas que esperam com impaciência nas listas de espera da habitação social.
Da mesma forma, os «dossiês especiais» sobre as fraudes nos subsídios atiçam as brasas da cólera de todos os que se contentam com os mínimos sociais − mesmo que a fraude nas prestações sociais esteja avaliada em 1,2 milhões de libras por ano (cerca de 1,4 mil milhões de euros) e custe cinquenta e oito vezes menos, aos contribuintes, do que a evasão fiscal. (O ministro Pedro Mota Soares, do CDS-PP, anunciou hoje que «vai moralizar o Rendimento Social de Inserção diminuindo-o em 70 milhões de euros»... para poder dar um pouco mais aos Reformados com pensões de miséria - reformados, esses, que são a sua «base de apoio eleitoral» - acicatando, assim, o ódio entre pobres; ao mesmo tempo que anunciou que vai contratar dezenas de fiscais a mais para policiar os utentes do RSI... Já um Secretário de Estado havia, outrora, dito que iria contratar «fiscais» para fiscalizar os cafés por não passarem facturas...)
Os motins terão contribuído para a fragmentação das classes populares. Nestes tempos de descalabro financeiro, não é indiferente dirigir o olhar dos pobres para os seus vizinhos ainda mais pobres, em vez de o dirigir para as remunerações pagas aos membros dos conselhos de administração. Estas aumentaram 55% em 2010.
Owen Jones
Autor de: «Chavs. The Demonization of the Working Class», Verso, Londres, 2011.
in Le Monde Diplomatique (ed. em português), Setembro 2011, p. 21
[1] A MORALIZAÇÃO DA CRISE - Em Portugal foi este, igualmente, o discurso dominante do «Programa de Mário Crespo», com João Duque e Medina Carreira, na SIC-Notícias e que levou Nuno Crato (figurante habitual daquele Programa) ao poder… É este, ainda, o discurso dominante da Igreja católica em Portugal, também. Mal chegado ao poder, Nuno Crato esqueceu de imediato «a recompensa do esforço» … (entre outras coisas). [Nota do Editor deste blog]
[2] «We Pay to Have an Underclass», The Telegraph, Londres, 29 de Agosto de 2007.
[4] Discurso de Isabel Jonet e de alguns acólitos da DECO que julgam que, instruindo os casais pobres a elaborar Folhas de cálculo-Excel com as despesas mensais, conseguem que eles se livrem da pobreza…
[5] ‘Chav’ sinónimo de ‘proleta’, ‘escumalha’ ou ‘criança’ (em linguagem rome), ‘jovem de origem popular que usa fato de treino’ [dicionário Collins], ‘anti-social’, ‘ignorante’, ‘consumidor de álcool’, etc. cf. The Independent, Londres, 20 de Março de 2011.
[6] Os nossos sentimentos mais baixos, como p. ex., a inveja: lembremo-nos dos comentários feitos aos utentes do Rendimento Mínimo que «tomavam o pequeno-almoço no Bar» enquanto nós, os bem empregados, o tomamos em casa antes de sair… [Nota do Editor deste blog]