teologia para leigos

9 de novembro de 2011

AS DESIGUALDADES SOCIAIS EXIGEM SEUS SACERDOTES 1/2

[O ‘sistema das castas’ à PSD_PP - Os neo-liberais andam muito preocupados com os pobres, desde David Cameron, Isabel Jonet a Pedro Mota Soares… Ao ouvir a linguagem deste ministro da «solidariedade social» a respeito da forma de aplicar a ajuda social (Mota Soares fala de «orçamento disciplinado mas com consciência social»...), sinto-me re-enviado ao sistema das castas indianas e à narrativa que manietou o próprio Gandhi, incapaz de liderar um projecto revolucionário que saltasse fora das Leis de Manu e atacasse a raiz do problema. De que monstruosidades somos capazes? Uma vida com dignidade mínima para todos, afinal de contas, em que consiste?]


[A «austeridade social» deste Governo PSD-CDS assenta numa mente perversa: exige a existência de párias, de dejectos humanos, para que essa política social seja socialmente aceite.
Com base em quê? Numa moralidade assistencialista benemérita, pseudo-cristã, que a legitime. Daí a aposta de Pedro Mota Soares nas IPSS's... O poder sempre exigiu a benção da religião, para legitimar 'o roubo'. E as tristes IPSS's põem-se-lhe a jeito! Com base em que 'cristo'? O Governo agradece a «benção da Igreja Católica» e a não denúncia sistémica da iniquidade social não aumentando o IRC às IPSS's...]



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Não há ‘Sistema de Castas’ sem exclusão



«Intocáveis - recolhendo esterco...



As LEIS de MANU [1] , ou Código de Manu (parte da colecção dos Livros Brâmans, séc. II aC − séc II dC), antigo texto indiano, é um dos escritos mais exemplarmente ideológicos de toda a história da humanidade.

Em primeiro lugar, porque, embora o texto aborde o universo inteiro de modo a incluir até mesmo as suas origens míticas, centra-se, contudo, nas práticas quotidianas enquanto materialidade imediata da ideologia: como (onde, quando, o quê e com quem…) comemos, defecamos, temos relações sexuais, andamos, entramos num edifício, trabalhamos, combatemos, etc. etc.

Mas também porque o livro põe em cena uma viragem radical em relação ao seu ponto de partida (o seu pressuposto) − ou seja, o antigo Código Védico.

O que descobrimos nos Vedas é uma cosmologia brutal que assenta no matar e no devorar: as coisas superiores matam e comem/ consomem as inferiores, o mais forte devora o mais fraco − quer dizer, a vida é um jogo de soma zero em que a vitória de um é a derrota de um outro. A «grande cadeia do ser» surge aqui como alicerçada na «cadeia alimentar», na grande cadeia da devoração: os deuses devoram os humanos mortais, os humanos devoram os mamíferos, os mamíferos devoram outros animais inferiores que devoram plantas, as plantas «devoram» água e terra… tal é o eterno ciclo do ser.

Mas, porque proclamam, então, os Vedas que a camada social mais elevada não é a dos reis-guerreiros mais fortes do que todos os outros humanos, «devorando» todos os outros, mas a casta dos sacerdotes?

É aqui que a habilidade ideológica do Código de Manu se manifesta: a função dos sacerdotes é impedir a devoração do nível cósmico primeiro e superior − a devoração dos humanos mortais pelos deuses.

Como?
Através da realização de sacrifícios rituais.

Os deuses têm de ser apaziguados, a sua fome de sangue tem de ser satisfeita, e o expediente dos sacerdotes é oferecer aos deuses um sacrifício (simbólico) de substituição: um animal ou outro alimento prescrito em vez da vida humana. O sacrifício é necessário não para garantir quaisquer favores especiais dos deuses, mas para assegurar que a roda da vida continuará a girar. Os sacerdotes desempenham uma função relativa ao equilíbrio do universo inteiro: se os deuses tiverem fome, todo o ciclo cósmico da vida será perturbado. Desde o primeiro começo, a ideia «holista» da grande cadeia do Ser − cuja realidade é a brutal cadeia do mais forte que devora o mais fraco − assenta num engano: não é uma cadeia «natural», mas uma cadeia que assenta numa excepção (os humanos que não querem ser devorados). Assim, os sacrifícios são acrescentos substitutos que visam restaurar o ciclo completo da vida.

Tal era o primeiro contrato entre os ideólogos (sacerdotes) e os que ocupam o poder (reis-guerreiros): os reis, que detêm o poder efectivo (sobre a vida e a morte dos restantes), reconhecerão a superioridade formal dos sacerdotes como casta superior, e, em troca dessa aparência de superioridade, os sacerdotes legitimam o poder dos reis-guerreiros como parte da ordem cósmica natural. Todavia, por volta dos séculos VI e V a.C., emergiu uma novidade: uma radical «reavaliação de todos os valores», à maneira de uma réplica-endereçada, universalista, contra esta cadeia alimentar, traduzindo-se na rejeição completa de toda a máquina infernal da vida que se reproduz através do sacrifício e da devoração. O círculo da cadeia alimentar é agora visto como o círculo do sofrimento eterno, e a única maneira de alcançar a paz é fugir dele.

(O que, evidentemente, no que concerne à alimentação, acarreta o vegetarianismo: a não ingestão de animais mortos.)

Deixando de perpetuar o ciclo vital, avançamos para a meta do acesso ao Vazio intemporal. Devido a esta inversão de uma atitude de afirmação da vida em renúncia ao mundo, comparável à rejeição cristã do universo pagão, os valores superiores já não são a força e a fertilidade, mas a compaixão, a humildade e o amor. O próprio sentido do sacrifício se transforma por meio desta inversão: deixamos de sacrificar não para que o ciclo infernal da vida possa continuar, mas a fim de nos libertarmos da culpa que é a participação nesse ciclo.

Quais são as consequências sociais e políticas desta inversão?

Como procurar evitar a conclusão de que toda a hierarquia social, assente na «grande cadeia alimentar» dos devoradores e dos devorados, deverá ser suspensa?

É aqui que deparamos com a cintilação do génio de As Leis de Manu: a sua operação ideológica fundamental é unir a hierarquia das castas à renúncia ascética ao mundo fazendo da própria pureza o critério do lugar de cada um na hierarquia das castas: «O vegetarianismo era proposto como o único meio de cada um se libertar dos laços da violência natural que afectam adversamente o seu karma. Um elemento concomitante desta nova prática dietética era uma hierarquia social governada, em larga medida, pela realização relativa do ideal da não-violência. A ordem estatutária das classes sociais não mudou. Mas a razão que justificava essa ordem, sim.»

1.Os sacerdotes vegetarianos ocupam o lugar do topo, tão próximos da pureza quanto é humanamente possível.
2.Seguem-se-lhes os reis-guerreiros que controlam a sociedade, impondo-lhe a sua dominação e matando a vida − são, de certo modo, o negativo dos sacerdotes, ou seja, mantêm perante a Roda Vida  a mesma atitude negativa que os sacerdotes, embora em termos de agressão/intervenção.
3.Vêm, depois, os produtores que garantem os géneros alimentares e as outras condições materiais da vida.
4.E, por fim, na base, estão os sem-casta, cuja tarefa principal é ocuparem-se de excrementos de toda a espécie, dos despojos mortos e em putrefacção dos seres vivos (da limpeza das instalações sanitárias até ao abate dos animais e à remoção dos cadáveres humanos).

Uma vez que as duas atitudes são, em última análise, incompatíveis, [casamento da ‘hierarquia’ com a ‘renúncia ascética ao mundo’] a tarefa de as unificar é impossível e só pode ser levada a cabo por meio de uma complexa panóplia de expedientes e compromissos cuja fórmula fundamental é a de uma universalidade comportando excepções:em princípio, sim, mas…’. As Leis de Manu demonstram uma habilidade assombrosa neste capítulo, não sem que muitas vezes os exemplos se aproximem perigosamente do ridículo.[2] Por exemplo, os sacerdotes devem estudar os Vedas e não fazer comércio; em situações extremas, no entanto, um sacerdote pode comerciar, mas não lhe é permitido o comércio de certas coisas, como as sementes de sésamo, excepto em determinadas circunstâncias, e, se vender sementes de sésamo em circunstâncias inadequadas, renascerá sob a forma de um verme entre excrementos de cão… Não encontraremos aqui, exactamente, a mesma estrutura que a famosa anedota judaica sobre o casamento que reinterpreta positivamente cada um dos defeitos da futura noiva…:

«É pobre…» − «Por isso, saberá poupar o dinheiro da família, fazendo-o render o máximo possível!» «É feia…» − «Por isso, o marido não terá de recear que ela lhe seja infiel!» «É gaga…» − «Por isso saberá estar calada sem enfadar o seu marido com uma tagarelice constante!» E assim por diante, até às réplicas finais: «Mas cheira tão mal!» − «Não me diga que queria que fosse a perfeição em pessoa, sem o mais pequeno defeito?»

A fórmula geral da operação é «afirmar uma regra geral, relativamente à qual tudo o que se segue no tratado não constitui mais do que uma série de excepções cada vez mais específicas… «Uma injunção específica é mais forte do que uma injunção geral.» Por outras palavras, a grande lição de As Leis de Manu é que o verdadeiro poder não reside nas suas proibições directas, mas no regular as próprias violações da proibição; a lei aceita silenciosamente que as proibições fundamentais sejam violadas (ou solicita-nos até, discretamente, que as violemos), e, então, quando nos encontramos numa posição de culpa, diz-nos como reconciliar a violação com a Lei, violando a proibição em termos regulados.[3]

É uma operação que nada tem de «oriental»; a igreja cristã encarou o mesmo problema a partir do século IV, depois de se ter tornado a Igreja do Estado: como se reconciliaria a sociedade feudal de classes, em que os ricos senhores governavam camponeses espoliados, com a pobreza igualitária do colectivo dos crentes, tal como a descreviam os Evangelhos? A solução de Tomás de Aquino foi dizer que, embora a propriedade em comum fosse superior (pelo menos em princípio), isso só seria válido para seres humanos perfeitos; mas, porque a maior parte de nós vive no pecado, a propriedade privada e as diferenças de fortuna são naturais, e torna-se até pecaminoso reclamar o igualitarismo ou a abolição da propriedade privada nas nossas sociedades decaídas − ou seja, torna-se pecaminoso reclamar para seres imperfeitos o que convém apenas à perfeição.

O próprio budismo cai muitas vezes nessa armadilha − por exemplo, quando permite (apenas) a violência cometida nos termos de uma atitude não violenta, graças à paz e à distância interiores: «Embora o Buda tenha proibido que se tire a vida, ensinou também que, até que todos os seres sensíveis estejam unidos pelo exercício da compaixão infinita, nunca haverá paz. Portanto, enquanto meios de introduzir harmonia entre as coisas que são incompatíveis, matar e fazer a guerra são acções necessárias[4]


Slavoj Zizek


«Viver no Fim dos Tempos», Relógio d’Água, Junho 2011, pp. 38-41. ISBN 978-989-641-238-8.



[1] Leis de Manu: http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_de_Manu [Nota deste editor].

[2] Nunca me hei-de esquecer que uma ‘senhora de bem’, fundadora dum Movimento para ajudar ‘gente mal paga’, estabeleceu o controlo das compras efectuadas pela respectiva ‘ajuda monetária’, a fim de saber se era bem empregue, ou se, pelo contrário, não era gasta em produtos ruins (ex.: chocolates, doces, bebidas com álcool, tabaco, etc.). Pobre não tem direito a ser pobre ao modo dos ricos, os quais gastam livremente o dinheiro nesses bens e não são inquiridos/incomodados por ninguém. [Nota deste editor]
[3]  Cf. A disputa entre os Judeus-Fariseus e Jesus quanto às condições em que um judeu podia «passar carta de divórcio» à sua mulher: cf. Mc 10:1-12; Mt 5:31-32; Mt 19:15-9; «Eles [os fariseus], porém, objectaram: «Então, porque é que Moisés preceituou dar-lhe carta de divórcio, ao repudiá-la?» [v.9]. A esta pergunta, Jesus responde com uma interpretação teológica «não casuídica» e propõe um modelo social/matrimonial assente na ‘dignidade originária de todo o ser humano’, ou seja, um modelo civil não dependente da religião-normativa. Jesus revoluciona, porque rebenta com a norma religiosa. Jesus é um revolucionário ‘radical’: vai à raiz da questão [Mt 5:17 - «Jesus vai até à perfeição»]. Jesus foi muito mais longe que Gandhi… [Nota da responsabilidade do editor deste blog].
[4] Shaku Soen, citado em Brian A. Victoria, ‘Zen at War’, Nova Iorque, Weatherhilt, 1998, p. 29.