teologia para leigos

30 de outubro de 2011

AUTORIDADE DA HIERARQUIA, DEMOCRACIA E DEUS

31º Domingo do Tempo Comum – o Domingo que «sugere» que arranquemos/rasguemos algumas páginas ao Código do Direito Canónico da Igreja Católica…





Como é possível ouvir Ler o Evangelho de hoje – este pedaço de Mateus 23:1-12 – e continuar a assistir a certas coisas como se nada fosse?

Vejamos.

À medida que vamos lendo, sem interrupções, o evangelho de Mateus, vamo-nos dando conta dum crescendo no conflito «de vida ou de morte» entre o sonho de Jesus (que Ele diz ser também «o sonho de Deus-Pai») e os projectos da Hierarquia religiosa do seu tempo. O cap. 18 dá-nos, a traços largos, como deve ser a «vida da Fé», a Vida Espiritual da Comunidade Cristã, mas no cap. 19 começa o enfrentamento que desembocará na morte, e morte ignominiosa de cruz (pelo meio há referência explícita à Paixão – «Jesus chamou os Doze à parte e disse-lhes: vamos subir a Jerusalém», 20:17).

Após «a derrota política do poder religioso de Jerusalém» [ano 70 d.C.], a religião oficial entra em desespero e busca denodadamente um futuro (para o judaísmo). Enceta-se um vivo debate público – os ânimos estão à flor da pele. Todos sabem que a exaltante experiência multi-secular da sua religião está prestes a acabar para sempre. O «padre» morreu, mandaram «fechar» a igreja e – suspeita-se! – todos tornar-se-ão «crentes em auto-gestão», crentes entregues a si próprios [vide: destruição do Templo e proibição do Sacerdócio em Jerusalém]. A Comunidade de Mateus entra também nesse debate, ao lado de muitos outros grupos.

Trata-se de entender este fortíssimo ataque verbal «de Jesus» contra escribas e fariseus. Stanton [«Origin and Purpose», 1906-8] interpreta-o como «recados para dentro» da Comunidade de Mateus. De facto, a Comunidade era uma miscelânea de pontos de vista judaicos que, à época, fervilhavam na Sinagoga de Antioquia. De facto, estava em questão a autoridade dentro da Comunidade. Neste domingo lemos, apenas, metade da narrativa – aquela que se dirige às multidões e aos discípulos (v.1).

De entre todos os versículos (que são 13), destaco apenas alguns.

O v.2 - «sentam-se na cátedra de Moisés» - não se refere à «função magistral» de interpretar as Escrituras. Jesus por mais de uma vez havia contestado a legitimidade da elite religiosa a esse respeito [9:10-13; 12:1-14; 15:1-20; 16:1-12; 15:13-14; 19:3-12; 21:33-34] – o ensino da elite religiosa carecia de autoridade: Mt 7:29! Não faria sentido Jesus «voltar à vaca fria»…

«Sentar-se» [M.A.Powell] significa «exercer a autoridade». Ou seja, o que está em causa é o modo «como se governa» a comunidade. Numa Comunidade teologicamente pobre (“analfabeta”), o que é colocado em julgamento é o seguinte:

(1º) O que é que a autoridade instituída na Comunidade faz (ou não fez) para que os crentes possam falar das razões do seu acreditar?

(2º) Como é que a autoridade instituída na Comunidade avalia, ao longo da sua caminhada, o crescimento da Fé dos seus crentes?

 Quando a autoridade (por exemplo, dum Padre) se alicerça no «seu» poder (poder que lhe é conferido por «um Código» do Direito Canónico), esse Padre fica ferido de morte pela condenação que Jesus faz no Evangelho deste domingo.

Em certos e determinados momentos de aceso debate público no seio da Comunidade (como era o caso da Comunidade Mateana em Antioquia, por volta do final do 1º século), invocar o poder outorgado por um Código ou puxar pelos galões de «Pai-da-comunidade» ou de «Teólogo-da-comunidade» ou de «Presbítero-Guia» é anti-evangélico - Jesus diz-nos que isso fere de morte a Comunidade cristã.[v.12]

Seria saudável que, de quando em vez, os crentes redigissem o «livro branco» acerca da autoridade (ou do autoritarismo) entre as suas gentes! Na verdade, Jesus quis que fossemos todos iguais («irmãos», v.8) e que não houvesse distinção de nível social, de poder de decisão ou de qualquer tipo de supremacia (musculada, psicológica, subtil ou subliminar…).

Jesus quer que a Comunidade seja uma democracia em construção, verdadeira, contínua: para isso, há que respeitar as Regras Democráticas básicas… Como passar à Comunhão atropelando a democracia?

Os v. 5-7 – «a fim de se tornarem notados… ocupam os primeiros lugares nos banquetes e nas sinagogas» – Vem-me à mente a muito recente Jornada de Assis «Peregrinos da Verdade, Peregrinos da Paz», protagonizada pelo Papa Bento XVI, e que juntou 300 líderes religiosos.

Entre o mediatismo e o pitoresco da viagem colectiva em comboio desde a estação do Vaticano até à Úmbria, em que na carruagem do Papa foi também Rowan Williams, arcebispo anglicano de Cantuária, o patriarca ortodoxo de Constantinopla Bartolomeu I e o rabino David Rosen; para lá das 11 intervenções «antes da do papa» (como minuciosamente sublinhou o jornalista); para lá da ausência do imã da mesquita Al-Azhar, do Cairo («depois das suas relações com o Vaticano terem gelado por causa dos coptas», citação do jornal «Público», 27:X:2011, p.16); para além do espectáculo público, muito valorizado por todos, apesar de, desta vez, terem aparecido juntos apenas para os discursos e para a fotografia (os diversos líderes acabaram, depois, por rezar separadamente, não vá o Papa ser acusado de «sincretismo religioso»; Papa que se havia distanciado deste tipo de iniciativas há 25 anos atrás…); para lá da recusa do actual Papa em aceitar o convite para o debate com os não-crentes na sua própria Itália; para lá de tudo isto (que se sente «arrancado a ferros»); para lá dos mais que referidos, pela imprensa, «ataques contra os cristãos em todo o mundo» (OSCE), fica a pergunta de G. Bush aquando dos ataques às Torres Gémeas, pergunta que também devia ser dos cristãos: «porque será que nos odeiam tanto?» Enquanto esta pergunta não for devidamente respondida, qualquer tentativa de «Diálogo Inter-religioso» não passará de mera propaganda ou tentativa de «converter os outros a nós».

Tenho sérias reservas face à expressão «Processo de Diálogo Inter-religioso», na medida em que me cheira a tentativa de exercício de supremacia do Catolicismo sobre as outras manifestações religiosas [as relações entre as Igrejas Reformadas e a Católica Romana que o diga…].

O trabalho de Aloysius Pieris, sj, na Ásia (Sri Lanka) e o do padre Andrés Torres Queiruga («Diálogo de las religiones», em Santiago de Compostela, Galiza) distanciam-se, à velocidade da luz, das propostas do Vaticano e são fonte preciosa para a radicalização da Fé dos cristãos.

Diz A. Torres Queiruga: «a experiência cristã não é propriedade dos cristãos. É dom do Deus comum que foi emergindo e configurando-se num certo ponto da comunidade religiosa humana, mas que está intrinsecamente destinado a toda a humanidade (…)».

E, o jesuíta Aloysius Pieiris, a propósito da sua experiência de construção de pequenos grupos à base de membros provenientes de várias confissões religiosas, a que ele chama «comunidades humanistas de base» anti-sincretistas, anti-pluralistas, mas simbióticas: «O que acontece nas comunidades humanistas de base é uma verdadeira simbiose de várias religiões. Todas elas, estimuladas pela postura própria de cada uma com respeito às aspirações libertadoras dos pobres, e em especial por respeito à sétima característica da sua religiosidade cósmica (a que atrás se fez referência), redescobrem-se e reformulam-se quanto à sua especificidade como resposta à postura das outras.

«O que trato aqui de definir como a singularidade cristã na experiência das comunidades humanistas de base reflecte ao mesmo tempo o processo e o resultado de uma simbiose. É sinal da nossa conversão à especificidade da nossa própria religião (o cristianismo) tal como nos é apontado pelos adeptos das outras religiões. Se se quiser, isto pode ser designado por «diálogo inter-religioso».



[ver:  http://asaladecima.blogspot.com/ a 11 de Outubro de 2011]



Pergunto-me: pugnar por «preceitos religiosos pesados e insuportáveis, carregar os ombros dos outros com eles» e ter «protagonismo mediático» (Mt 23:4-7) não será querer «engrandecer-se» (v.12 - «querer ser exaltado»)?

Tenho sérias reservas quanto a este tipo de Diálogo Inter-religioso. Porque, como Jesus nos diz hoje no Seu Evangelho, «o maior é o que serve» no anonimato dos sem-nome-fiscal e «sem-voz-nos-media»


pb\