por onde começar?
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Um mundo melhor?
No século V antes da era cristã, o filósofo chinês Mozi, horrorizado com a devastação provocada pela guerra no seu tempo, perguntou: «Qual é a via para o amor universal e o benefício mútuo?» E respondeu à sua própria pergunta: «É considerar os países dos outros como o nosso próprio país.» Diz-se que o antigo iconoclasta grego Diógenes, quando lhe perguntaram de que país era oriundo, afirmou: «Sou um cidadão do mundo.» No final do século XX, John Lennon cantou que não é difícil «Imaginar que não há países […] /Imaginar que todas as pessoas/Partilham todo o mundo». Até há pouco tempo, estes pensamentos foram sonhos de idealistas desprovidos de impacte prático sobre as realidades difíceis de um mundo de estados-nação. Mas agora começamos a viver numa comunidade global.
Quase todos os países chegaram a um acordo compulsivo relativamente às emissões de gases de efeitos de estufa. A economia global deu origem à Organização Mundial do Comércio, ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, instituições que desempenham − embora imperfeitamente − algumas funções da governação económica global. Há um Tribunal Penal Internacional a dar os primeiros passos. A mudança das ideias acerca da intervenção militar com fins humanitários mostra que estamos a desenvolver uma comunidade mundial preparada para aceitar a sua responsabilidade na protecção de cidadãos de estados que não podem ou não querem protegê-los de massacres ou genocídios. Em declarações e resoluções sonantes, as mais recentes das quais proferidas na Cimeira do Milénio das Nações Unidas, os líderes mundiais reconheceram que o alívio do sofrimento dos países mais pobres do mundo é uma responsabilidade mundial − embora se aguarde ainda que os actos correspondam às palavras.
Quando as diferentes nações tinham uma vida mais autónoma, era mais compreensível − embora igualmente errado − que as pessoas de um país pensassem não ter obrigações (para lá da obrigação de não ingerência) para com as pessoas dos outros estados. Mas essa época já terminou há muito. Actualmente, como vimos já, as nossas emissões de gases de efeito de estufa alteram o clima em que vivem todas as pessoas do mundo. As nossas aquisições de petróleo, diamantes e madeira possibilitam que os ditadores comprem mais armas e fortaleçam o domínio exercido sobre os países que tiranizam. As comunicações instantâneas mostram-nos como vivem outras pessoas, e estas, por seu turno, ficam a saber como vivemos e aspiram ao nosso modo de vida. Os transportes modernos permitem que, mesmo pessoas relativamente pobres, percorram milhares de quilómetros e, quando as pessoas estão desesperadas para melhorar a sua situação, as fronteiras revelam-se permeáveis. Como afirmou Branko Milanovic, «É irrealista pensar que as grandes diferenças de rendimento existentes entre as costas norte e sul do Mediterrâneo, ou entre os Estados Unidos e o México, ou entre a Indonésia e a Malásia, podem subsistir sem pressões migratórias acrescidas.»
A época que se seguiu à assinatura do Tratado de Vestefália (em 1648) marcou o apogeu do Estado soberano independente. Protegidas pela suposta inviolabilidade das fronteiras nacionais, as instituições democráticas liberais cimentaram-se nalguns países, ao passo que noutros os governantes levaram a cabo o genocídio dos seus próprios cidadãos. De tempos a tempos eclodiram guerras sangrentas entre os estados-nação independentes. Embora possamos recordar essa época com alguma nostalgia, não devemos lamentar o seu fim. Ao invés, devemos assentar os alicerces éticos da época de uma só comunidade mundial que se avizinha.
Há um importante obstáculo que se coloca ao avanço nesta direcção. Tem de se dizer, numa linguagem franca e directa, que, nos últimos anos, o esforço internacional de construção de uma comunidade mundial foi dificultado pela repetida incapacidade manifestada pelos Estados Unidos para participar nesse processo. Apesar de serem o maior poluidor individual da atmosfera mundial e, numa base per capita, o país que mais desperdiça, entre as principais nações, os Estados Unidos recusaram unir-se aos 178 estados que ratificaram o Protocolo de Quioto. Juntamente com a Líbia e a China, os Estados Unidos votaram contra a criação de um Tribunal Penal Internacional destinado a julgar pessoas acusadas de genocídio e crimes contra a humanidade. Agora, que o tribunal parece ir para a frente (este livro foi editado em 2002), o governo norte-americano afirmou não ter qualquer intenção de participar nele. Os Estados Unidos escusam-se insistentemente a pagar as cotas em atraso às Nações Unidas e em Novembro de 2001, mesmo depois de terem saldado parte da dívida após os ataques de 11 de Setembro, ainda deviam àquela organização 1,07 milhões de dólares. Apesar de serem um dos países mais ricos do mundo, com a economia mundial mais poderosa, os Estados Unidos contribuem com muito menos para a ajuda externa, em proporção do produto interno bruto, do que qualquer outro país desenvolvido. Quando o país mais poderoso do mundo se escuda atrás daquilo que − até ao dia 11 de Setembro de 2001 − considerava ser a segurança do seu poderio militar e se recusa arrogantemente a prescindir dos seus direitos e privilégios a favor do bem comum − mesmo quando há outros países a prescindir dos seus direitos e privilégios −, as perspectivas de encontrar soluções para os problemas mundiais estão ensombradas. Só nos resta esperar que, apesar de tudo, quando o resto do mundo enveredar pelo caminho certo − como fez ao assinar o Protocolo de Quioto e faz agora com a criação do Tribunal Penal Internacional −, os Estados Unidos acabem por sentir vergonha e se juntem aos restantes. Se não o fizerem, arriscam-se a cair numa situação em que serão vistos por todos, excepto os seus próprios cidadãos presumidos, como a «superpotência-pária» do mundo.
Mesmo de um ponto de vista estrito de satisfação dos interesses próprios, se os Estados Unidos pretendem a cooperação doutros países em questões que são sobretudo do seu interesse − como a luta para eliminar o terrorismo −, não se podem dar ao luxo de ser vistos dessa forma.
Afirmei que, à medida que vão surgindo cada vez mais questões a exigir soluções ao nível mundial, vai diminuindo o grau de autonomia de qualquer Estado na determinação do seu futuro. Precisamos, portanto, de fortalecer as instituições onde se realiza a tomada de decisões a esse nível e torná-las mais responsáveis perante as pessoas que afectam. A linha de pensamento conduz a uma comunidade mundial com a sua legislatura directamente eleita, talvez construindo-se lentamente segundo o modelo da União Europeia. Actualmente há pouco apoio político a estas ideias. Para lá da ameaça que tal ideia representa para os interesses dos cidadãos dos países ricos, muitos diriam que coloca demasiadas coisas em perigo, visando benefícios que não são certos. Acredita-se amplamente que um governo mundial seria, na melhor das hipóteses, um monstro burocrático não controlado que faria parecer a burocracia da União Europeia uma operação sóbria e eficiente. Na pior das hipóteses, tornar-se-ia uma tirania mundial, não controlada nem questionada. (…)
Precipitarmo-nos para o federalismo mundial seria demasiado arriscado, mas poderíamos aceitar a importância decrescente das fronteiras nacionais e adoptar uma abordagem pragmática, gradual, da governação global. Os capítulos anteriores (deste livro) defenderam a existência de boas razões para o estabelecimento de normas globais nas áreas do ambiente e do trabalho. A Organização Mundial do Comércio deu sinais de apoiar a instituição de regras laborais básicas por parte da Organização Internacional do Trabalho.
Se estas regras forem propostas e aceites, não serão de grande utilidade se não existir um organismo global que verifique a sua implementação e permita que outros países imponham sanções comerciais relativas aos bens não produzidos em conformidade com essas regras. Uma vez que a OMC parece ansiosa por passar essa tarefa à OIT, poderíamos ver esta última fortalecida de forma significativa. Poderia ocorrer algo semelhante relativamente às normas ambientais. É mesmo possível imaginar um Conselho de Segurança Económico e Social das Nações Unidas que se encarregaria da erradicação da pobreza global e cujos recursos para esse fim seriam votados em assembleia.[1]
Com base nos seus méritos, deve considerar-se esta e outras propostas específicas para o fortalecimento das instituições mundiais, no sentido de estas levarem a cabo uma tarefa específica.
Os séculos XV e XVI são famosos pelas viagens de descobertas que provaram que a Terra era redonda. O século XVIII assistiu às primeiras proclamações dos direitos humanos universais. No século XX, a conquista do espaço tornou possível que um ser humano olhasse para o nosso planeta a partir de um ponto a ele exterior e o visse, literalmente, como um só mundo.
O século XXI vê-se agora a braços com a tarefa de desenvolver uma forma adequada de governação desse mundo único. É um desafio moral e intelectual assustador, mas não se pode voltar-lhe as costas. O futuro do mundo depende da forma como o enfrentamos.
Peter Singer, «UM SÓ MUNDO – a ética da globalização», Gradiva, col. Filosofia Aberta nº 14, 2004, p.263-269, ISBN 972-662-955-1.
[1] Para um modelo ver: Sam Daws e Frances Stewart, Global Challenges: An Economic and Social Security Council at the United Nations. Relatório patrocinado pela Christian Aid, Londres, 2000, www.christian-aid.org.uk/indepth/0006unecon1.htm/