para lá das «bocas políticas»… ou de como é triste quem não se enxerga [vide Bispo António Marto: «O bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, criticou o que chamou de “turbo-capitalismo financeiro, que muda toda a agenda política, económica e financeira da noite para o dia e não dá sequer a possibilidade aos governos de actualizar as medidas necessárias” para enfrentar a actual crise.», como se a Igreja Católica não fosse, ELA MESMA, um monstro financeiro, um agente económico-financeiro preso nas malhas dos Mercados [BPP] e dos offshore’s da Madeira… dos subsídios do Estado para tudo e para nada (até para «praticarem a caridade» através das IPSS's). Criticar e ‘ficar dentro’ do sistema preverso é pecado mortal - «Nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’…». Não bastam 'palavras', «bocas políticas», farpadas. Impõe-se a Opção Preferencial pelos Pobres [papa João Paulo II], gestos proféticos, DENÚNCIAS COERENTES válidas também «para dentro da Igreja». Pedir AJUDA AO PODER FINANCEIRO (à Banca corrupta) e exigir TRANSPARÊNCIA FINANCEIRA ao Estado, ao mesmo tempo que se oculta a contabilidade interna, é HIPOCRISIA... É preciso ter estômago para viver da «ganhunça» interna à custa de esmolas de gente tão carenciada e piedosa... Parafraseando alguém: «da Política e da Religião, ninguém sai de mãos limpas...»]
O que é de César a César... O que é mesmo de César?
Um plano bem armado: fazer Jesus cair na armadilha de suas próprias palavras! A cilada é introduzida por um elogio que é, ao mesmo tempo, reconhecimento de integridade: "Mestre, sabemos que és verdadeiro, que ensinas o caminho de Deus... que não consideras as pessoas pela aparência..." (v. 16). Depois do elogio, a pergunta: "É lícito ou não pagar o imposto a César?"
Em caso de resposta afirmativa, toda a pregação de Jesus cairia por terra diante do povo. A ocupação romana era o que havia de mais explorador, a transferência de impostos para Roma era elemento provocador de miséria e fome. Além disso, do ponto de vista religioso, pagar o imposto significava aceitar o culto ao imperador. Na própria moeda, podia-se ler: Tibério César, Filho do Divino Augusto. Por isso, os fariseus e a maioria do povo se opunham ao pagamento.
Por outro lado, se Jesus responde que não se deve pagar o tributo, é apanhado em atitude aberta de afronta ao império. Os próprios herodianos, favoráveis ao pagamento do tributo e a serviço dos romanos, ali estavam para o flagrante.
A resposta de Jesus desmascara qualquer religião fetichista e legitimadora do sistema, seja a divulgada pela propaganda imperialista, seja a alimentada pelas autoridades judaicas (no texto, representadas pelos fariseus). É possível que Jesus tenha tocado no coração do sistema religioso romano: o lucro proveniente da cobrança do tributo imposta às províncias conquistadas por Roma. Ao questionar o caráter divino do imperador, todo culto a ele prestado (leia-se: submissão, oferenda e pagamento do tributo) está deslegitimado.
Mas também está desautorizada e ridicularizada a prática de boa parte das lideranças judaicas, que mantinham duplo comportamento. Desejavam a expulsão dos dominadores, ao mesmo tempo em que reproduziam a dominação ou usufruíam das benesses propiciadas pela ocupação, incluindo o sistema de cobrança do tributo: ainda que a maior parte dos impostos fosse repassada a Roma, as elites alimentavam seu luxo com o que retinham do montante arrecadado pelos malvistos cobradores de impostos. Se, por um lado, as autoridades judaicas se negavam a oferecer incenso ao divino César, por outro, eram beneficiadas com tal divinização.
Pagar ou devolver?
O texto de Mateus, seguindo a versão de Marcos (Mc 12,13), coloca juntos fariseus e herodianos. A narrativa de Lucas opta por classificá-los: "espiões que se fingiam de justos" (cf Lc 20,20). O interessante é que enquanto os falsos justos perguntam se é lícito ou não "pagar" (em grego, é o verbo dídomi) o tributo a César, Jesus responde com outra concepção de justiça: usa o mesmo verbo, mas acrescentando um prefixo (apo) que dá uma ênfase diferente: não se trata de pagar, mas de devolver, como pode ser traduzido o termo apodídomi.
Se na moeda está a imagem (literalmente a epígrafe) do seu proprietário, o dinheiro pertence ao opressor romano e é preciso devolver a ele. Como gosta de afirmar Gustavo Gutierrez, "se na pergunta dos fariseus está implícita a possibilidade de não pagar o tributo, também está a de ficar, nesse caso, com o dinheiro". Jesus supera o pretenso nacionalismo dos fariseus, vai à raiz: "é preciso erradicar toda dependência do dinheiro. Não basta romper com o domínio político estrangeiro, é necessário romper a opressão que nasce do apego ao dinheiro e de suas possibilidades de exploração dos demais" (O Deus da vida. São Paulo: Loyola, 1990. p. 87-88). [Cf. J.I. Gonzalez Faus, 'Jesus e o Dinheiro', Colóquio Igreja em Diálogo, Valadares, 2011]
Fazendo uso do imperativo, a comunidade de Mateus mantém enfática a resposta de Jesus: devolvam ao imperador o que lhe é devido; e, da mesma forma, a Deus o que é de Deus! No Sermão da Montanha, a comunidade já havia lembrado: Não se pode servir a dois senhores, não há como servir a Deus e ao dinheiro (Mateus 6,24). O culto a Deus não se coaduna com o culto a Mamon, aqui representado pelo sistema do império romano.
Mas o que é mesmo de César? E o que é de Deus?
Neste "a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" ainda cabe a pergunta: o que mais é de César e o que é de Deus?
Em terra ocupada, toda a população sabia que além do denário, também era de César o procurador da Judéia, nomeado pelo próprio imperador. Eram de César os exércitos invasores. "A César o que é de César" inclui, portanto, todo o anseio de libertação. O clássico texto de Marcos 5,1-20 já tinha descrito, através da imagem dos porcos lançando-se ao mar, o mesmo desejo: a legião (termo militar para designar uma corporação de soldados) volta pelo caminho de onde veio, o mar (pelo Mediterrâneo chegavam os exércitos de Cesar). Da mesma forma que no Êxodo o mar havia engolido os cavalos do faraó e a opressão do Egito foi vencida, a comunidade espera que os porcos do império sejam devolvidos ao mar. É o que pode também ser lido no "Devolvam a César o que é de César".
Em contrapartida, o que é que é mesmo de Deus? Conforme Levítico 25,23, a terra pertence a Deus, o povo é nela hóspede. Logo, não pode a terra ser tomada por outra divindade, o império romano. O povo, em última instância, é o "povo de Deus", com ele Deus fez aliança (Josué 24). A liberdade do povo é dom de Deus!
Santuário de Fátima - promiscuidade entre Evangelho e Mamon... |
Cumprir a sugestão de Jesus pode-nos trazer riscos
Há que se repetir que o processo de divinização de Jesus feito pelas comunidades é implícita ou, até mesmo, explícita oposição à divinização do imperador. Isso nos permite afirmar que o movimento de Jesus, ou pelo menos a leitura que dele se fez na segunda metade do primeiro século, traz em si forte reação antiimperialista. E se reconhecemos que a teologia imperial romana era, de fato, o centro ideológico do poder imperial, seu coração teológico, devemos admitir também que a comunidade cristã entendeu que proclamar Jesus Cristo como filho de Deus significava deliberadamente negar a César o seu mais alto título.
Consequências viriam... Não por menos, tantas lideranças tiveram a mesma sorte de Jesus. A essa altura, só restaria mesmo a um camponês de periferia, já considerado blasfemo pelas autoridades religiosas de seu povo (Marcos 14,60-64), ser condenado como malfeitor (Lucas 23,33-34).
Queimódromo do Santuário de Fátima - membro do 'Consórcio Internacional de Santuários Marianos'... |
Como o próprio Jesus, as comunidades experimentariam que não é simples "devolver a César o que é de César". O império não costuma aceitar.
Edmilson Schinelo é biblista popular e assessor do CEBI. Colaborou em publicações como Leitura Bíblica: a juventude mostra o caminho, Horizontes ainda que seja de noite e outras.