teologia para leigos

25 de outubro de 2011

PARA SAIR DA CRISE 8/8

por onde começar?

8/8

− por uma política económica de esquerda!


[Com este texto do Prof. José Reis, UC, paramos por aqui a abordagem à questão «Por onde começar?», questão que se ergueu urgente quando tomamos consciência que, com a Crise, tínhamos entrado numa NOVA ERA que, à primeira vista, punha em causa tudo. À sua maneira, cada um dos 8 contributos dão achegas para uma ‘resposta-com-convicções’ que não atraiçoe «a preocupação pelos mais frágeis» e a opção por uma «vida com um mais alto sentido» feita de horizontes largos. Julgo que nenhum dos contributos exclui nenhum dos outros sete, antes se inter-questionam e, em eventuais divergências, contribuem para apurar, para polir uma «opinião de esquerda» - velha designação com séculos subitamente rejuvenescida…]



grafiti - Rua do Carregal_Porto



Reforma ou desconstrução social:
- quanto vale a sociedade para capacitar a economia?

Seja qual for a perspectiva temporal em que nos colocarmos, é possível ver para onde vai a economia e por onde ela vai. Estamos a ver que foi para o lado errado: o do desemprego, o da escassa criação de valor internacional, o de formas de produção que não se convertem em escola de qualificações (salvo, é claro, os poucos exemplos pontuais conhecidos).

Não que a economia seja um sujeito de identidade própria e perfil autodefinido. Bem se sabe que essa resposta «é a economia, estúpido…» não é a mais inteligente de todas… Acontece, isso sim, que a economia caminha por trajectos ladeados por decisões, políticas, vontades e poderes que − estes, sim − a encaminham e, por vezes, empurram. Quer isto dizer que há lugar para a política económica e que esta é um campo de opções essenciais, e não apenas algo que dá moldura à «economia», entendida como sujeito dotado de identidade. Por isso, no mais duro dos factos característicos que evoquei, assim como no mais incontornável dos resultados a que chegámos há, evidentemente, a presença poderosa de processos políticos e sociais intensos.

Do mesmo modo, o auge da crise económica que se declarou abertamente em 2003 suscitou a presença clara de um programa político com intuitos claros de reforma. Isso é evidente.

Assumida a relação entre crise económica e promoção de reformas políticas, importa perguntar se estamos, de facto, perante reformas ou perante um processo de desconstrução social. Esta é uma linha de tensão crucial relativamente à qual se conhecem as convicções dos que não hesitam na resposta.

Parece-me claro que os tempos que correm são indistintos, sendo muito difícil perceber onde assentam as forças da economia e a vitalidade de processos sociais dinâmicos e integradores. Parece-me também claro que não estamos − longe disso! − perante uma perspectiva de desenvolvimento inclusivo. Pelo contrário, os processos de desconstrução social e política − a que frequentemente se chama ‘reformas’ − são fortíssimos.

Mas, ao contrário das reformas, são muito visíveis as formas de desfazer, não sendo nada evidentes as formas de fazer. Quer dizer, a fase essencial das reformas são o que elas contêm de elaboração, construção e difusão de um modelo social alternativo, assente em pilares positivos e inclusivos. Ora, é este aspecto que parece altamente deficitário na actual política económica.


O regresso ao trabalho:
pessoas, organização e capacidades, como resposta à crise


Acho que há, de facto, uma política económica de esquerda − a do desenvolvimento inclusivo − e que é possível definir-lhe os pilares.

O primeiro desses pilares há-de ser o trabalho[1], aquele factor que foi desperdiçado, desconsiderado e exportado na fase de crescimento intensivo dos anos sessenta e aquele que foi apenas usado em quantidade e de forma extensiva nos ciclos económicos do pós-25 de Abril (primeiro, para que, enfim, a economia criasse emprego e gerasse democracia económica; depois, para que se aproveitassem disponibilidades de mão-de-obra e salários baixos para chegar a formas de atingir crescimento).

O mundo do trabalho está abalado pela incerteza, por relações de poder muito assimétricas e pela noção de que é o elo fraco, descartável, da cadeia. A reconstituição do valor do trabalho na economia − valor material, mas também valor no quadro de relações sociais dinâmicas e não agressivas − é, porventura, o pilar essencial de uma política económica de esquerda. Tendo sido perdida a noção de que o trabalho é parte das organizações, e não apenas um factor usado por elas de forma discricionária, urge regressar a esta relação, nos termos exigidos pela nova economia do conhecimento.


O primado da concorrência é outro dos grandes fachos da política económica contemporânea. O fascínio liberal apresenta-o sempre como se tudo se reduzisse ao dilema concorrência ou proteccionismo. Este dilema é falso. Ao lado dos princípios elementares da concorrência pode haver lógicas que dêem lugar à organização da economia, para lá dos mercados. Chamo a isso organização[2]: organização empresarial, valores políticos e económicos que, em vez de apenas pensarem no «valor accionista» e na governação exclusivamente mercantil da produção, pensem também na cultura da empresa, na lealdade para com o trabalho, na valorização das capacidades, na redução da incerteza laboral. Em suma, numa relação salarial entendida como relação organizacional e não apenas como organização mercantil simples.

Mas outras formas de organização são essenciais, como a organização territorial − os territórios são lugares definidores das empresas e das relações sociais que importa valorizar. Contudo, este campo da coesão e valorização territorial está ferido por relações muito desestruturadas, pelo espalhar do casuísmo em vez do desenvolvimento, e pela insensata e brutal decisão sobre a localização do novo aeroporto, que vai virar o país do avesso, concentrando investimento num escasso território e promovendo a desintegração regional.

O terceiro pilar de uma política de esquerda há-de ser o da valorização das capacidades e da criação de competências[3]. Das pessoas em primeiro lugar, é claro. Através da escola e da formação, sem dúvida. Mas também através da promoção de contextos que criam capacidades, para lá de todas as competências individuais. É a altura de regressar igualmente ao Estado e à Administração. A direita e os liberais (mesmo os de esquerda, que também os haverá) têm dominado o palco e levam clara vantagem na propagação da ideia de que o Estado é «monstruoso» (lembram-se?) e intrinsecamente perverso (porque os seus funcionários são perversos, querem apenas maximizar os seus interesses individuais e, por isso, minam o interesse colectivo). Ora, o Estado e a Administração pública são uma das mais poderosas fontes de organização, capacitação e liderança. Sabem-no melhor que ninguém, o capital e os grandes interesses que usam selectivamente o Estado e a Administração como mais ninguém (e não se trata apenas de quando os usam ilegitimamente a seu favor). É a este uso selectivo do Estado pela direita e pelos interesses que há que contrapor um outro uso selectivo. Aquele que faça da Administração uma fonte de criação de competências, de organização, de emulação pelas causas públicas e por uma visão inclusiva do país.

A ideia (perversa) de que toda a despesa pública é má despesa tem ficado sem resposta, porque a esquerda e a lógica política corrente parecem manietadas por uma dura inibição. Parece-me necessário falar sem inibições da boa despesa pública, do necessário papel do Estado perante a «sociedade privada», bem mais ineficiente e tacanha que o próprio Estado nas suas piores facetas.



José Reis
Economista, Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Investigador do CES [Centro de Estudos Sociais] da Universidade de Coimbra.

«O Tempo dos Regressos ao Futuro: por um desenvolvimento inclusivo» (in ‘Portugal e a Europa em Crise – para acabar com a economia de austeridade’, Le Monde diplomatique & ACTUAL Editora [Grupo Almedina], Junho 2011, p. 19-22), ISBN 978-989-694-021-8.