por onde começar?
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Pensar a ‘economia social’ na era da austeridade
«IPSS's querem Estado a financiar mais...» |
Já aqui nos referimos por várias vezes (aqui e aqui) à Conferência “Economia Portuguesa: uma Economia com Futuro”, que no passado dia 30/09 reuniu em Lisboa investigadores, activistas e outros cidadãos a fim de discutir os caminhos e dilemas da economia e sociedade portuguesas, recusando os “consensos” impostos e as falsas inevitabilidades.
Uma das perspectivas que marcou presença com mais força nesta conferência foi a da economia social e solidária (ESS), particularmente numa óptica de desenvolvimento local (DL). Além da conferência ter contado com muitos representantes de organizações da ESS entre a assistência, a visão, princípios e potencial da ESS e do DL constituíram também uma parte central de várias comunicações, incluindo as de (ver post’s anteriores neste blog):
e
Pela minha parte, não podia estar mais de acordo em relação a muitos dos méritos e virtudes da Economia Social Solidária [ESS], entendida como a esfera de actividade socioeconómica cujos princípios organizadores consistem na reciprocidade e solidariedade. Esta reciprocidade e solidariedade, quer se manifestem ao nível das relações internas (por exemplo, entre membros de cooperativas) ou externas (por exemplo, através das funções desempenhadas por associações e instituições de solidariedade), reafirma as actividades de produção e reprodução económicas como actividades eminentemente sociais – isto é, como práticas colectivas que concretizam os projectos e modelos de sociedade em que queremos viver.
Além do mais, fazem-no, tendencialmente, de um modo que promove a coesão social e territorial e que é não só menos predatório em termos humanos e ambientais do que a produção e provisão mercantis como também mais flexível e territorialmente enraizado do que a provisão pública centralizada.
A economia social e solidária – as cooperativas, mutualidades e associações – têm por isso um lugar muito importante no modelo de sociedade que eu e muitos outros à esquerda defendemos, no qual coexistem diferentes formas de organização socioeconómica dentro de um enquadramento político e normativo mais amplo que combata activamente, e progressivamente erradique, as diversas formas de desigualdade e exploração.
Dito isto, porém, vale a pena chamar a atenção para alguns aspectos potencialmente mais problemáticos da ESS de modo a contribuir para evitar que esta seja instrumentalizada, precisamente, por valores e objectivos contrários aos seus.
O primeiro destes problemas potenciais consiste no risco de que as práticas que concretizam este modelo alternativo não sejam articuladas com uma crítica sistémica mais ampla. Qualquer proposta ou iniciativa na linha dos princípios da ESS e do DL que não assente numa análise, necessariamente crítica, dos processos sistémicos que dão origem aos problemas que visa enfrentar está à partida condenada a não ter mais do que um carácter caritativo ou paliativo necessariamente limitado. Para ser consequente e eficaz, o discurso e a prática da ESS e do DL não podem limitar-se a aspirar a criar “ilhas de reciprocidade” num oceano de exploração e desigualdade – pelo contrário, têm de articular constantemente a prática concreta e local com a crítica sistémica, mesmo que isto ponha em causa a imagem anódina que muitas organizações preferem apresentar de modo a mais facilmente acederem a apoios e financiamentos.
O segundo problema de algumas organizações da ESS é o da falta de consistência na aplicação dos princípios da reciprocidade, democracia e cooperação. Refiro-me, por exemplo, aos casos de organizações da ESS (por mais meritório que seja o seu trabalho) cujo funcionamento interno é profundamente autocrático, ou que (CLICAR a seguir) compactuam com a exploração e precariedade laboral através do recurso indevido ao voluntariado ou a relações laborais precárias e mal remuneradas. De pouco serve dar com uma mão e tirar com a outra – as organizações e iniciativas que pretendam realmente afirmar a ESS como modelo alternativo têm de ser especialmente cautelosas e consequentes, cultivando e afirmando o respeito pela reciprocidade, pela democracia e pelo valor do trabalho em todas as suas esferas de acção – tanto internas como externas – mesmo que isso implique reduzir a escala das suas actividades e assumir objectivos mais modestos.
O terceiro problema potencial da ESS é o da sua instrumentalização pela agenda neoliberal de destruição dos serviços públicos e redução do papel redistributivo do Estado. Embora, como referi acima, as organizações da ESS possam e devam assumir-se como parceiros importantes da provisão e acção públicas, em virtude do seu enraizamento territorial, conhecimento dos problemas e capacidade de evitar constrangimentos burocráticos e ineficiências centralistas, é fundamental ter presente que não podem nem devem almejar substituir-se à acção do Estado – pelo simples motivo que só o Estado dispõe do poder de mobilizar coercivamente os recursos necessários à satisfação das necessidades colectivas.
O maior ou menor grau de satisfação destas necessidades colectivas não pode depender da maior ou menor disponibilidade dos agentes individuais para contribuírem voluntariamente – a salvaguarda dos princípios republicanos da liberdade, igualdade e fraternidade tem de assentar, sempre que necessário, na imposição legítima de normas e na mobilização coerciva de recursos. (NOTA do Editor - ver Vídeo abaixo - as questões locais e mundiais estão interligadas e devem ser denunciadas ao mesmo tempo...)
«El orden criminal del mundo»
http://video.google.com/videoplay?docid=-639917879259387994
À ESS cabe constituir-se como espaço de associação voluntária de cidadãos a fim de prosseguirem determinados fins, que quando possuam méritos colectivos mais vastos podem e devem ser apoiados pelo Estado; não lhe cabe constituir-se como um tecido de organizações neo-governamentais ao serviço de uma agenda de redução do papel social e redistributivo do Estado num contexto neoliberal.
Por isso, o terceiro grande princípio de acção que deverá nortear a acção dos agentes da ESS que queiram afirmar este modelo de forma consequente é que a defesa dos méritos e vantagens da ESS não pode nunca ser feita de uma forma cúmplice com a redução do papel social do Estado – por mais que, no curto prazo, muitas organizações da ESS até possam considerar ter vantagem em fazê-lo, na medida em que consigam captar recursos ‘libertados’ pelos cortes na provisão pública.
A economia social e solidária pode constituir uma alternativa válida, progressista e emancipatória… mas para isso tem de assentar numa crítica sistémica, de ser consistente e intransigente na salvaguarda dos seus princípios a nível tanto interno como externo e de denunciar a agenda neoliberal de redução do papel social do Estado.
ALEXANDRE ABREU
Post em dois tempos in BLOG: «LADRÕES DE BICICLETAS»:
1ª PARTE
2ª PARTE