Crise financeira ou imobiliária?
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A situação a que chegamos é de tal modo grave que suplica a reapreciação do todo o sector imobiliário à luz da Economia Política.
A ideologia neoliberal e a Economia Neoclássica têm sido perversamente omissas na análise das relações de poder entre os três factores de produção económica:
· Louvam as especificidades do capital, amparando-o e protegendo-o;
· Criticam as exigências do factor trabalho, propondo a sua precarização;
· E, de modo desconcertante, descartam, da ponderação, o factor «terra» [ou «solo» - recurso natural escasso e com valor de mercado, que se destina, ou à agricultura, ou à construção urbana/imobiliária];
Esta abstracção neoliberal é absurda e perigosa, pois subtrai a especulação imobiliária ao julgamento moral do pensamento da Economia Política e disfarça, de «operações financeiras» inócuas, aquilo que não passa da mais antiga actividade económica parasitária conhecida: o rentismo fundiário. [[1]]
Além disso, ao tratar ingenuamente o mercado imobiliário como um «canal neoclássico» de transacções, no qual a concorrência entre ofertantes faz diminuir o preço do bem até um mínimo benéfico para o consumidor, ilude a opinião pública fazendo-a pensar que o «progresso dos mercados livres» trará uma melhoria da relação entre qualidade e preço da habitação. Infelizmente, no imobiliário não há nem pode haver concorrência perfeita. A descida de preços acompanhada de melhoria da qualidade só se produz por intervenção política ou por constrangimento creditício.
Tornou-se impossível ler a imprensa generalista ou assistir a noticiários televisivos sem receber um diagnóstico confuso, porém taxativo, da natureza da crise que vivemos: é uma crise financeira. Os bancos − diz-se − viram-se com balanços em estado de iliquidez, ou, em certos casos, de insolvência. Houve excesso de imprudência da parte do prestador e um gasto excessivo da parte do prestatário – insiste-se. Perguntamos, pois: ?que despesas tremendas podem ter causado tal depauperamento?
Segundo nos explicam, as angústias da Banca resultam do aumento da morosidade no pagamento das dívidas à aquisição de habitação: famílias e empresas volveram-se incapazes de pagar as hipotecas. (…) A Banca entrou em crise porque demasiados agentes económicos não conseguem pagar o imobiliário hipotecado.
Em Portugal, o crédito imobiliário representava, em 1998, quando a bolha imobiliária portuguesa estava já em crescimento acelerado, 73% do crédito aos particulares e 35% do crédito às empresas; em 2006 representava 80% e 56%, respectivamente.
Ora, sabemos que o território português se encontra pejado de imóveis vazios: mais de 12% dos edifícios estão desocupados, naquela que é a terceira maior percentagem de derrelicção habitacional da Europa Ocidental (apenas ultrapassada pela Itália e pela Espanha). Sabemos ainda que esta percentagem nacional sobe para próximo de 25% se lhe adicionarmos os edifícios dados como «de segunda residência», que estão de facto vazios. Apesar disso, como é que foi necessário tanto endividamento hipotecário perante esta superabundância de casas vazias?
E como interpretar o facto de o preço médio da habitação em Portugal rondar os 1200 euros por metro quadrado [Euro/m2], mesmo contabilizando-se a habitação em zonas rurais, sendo portanto quase idêntico aos preços praticados no perímetro urbano de Berlim (1400 Euros/m2), onde os salários mais do que triplicam a média portuguesa? E como interpretar, ainda, o facto de Lisboa apresentar um preço médio da habitação de 3552 Euros/m2, portanto, 2,3 vezes mais caro do que o equivalente na capital alemã?
No seu âmago, a crise não é financeira: é imobiliária. Empresários e assalariados foram obrigados pelos agentes imobiliários a endividarem-se para lá da razoável assunção de crédito. A Banca pode ter colhido rendimentos sob a forma de juros ao crédito, mas o valor principal da dívida foi colhido pelo imobiliário, graças ao modo como o seu mercado se presta com inusitada facilidade à especulação.
O mercado imobiliário, no seu âmbito mais puro − revenda e arrendamento, descontando o mercado afim da construção − apresenta feições estruturantes que o distinguem da maioria dos outros mercados de bens, politizando-o ao mais alto grau.
Em primeiro lugar, é constrangido por uma oferta rígida: não se fabrica solo, no sentido em que cada troço do espaço à superfície do planeta não pode ser reproduzido (só é possível densificar o seu uso).
Em segundo lugar, na medida em que o solo em si mesmo não se produz (não tem custos de produção), quem o compra paga um sobrepreço que não cobre qualquer custo subjacente.
Em terceiro lugar, esse mercado transacciona essencialmente direitos de propriedade, cujos conteúdos são criados e garantidos pelo Estado: cultivar, construir, etc.
Em quarto lugar, ao contrário da generalidade dos restantes mercados de bens de consumo ou de equipamento, ele opera como um jogo de soma zero: o aumento da área de solo possuída por um titular implica necessariamente a diminuição proporcional da área usufruída pelo resto do colectivo.
Em quinto lugar, uma vez que o preço do imobiliário é demasiado elevado para a maioria dos assalariados o poder adquirir a pronto, a sua compra depende das condições creditícias do momento, as quais são condicionadas pela gestão dos Bancos Centrais.
Em último lugar, mas em primeiro na lista de características moralmente significativas: o mercado imobiliário transacciona um bem essencial, imperecível e imprescindível à vida humana − o espaço para habitar e trabalhar. Por ser, além disso, escasso e sujeito a oligopólios, o imobiliário presta-se ainda mais aos fins da especulação, do que os cereais, a sobras de arte e até o petróleo.
Dadas estas características do mercado imobiliário, é uma impossibilidade, tanto teórica, como prática, liberalizá-lo. Não se pode arredar dele a regulação do Estado e muito menos trazê-lo a uma situação de perfeita concorrência. O imobiliário é e sempre será um retalho de oligopólio localizado, cujos conluios produzem, na prática, o comportamento de monopólio. Um antimercado!
(…)
Durante as duas últimas décadas, Portugal assistiu agravamento dramático desta patologia na sua vida económica. A entrada na Comunidade Económica Europeia, em 1986, ofereceu-lhe um tremendo ímpeto económico catalisado pela abertura aos mercados europeus e pelo influxo de subsídios comunitários. A estes primeiros acréscimos de capital comunitário começaram-se a juntar-se volumes de capital literalmente «trazidos do futuro» em empréstimos à habitação com juros e prazos de amortização cada vez mais baixos: em 1985 superavam os 20% ao ano, descendo para menos de 4% em 2005.
Graças a estes processos, o acesso à habitação não se tornou mais fácil: o crédito serviu apenas para multiplicar por cinco ou mais vezes o preço real dos imóveis, apesar de o seu custo de construção se ter mantido constante.
Como a diferença entre o preço da habitação e o custo de construção representa essencialmente o preço do solo, constata-se que o crescente endividamento dos portuguesas mais não serviu do que para gerar «fortunas trazidas pelo vento» (financeiro) e depositá-las aos pés dos agentes imobiliários que prosperaram na compra, no açambarcamento especulativo e posterior revenda a preços artificialmente inflacionados de terrenos e edifícios, sem lhes acrescentarem qualquer benfeitoria merecedora de tal recompensa.
O currículo das licenciaturas contemporâneas de Economia praticamente não versa o imobiliário e o rentismo que a explora como variáveis maiores da vida económica.
Esse missal da maioria dos estudantes contemporâneos de Economia Neoclássica, o livro de Paul A. Samuelson e William D. Nordhaus, desvia dele o olhar e dedica-lhe apenas três das suas mais de 700 páginas. A ortodoxia neoliberal parece ser, no fim de contas, o cavalo-de-tróia do rentismo fundiário que julgávamos morto e enterrado com o Ancien Régime. [veja-se a notícia, Jornal de Notícias de 27:Out:2011, p.24, «Sobrinho de Narciso (Miranda) fez fortuna com terrenos»: «chegou a vender por 1,6 milhões de euros um terreno que comprara por 100 mil euros. E por mais de 700 mil um terreno que lhe custou 30 mil.»]
Pedro Bingre do Amaral
Professor Universitário e Investigador
«Neoliberalismo, um álibi da especulação imobiliária», (in ‘PORTUGAL E A EUROPA EM CRISE – para acabar com a economia de austeridade’, Le Monde diplomatique & ACTUAL Editora [Grupo Almedina], pp.122-127), ISBN 978-989-694-021-8.
[1] Cf. o livro do Génesis (da Bíblia), cap. 4: «A história dos dois irmãos, Caim e Abel». Concretamente, o versículo 8, diz (num acrescento posterior cheio de significado): «Vamos ao campo». O «campo» será o lugar sociológico do crime por excelência: «logo que chegaram ao campo, Caim lançou-se sobre o irmão e matou-o.» Claro que a análise teológica deste relato é muitíssima mais vasta e rica, mas, sem dúvida, ele fixa o início das disputas pela posse da terra, disputas ferozes, que levam à exclusão, pela morte, do concorrente a esse bem tão essencial à vida, que é o solo. [esta Nota não pertence ao Artigo original].