teologia para leigos

28 de janeiro de 2011

A PARÁBOLA DO SEMEADOR - MT 13

«ora 100, ora 60, ora 30…»

Mateus 13:1-30

A Parábola do Semeador
que saiu a semear em nós




Todos nós balanceamos entre três estados.
Viver o dia-a-dia é uma trajectória pendular que pode balancear-se entre um quotidiano instintivo sem perguntas, um ‘ser em trânsito’ (e sua intermédia tensão existencial instável) e um ir ou não ao extremo angustiante dum desejo de perfeição buscado a ferros. Mas todos já experimentamos que, quando tomamos um café ou ‘bebemos um copo’ com os amigos ou cantamos mudamos de um destes apeadeiros a outro num instantinho. O quanto ‘um copo’ pode desobjectivar e ‘cidrar’ a verdade do que se é! O que somos… O que desejamos ser… Como deveríamos ser… Ser perfeito, o que é…

Destes três tempos é feita a nossa vida! A Vida encarrega-se de os amassar (sem prévia autorização nossa) e mesmo eles, em si, sofrem de muita indiferenciação – verdadeiramente, a sua autonomia só existe dentro de uma análise académica.

A expressão «sede justos» deve ser enquadrada. A justeza é um conceito religioso e não evangélico ou teologal – eu sou arisco a tudo o que seja culto, ‘religião’, indignidade, submissão castradora do humano que há em cada ser-divino que somos, genuflexões, persignassões, ‘água-benta’, blá-blá de ladainha anti-poética, busca duma santidade perfeita. O fabuloso pequenino texto de Thomas Merton titulado «Um ideal imperfeito», para mim, diz tudo – a começar pela perfeita ironia do título, condensação do que há de mais genial neste trapista de génio, do Kentucky. Tentei, durante demasiados anos, «ser perfeito» - quanto o tentei e quanto sofri… Merton, porém, avisou-me: essa «estranha e árdua fidelidade» não é mais do que uma «respeitável conformidade», é apenas «sinal exterior de respeitabilidade». Devo admitir – seguindo T. Merton - que «se alguém se concentra na “perfeição”, é provável que se infiltre nele um egoísmo subtil». [Thomas Merton, ‘Vida e Santidade’, p.29]

Na realidade, vivemos «entre o cristal e o fumo» [Henry Atlan], essa zona nebulosa em que ‘o sistema’ são palavras. O que quer dizer: ‘sistema de palavras’? «A questão é que não existem nenhumas ‘simples palavras’. Só há palavras com gestos, ou tom de voz, ou coisas do género. (…) A ideia de que a linguagem é constituída por palavras é um disparate. A linguagem é um sistema de gestos.» [Gregory Bateson, ‘Metadiálogos’]

Pascal distinguia entre «esprit de geometrie» e «esprit de finesse» como duas faces da mesma moeda. Como diria Sartre e Merlau-Ponty, «as palavras são gestos que apontam para as coisas (reais ou ideais). Nós só podemos saber pelo dizer das PALAVRAS. Mas o que as palavras dizem não está só no que dizem.» [Vergílio Ferreira, ‘Conta-Corrente’, vol  I]

Então, que papel especial devemos destinar às palavras?
Sabendo nós que, regra geral, fomos educados a Rezar com palavras (mais do que com gestos), como definir, por palavras, «Perfeição» e «Sede perfeitos como o Pai é perfeito»?

Abramos a Bíblia. Que vemos?  PALAVRAS? Não: PARÁBOLAS!

As «Parábolas do Reino», em Mateus 13:1, começam pela do Semeador e em 14:13 «Jesus alimenta 5 mil pessoas».

Paremos, aqui, nestes dois relatos substanciais. Que nos podem ‘dizer’ eles acerca da perfeição?
Em resumo brevíssimo, retenhamos duas máximas.

1.   As nossas decisões (sobretudo, as mais louváveis e regra geral as mais publicamente louvadas) são sempre indecisões. Todos gostamos de pertencer ao grupo dos que «receberam a semente em terra boa» - isso alimenta o nosso ego… - mas raros são os que gostam que lhes lembrem que «só dão fruto a 30…». Mateus 13:18-23
2.   A comida e sua alegria (o salutante, repousante e saciante banquete de «Jesus com o 5 mil»), é relatada logo a seguir à festança do aniversário de Herodes, a qual é também – reparem no pormenor! – a festa da «tristeza de Herodes». Mateus 14:9

Por agora, sublinhemos paradoxos.
Digamos que o Banquete da VidaJesus alimenta 5 mil», Mt 14:13] quer opor-se ou até fazer frente ao Banquete da MorteHerodes e a execução de João Baptista», Mt 14:1-12].

Bom - que evidência, nisto?

As nossas decisões acontecem-nos - mesmo quando somos catalogados de «boa gente» [v.23, «boa terra»] e temos até algumas certezas acerca de Deus [v.23, ‘ouve’ e ‘compreende’], a verdade é que «esse» (que somos nós) «dá fruto e produz ora cem, ora sessenta, ora trinta»… (o texto não nos diz que dará SEMPRE fruto a cem, SEMPRE a sessenta, SEMPRE a trinta… A expressão ‘ora’ abre inúmeras probabilidades a cada um de nós).
Ou seja, tudo é possível e praticamente tudo nos escapa! Tudo o que é (aos nossos míopes olhos) decisivo, escapa-nos! Como se tal não bastasse, terrível e dramático é sabermos que NÃO SOMOS NÓS quem decreta que terra somos.

Tudo invadido  pelo Mistério! Tudo numa Liberdade líquida! Nada  nosso!

A vida tem destas coisas – veja-se a Parábola ‘O trigo e o joio’, em Mt 13:24 - nem sequer nos é concedida a prerrogativa de mondar o que quer que seja… O texto chega ao cúmulo de dizer: «Deixai um e outro crescer juntos…» [v.30]. Bom! Um Deus assim custa a aturar. «Afinal, com o que é que podemos contar?» - apetece perguntar.

As nossas decisões (aquilo que orgulhosamente carimbamos de nossas… opções) constroem-se sobre o mistério de realidades in-decididas, de teceduras que nos trespassam. Quem é que se arroga o direito de nos pré-formatar a ‘dar só a 30’? Este é o primeiro paradoxo ou máxima. Um osso duro de engolir, não acham?

Quanto ao segundo ‘desgosto evangélico’, quanto à segunda máxima ou paradoxo, a água da alegria mistura-se sempre com o pó da tristeza.
Nós resvalamos frequentemente para o platonismo: é tão fatal como o destino de Narciso – adoramos ‘mundos cor-de-rosa’. Mas a vida encarrega-se de nos ir dobrando a espinha: «Apanhai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado;» depois diz: «e recolhei o trigo no meu celeiro.» [Mt 13:30] Frequentemente ficamos sós… a armar feixes! Frequentemente damo-nos conta que estamos feitos num oito… E sós!
Ou seja, a perfeição implica sujar as mãos, coisa de que ninguém gosta: ‘primeiro o joio, só depois o trigo’ - diz o ‘dono da casa’ (v.27)! Será isto adiar a recompensa? Não creio – talvez o seja para sado-masoquistas, não para mim. Este ‘dono da casa’ é mestre em pedagogia, é Mestre em Sabedoria. Ele «sabe-a toda»: não anda à nossa frente a retirar pedras e espinhos do nosso terreno (v.5.7); não escolhe tempos e momentos para nos desafiar (v.19); e até se deixa dormir nas barbas da astúcia dos nossos inimigos (v.25). (Amigo da onça? Calma – também nem tanto… Nada de precipitações. Calma.)

A solidariedade que nos é exigida – por este Deus inquietante – parece pressupor uma complexidade que exige ‘explicações’ (v.18). Afinal, quem julgamos que somos? Somos uma plateia que lê o Livro, mas na realidade, o que existe é uma enorme multidão, uma multidão que se mantem na margem do mal, do mar (Mt 13:2). O único que acolhe, aquele que realmente ajuda e se solidariza não somos nós, nem é quem ‘fala para a multidão’, quem avança uma explicação ‘sobre’ a realidade, quem ‘interpreta’ o que está a acontecer – é, sim, Aquele que «sai de casa e se senta à beira mar» (v.1), Aquele que frequenta os mesmos espaços e se senta na mesma margem onde a multidão está (v.2), Aquele que se serve de analogias, comparações-entre-iguais, Aquele que trabalha a massa que tem diante de si. A perfeição implica sujar as mãos em nós e adoptarmo-nos uns aos outros.
Antes do «trigo», primeiro tocar o «joio». A Alegria misturar-se-à sempre com a tristeza, pois «depois de terminar estas parábolas, Jesus partiu dali.» (Mt 13:53) e, com isso, se cavou o vazio assustador. A tristeza nasce da nossa insegurança acerca de nós próprios: «E agora, que será feito de nós? Que faremos com este ensinamento novo? Que fazer da minha vida?» A Alegria misturar-se-à sempre com a tristeza – «Bem-aventurados os que choram…», pois esses, pelo menos, não andam iludidos a seu respeito.



Todos nós balanceamos: entre o joio e o trigo, entre o difícil e o fácil, entre sair e ficar, entre pensar nos outros e pensar em mim, entre as pantufas e a bota apertada.

Seremos capazes de, uma vez na vida, nos assumirmos por inteiro?
Nos momentos de fraqueza, o que nos acode: a dúvida ou a certeza?

Sejamos verdadeiros (pelo menos no íntimo de próprios, onde só Deus ouve): nos momentos de fraqueza acode-nos sempre a dúvida.
Não vejo nisso mal nenhum – só vejo nisso a verdade da carne e sua força. Fraquezas? Ora bolas… Mas quem é feito APENAS de fortalezas titânicas? Somos humanos ou colossos? Por mim, quero-me de barro – assim; mal cozido e tudo! Quero-me ao colo da fragilidade e de todos os que são como eu: verdadeiramente verdadeiros!
Quanto às ‘certezas sobre Deus’ (e para finalizar) não tenhamos dúvidas: este Deus até de Herodes teve pena!!! (Mt 14:9 «o Rei ficou triste» - di-lo, comovido, o relator em Mateus)

Somos feitos de Decisões in-decididas parentes do barro dessa Alegria íntima – coisas que sempre nos escapam ou irrompem como uma «ruína imprevista» [Sl 35:8].

[todos nós balanceamos - pouco me importa a perfeição dos geómetras: na verdade, nada possuímos… sobretudo ciência que baste e ilumine; aceitam-se confissões ou orações]

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