teologia para leigos

12 de janeiro de 2011

REZAR & ORAR

Ad-orar em tempos de crise

Diante das catástrofes, regra geral, o ser humano reza, mas não ora!
As «rezas» são o modo mais elementar que o ser humano tem para lidar com a impotência: o ser humano possui, em si, ‘naturalmente’, uma dilatação sobrenatural, mas diante dela reconhece-se limitado, temporal. Ou, usando uma célebre expressão de S. João da Cruz: «fora de Deus é tudo tão estreito».
Diante de catástrofes como incêndios, inundações, terramotos, matanças, falências, fome, secas, etc. o ser humano «reza» a(os) deus(es). Pede o oposto daquilo que o atormenta. Implora. Reclama novamente o regresso da harmonia prévia. Dirige-se a um deus ‘conservador’ para que restitua, tal como era, aquilo que ‘alguém’ roubou ou despenteou.
A prece de petição é, em todas as civilizações, universal, eterna, ‘natural’.
G Bush Jr, sabe-se que rezou [a sua ‘reza’ circulou na Internet e escandalizou] e, a 25 de Novembro passado, antes de o sol raiar, os rabinos Menashe Malka e Reuven Deri embarcaram num balão e chegaram aos 300 metros de altitude para, com as suas preces, fazerem vir chuva. Responsáveis locais acompanharam-nos, juntamente com Miss Israel 2010, Shavit Wiesel, e outros fiéis. O balão descolou do deserto do Negueve. A primeira reza fora redigida pelo eloquente rabino Mordechai Eliyahu.
A seca que aflige o Norte de Israel é uma grande preocupação para os agricultores, que receiam perder as colheitas e sofrer prejuízos que podem ascender aos 10 mil milhões de euros, este ano. «Esta prece comum, com um vista magnífica sobre o deserto do Negueve, talvez nos abra as portas do céu e devolva a coragem aos agricultores de todo o país», afirmou entusiasmado o piloto do balão, Moran Itzkovitz, antes de se elevar no ar.
Nesse mesmo dia tinha havido uma reunião de fiéis em Hatzor HaGlilit, no norte do país, na campa de Honi HáM’agel, um sábio de Israel com fama de ver cumpridas as suas preces à chuva. Por iniciativa dos rabinos Yona Metzger e Shlomo Amar, esta prece comum reuniu outros rabinos e estudantes de uma yeshiva dos arredores (instituições para estudo da Tora e do Talmude no judaísmo). Depois de fazerem soar o shofar (instrumento musical usado pelos judeus), rezaram uma prece especial à chuva, escrita pelo rabino Metzger. No dia seguinte, juntaram-se dezenas de pessoas, rabinos e fiéis, a bordo de um barco de turismo no lago de Tiberíades para rezarem pelo fim da seca. O vice-ministro das Finanças, Ytzhak Cohen, participou nesta prece, que foi organizada pelos rabinos dos conselhos regionais e do kibbutz Ayelet HaShahar.[1]
A relação com a divindade pode configurar-se segundo três modelos.
O primeiro é inspirado na relação mestre-escravo: «Senhor, Senhor, tende piedade».
O segundo é muito próximo da ‘amizade’, duma amizade que se manipula, eixo centrado na própria pessoa que reza: «eu trato por tu a deus», «vou a despacho directamente com deus», não necessito de intermediários, «eu cá tenho a minha fé».
O terceiro modelo assenta numa relação de amor total, de confiança total, de intimidade total para com deus.
No primeiro impera a submissão humilhante do ser humano a deus; no segundo, a submissão humilhante de deus aos apetites humanos; no terceiro, a gestão livre e íntima duma relação de amor recíproco assente na única alavanca possível: a confiança.

A «prece de petição» é sempre um insulto a Deus: pressupõe que Ele «é capaz, mas não quer», pressupõe que Ele «permitiu» que as coisas chegassem ao que chegaram, e que só com o pagamento de uma promessa Ele se disporia a agendar a questão e a desencavilhar o seu poder criador e transformador.
«Batei e abrir-se-vos-à» ou «Fazei, Senhor, que eu veja» são expressões usualmente citadas para fundamentar teologicamente a prece de petição. Mas é, de igual modo, usual verificar que os Evangelhos referem a expressão atribuída a Jesus: «A tua fé te salvou», mesmo que a pessoa em causa não seja, nem cristã (o que, aliás, seria exigir demais), nem judia, ou seja, mesmo que se trate de um interlocutor «sem fé institucional alguma».

Que pensa Jesus, afinal, da «petição»?
Antes de mais, Jesus dizia: «Pai, não te peço que os retires do mundo, mas que os livres do Maligno.» [Oração Sacerdotal, Jo 17:15] No restante Evangelho de João, sublinha-se repetidamente a única coisa que Jesus acha relevante: viver em estreita união com o Pai, segundo o Espírito de Jesus. A expressão que resume muitas outras é: «(…) para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti; para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste» [Jo 17:21] «Nós somos Um. Eu neles e Tu em mim» [v.22b.23] «(…)guarda-os em ti, para serem um só, como Nós somos.» [v.11]

Esta ideia central encosta-se a uma outra expressão que é quase absoluta, no Evangelho de João: «permanecei»!, expressão quase obsessiva na Alegoria da Videira e dos Ramos, [Jo 15], obsessão à razão de mais de uma por versículo! Ou seja, em 5 versículos, surge 8 vezes o verbo ‘permanecer’ [Jo 15:4-8].
A última expressão, que é charneira para a questão da prece de petição, é a classificação que Cristo reserva para os seus discípulos: «chamei-vos amigos»! [Jo 15:15] e não apenas ‘discípulos’, ‘núncios’, ‘enviados’, ‘representantes’, ‘autoridades-minhas’, ‘embaixadores’, ‘diplomatas’.

São três expressões para falar do mesmo: essa super-união num amor mútuo super-confiante! Tudo se condensa nesta expressão final: «Permanecei no meu amor» [Jo 15:9], já que Jesus só soube amar como o Deus Misericordioso só sabe amar [ver: Jo 15:9]: «Assim como o Pai me tem amor, assim Eu vos amo a vós. Permanecei no meu amor» (v.9) Podemos concluir dizendo que quem se sente assim, amigo muito íntimo de Jesus Cristo, só pode sentir-se em casa! E quem está em Jesus Cristo como se a sua própria casa e Ele se com-fundissem numa realidade só, só se for louco é que se põe a pedir que lhe cheguem coisas. Pedir a si próprio? - isso não faz sentido. Ou seja, não faz sentido «pedir» ao dono da casa, pois ele é, ao mesmo tempo, o que pede e o que dá… Estar «ligado ao tronco» é condição para receber a seiva, a essência vital; desligar-se do tronco é secar. (cap. 15, v.5). Estar ligado fisicamente ao tronco pode ser condição até para «fazerdes obras maiores do que estas» [Jo 14:12] «Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em mim; crede, ao menos, por causa dessas mesmas obras. Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que Eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque Eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome Eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória do Pai. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, Eu o farei [Jo 14:11-14]

Portanto, a prece de petição nunca poderá ser uma usurpação humana duma qualidade divina, ou seja, algo que aconteça pela nossa autoridade mundana: «Eu o farei» significa que tudo o que possa acontecer apenas é «Jesus Cristo acontecendo» e não a mudança da história ou a cura física simplesmente por que rezamos muito a Cristo e Ele nos concedeu essa graça porque rezamos muito a Cristo… Em resumo, «pedir» a Deus que intervenha ou opere mudanças neste nosso mundo só pode ser ofender Deus, pois, em última análise, é contratar Deus e  «pô-lo ao nosso serviço».

A prece, para aquela e aquele que vive já em Cristo, deverá ser ad-miração, ou seja, a contemplação da Glória do Pai, que é Jesus Cristo. «Rezar» tenderá, então, para «orar». «Tender para», em latim, diz-se «ad». «Tender para… a admiração» diz-se «ad-orar», na medida em que, quando ficamos estupefactos, ficamos com a boca aberta, em Ó! Rezar será, então, «ficar enfeitiçado», «ficar de boca aberta», como diz o povo, é «não ter palavras», deixar-se agarrar por dentro. Se «rezar» costuma ser ‘pronunciar palavras’ (às vezes, pode ser «falar muito», o que chega a ser um verdadeiro falatório, um insuportável ruído!), «orar» será «permanecer n’Ele», na medida em que Ele «permanece no Pai». Tudo menos «pedir coisas»… Como se disse acima [Jo 14:11-14], a melhor forma de «rezar» é «realizar» a vontade do Pai, pois é «por causa das obras» que Ele realizou entre nós que nós acreditamos n’Ele. «Rezar» terá que ser «operar proximidade física», «fazer adopção», «trabalhar o amor» e ficar enfeitiçado, encantado, admirado, alegre com aquilo que vier a acontecer… E, tudo o que venha a acontecer, é Cristo!!!, essa super-união num amor mútuo super-confiante!

Orar é permanecer unido!
Unidos ao «Programa de Acção» de Jesus, unidos no ‘jeito (Espírito) de Jesus’! Aí está o «Deus-Pai-de-Jesus»!
«Permanecei em Mim»!

«Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, Eu o farei», ou seja, ‘Eu sê-lo-ei em vós…’ e os vossos gestos são Eu (Jo 14:14)

É na união carnal mais íntima que se nos despertam os sentidos todos do Amor! É assim que Deus-Pai se quer dar a conhecer a nós: através do Amor e só do Amor! Ao invés, «pedir do alto da burra» é não ter amor, porque é «exigir amar».

«Ainda um pouco e o mundo já não me verá; vós é que me vereis, pois Eu vivo e vós também haveis de viver. Nesse dia, compreendereis que Eu estou no meu Pai, e vós em mim, e Eu em vós. Quem recebe os meus mandamentos e os observa esse é que me tem amor; e quem me tiver amor será amado por meu Pai, e Eu o amarei e hei-de manifestar-me a ele.» [Jo 14:18-21]

Moral da história: quem faz a vontade do Pai observa» os mandamentos de Jesus e sintoniza com Jesus) verá a Deus-Pai hei-de manifestar-me a ele», estareis vivos-em-Mim).

Em tempos de crise (v. 25 – a hora adiantada), como entender o Evangelho (S. Marcos 6:34-44) de sábado passado?

Jesus alimenta cinco mil pessoas (8,1-9; Mt 14,13-21; 15,32-38; Lc 9,10-17; Jo 6,1-15) –«Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas. A hora já ia muito adiantada, quando os discípulos se aproximaram e disseram: «O lugar é deserto e a hora vai adiantada. Manda-os embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer.» Jesus respondeu: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Eles disseram-lhe: «Vamos comprar duzentos denários de pão para lhes dar de comer?» Mas Ele perguntou: «Quantos pães tendes? Ide ver.» Depois de se informarem, responderam: «Cinco pães e dois peixes.» Ordenou-lhes que os mandassem sentar por grupos na erva verde. E sentaram-se, por grupos de cem e cinquenta. Jesus tomou, então, os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e dava-os aos seus discípulos, para que eles os repartissem. Dividiu também os dois peixes por todos. Comeram até ficarem saciados. E havia ainda doze cestos com os bocados de pão e os restos de peixe. Ora os que tinham comido daqueles pães eram cinco mil homens.»

Em tempos de crise, há quem veja neste relato uma indicação para, por exemplo, «ajuntamentos» em Fátima para rezarmos pelo fim da crise. Também há quem veja uma advertência a mais e mais solidariedade material, a mais e mais partilha de bens urgentes para o corpo, a mais e mais solidariedade para com os povos do 3º mundo ou ao endurecimento do discurso anti-capitalista, anti-globalização, etc. Mas, na verdade, antes de tudo

Estamos no «coração dum gesto»!

O gesto fundante da Eucaristia, que nos ensina que a única coisa que podemos (e devemos) fazer, em tempos de crise, é acercarmo-nos dos que se sentem sós, partilhar o pão das lágrimas, abraçarmo-nos, igualizar-nos num único sentimento que conte (‘aconteça o que acontecer estamos aqui…lado a lado, habitando a mesma a casa’, «somos INEM’s mudos uns dos outros…»). Em tempos de crise, é frequente a atitude de trocar a presença-proximidade por duas coisas: «o discurso politicamente correcto» (‘nunca te esqueças que não estás só…’, ‘olha que muita gente te ama…’, ‘vê lá: não te deixes ir a baixo…’) ou a dádiva de dinheiro e bens. Só há um gesto que é gesta: dar-se para que se dêem! (v. 41) Estas duas tentações estão, aliás, tambem presentes neste relato do evangelho: «discurso politicamente correcto» tem como consequência “mandá-los embora de mãos vazias” (v. 36); «trocar a proximidade e substituir-se por dinheiro e por bens» é não permitir um «protagonismo mínimo» a quem está só. (v. 41: «para que eles repartam») Em tempos de crise, super-abundam os sós, os que perderam a «proximidade do fundante da dignidade humana»: o direito à palavra compartida! Só a proximidade física permite o acesso à palavra compartida (v. 41: «pronunciou», «partilhou» «e todos repartiram» o que subitamente se tornara também de todos). «Eu desconfio sempre de projectos impessoais», dizia Teresa de Calcutá. «Para amar alguém é preciso estar perto.» [‘Um caminho simples’]

Mais uma vez, a questão da ‘união íntima’ não platónica, nem espiritualizante, mas carnal, física – ‘dormir ao lado’. Permanecer! Ser de permeio. Orar é Parar: o activismo, o palavreado, o discurso correcto, todo formigueiro.

Orar, em tempos de crise, é partilhar o pão das lágrimas, é um dar-se em lágrima, gritar a dor e recolhê-la. Permanecer próximo. Ad-orar quem sofre, abrir a boca diante ‘desse Cristo que sofre’ (Paulo VI), morrer na sua boca até que ele descanse sua solidão no nosso peito, sacie dor e cansaço e regresse à palavra-pão com-partida.

Orar, em tempos de crise, é comer o pão das lágrimas até ficarem saciados. (v. 42) Veremos, então, que, assim, no fim da catástrofe, há-de ficar de pé um ‘Povo-Inteiro’, um povo que recobrou a fala porque matou a solidão (os «doze cestos» são as Doze Tribos de Israel, são o Povo-Inteiro-Abraçado, o ‘povo-falante-acompanhado-e-nunca-mais-só’ tão desejado por Deus-Pai)

«a vontade do Pai é que
sejamos UM!»


[1] Notícia retirada de Courrier International, ed. em português, Janeiro de 2011, p. 97