teologia para leigos

22 de março de 2012

ECONOMIA & IDEOLOGIA - O INDIVÍDUO & AS ESTRUTURAS SOCIAIS



«As economias não são agregados»

Perante a vertigem das falências que todos os dias desfilam nos telejornais, é legítimo que nos perguntemos: de onde virá a procura que vai pôr a economia a crescer em 2013?

A resposta já foi dada pelo ministro das Finanças em várias intervenções: é o regresso da confiança e a reconquista da credibilidade nos mercados que farão os agentes económicos voltar a consumir e investir.

Como disse noutro texto aqui publicado (“O país que se cuide”), credibilidade e confiança são palavras-chave na retórica dos novos clássicos, uma corrente do pensamento económico nascida nos anos 70 do século passado. Renegando o essencial do pensamento de Keynes, esta corrente conseguiu instalar-se como pensamento dominante na profissão dos economistas ao convencer a maioria dos agentes políticos e dos comentadores das televisões de que a política orçamental é inútil ou até perversa.

Apoiada pelas mais altas instâncias do poder nos EUA, tornou-se hegemónica nos departamentos de Economia durante a era Reagan. Das universidades norte-americanas para as portuguesas foi apenas uma questão de tempo e de subserviência intelectual. Que estas ideias não tenham qualquer fundamento científico pouco importa à academia e aos agentes políticos. São agora artigos de fé de uma ortodoxia que nem a crise de 2007/8 conseguiu pôr em causa, apesar da legitimação que os novos clássicos deram às políticas que a geraram.

Em 2009, Robert Skidelsky, profundo conhecedor da obra de Keynes, chamava a atenção para um pressuposto crucial no pensamento dos novos clássicos: a economia está sempre no pleno emprego ou, se não está, para lá se encaminha, a menos que o governo decida intervir na economia. Tornando evidente que a teoria não passa de ideologia, Skidelsky recordava que no Reino Unido, em 1931, no mais fundo da maior depressão económica da história, os economistas ortodoxos negavam a existência de capacidade produtiva por utilizar. Ou seja, a cegueira ideológica era tanta que não viam a necessidade de uma política orçamental deficitária para retirar a economia da crise.

Paul De Grauwe [*], um dos economistas europeus que ainda preserva o espírito crítico, também confronta o núcleo central do pensamento dos novos clássicos (“ricardianos”) com o dos keynesianos. O autor acaba por reconhecer que os modelos dos economistas pressupõem que os indivíduos entendem a complexidade da economia e do mundo em que vivem, ou seja, que formulam expectativas racionais sobre a política económica e tomam decisões plenamente informadas. Daí a necessidade de os governos lhes incutirem confiança e de os convencerem de que as suas políticas são estáveis e credíveis. De Grauwe termina de forma lapidar: “Poucas vezes ideias tão insensatas foram tomadas tão a sério por tantos académicos. (…) O erro básico da moderna macroeconomia é a crença de que a economia é simplesmente a soma de decisões microeconómicas de agentes racionais.”

No dia em que as faculdades de Economia ensinarem que as economias não são agregados mas antes sistemas, e que estes emergem a partir de relações entre pessoas que não são átomos sociais dotados de racionalidade optimizadora, no dia em que ensinarem que as pessoas têm hábitos e crenças e estão envolvidas em relações de poder nas várias organizações a que pertencem, nesse dia teríamos recuperado a economia política institucionalista, a economia que era ensinada nas melhores universidades norte-americanas no período entre as duas grandes guerras.

Nesse dia, em vez de lavagem ao cérebro, os nossos alunos teriam acesso a um ensino pluralista, crítico, confrontado com o real. Sem revisões nem amputações, Keynes teria aí o seu lugar.


Jorge Bateira
Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas

i-on line, 22 Março 2012




O ser humano como carrefour de relações sociais e outras

«Dado que o estudo dos modelos da «estrutura social» foi um dos rasgos mais característicos da Sociologia, muitos teólogos e activistas também fizeram análises práticas das estruturas sociais. Porém, o que importa é o tipo de teoria social de que nos servimos para compreender como se criam e se reproduzem essas estruturas [sociais] e como elas se transformam. Em linhas gerais, tais teorias podem ser divididas em três grupos:

(1)        O primeiro defende que as estruturas sociais – e não os indivíduos humanos – são o factor determinante. Tal postura corresponde à tendência marxista, embora não seja correcto dizer que todos os marxistas excluem a liberdade do ser humano. Fazem, porém, finca-pé nas condições materiais que originam as estruturas e que as reproduzem ou que levam à sua transformação.
(2)        A segunda teoria postula que as estruturas sociais são produzidas, reproduzidas e modificadas quase exclusivamente em virtude da acção humana. Esta tendência reduz a influência que as estruturas sociais possam ter na conduta dos seres humanos. Acentua a liberdade humana, não valoriza suficientemente o condicionalismo social e, por isso, pode ser rotulada de tendência liberal e individualista.
(3)        A terceira teoria está interessada em demonstrar como, quer as estruturas sociais, quer a acção humana, estão implicadas na construção, na reprodução e na transformação da sociedade. Esta é a teoria que tem vindo a receber mais atenção, actualmente, e o teórico social que nos oferece a análise mais profunda destas questões é, indubitavelmente, Anthony Giddens.





Em «A Constituição da Sociedade» [‘The Constitution of Society: Outline of the Theory of Structuration’, Polity Presse, Cambridge 1984; edição castelhana em Amorrortu, Buenos Aires 1995], a sua obra revolucionária sobre aquilo que chama «estruturação», Giddens adverte-nos para o perigo de coisificar as estruturas sociais, para o perigo de as tratar como coisas objectivas que podem existir independentemente da acção humana:

“Com frequência concebe-se ingenuamente o modelo das relações sociais na linha de imagens visuais assim a modos que um esqueleto ou como a morfologia dum organismo ou as vigas de um edifício. Tais concepções estão estreitamente relacionadas com o dualismo «sujeito-objecto social»: a ‘estrutura’ surge como uma realidade ‘exterior’ à acção humana.”

Dito de outro modo, não devemos conceber uma estrutura social como um edifício que se mantém em pé mesmo que os seus habitantes tenham sido, dele, desalojados.

É muito mais comparável ao curso, à direcção ou à forma dum rio. A água e o seu leito (modelo) são inseparáveis entre si. Na realidade, não é possível haver um modelo sem que exista algo modelado. Muito menos pode haver um rio ou uma torrente que não tenham forma ou direcção – ou seja, que não tenham estrutura.

Entre a estrutura social e a acção humana existe aquilo que se poderá chamar «uma relação dialéctica». Se, por um lado, as estruturas sociais são produzidas e reproduzidas pela acção humana, por outro, a acção (ou a inacção) humana encontra-se muito influenciada pelas estruturas sociais. As estruturas podem obrigar (ou permitir) as pessoas a actuar ou a não-actuar, mas não são deterministas, nem privam, de toda a a liberdade, os seres humanos.





Todos fomos sociologizados nalgum sistema social. Em maior ou menor grau, todos estamos socialmente condicionados. Isso não nos impede de ‘tomar consciência’ disso mesmo e, então, ser capazes de superar esse nosso condicionamento e mudar as estruturas sociais das quais fazemos parte. A intervenção humana na produção, reprodução ou modificação da estrutura social varia enormemente de pessoa para pessoa e de época para época. Bernard F. Connor [‘A difícil travessia: da Amnistia à Reconciliação’, 1998] descreve parte da complexidade da acção das pessoas brancas nas estruturas sociais do apartheid.

«O que cada pessoa sabia, tratava de descobrir ou deliberadamente evitava encontrar variava de indivíduo para indivíduo. Enquanto uns denunciavam a situação, outros negavam, a si próprios e a outros, que se passava algo grave. As capacidades que cada um possuía para captar aquilo que estava a suceder variavam segundo a localidade, a profissão e o acesso à informação: cada uma destas situações era, em parte, uma questão de escolha, em parte dependia das circunstâncias. Eis como o modo como cada pessoa tinha de usar o seu poder para influir nos acontecimentos – para bem ou para mal – variava de indivíduo para indivíduo

Antes da Revolução Francesa desconhecia-se praticamente por completo a ideia de que as estruturas de uma sociedade pudessem ser modificadas pelo efeito da acção humana. Podia-se substituir um monarca ou um rei por outro rei, mas a estrutura monárquica permanecia. Podíamos alegrar-nos por ter um chefe mais benevolente que outro, mas a estrutura tribal era a mesma. (…) Os camponeses podiam revoltar-se contra a aristocracia, mas julgava-se que o sistema de servos e aristocratas era imutável e que saltar de um estatuto social a outro era impossível. A maioria das pessoas julgava que a estrutura social tinha sido estabelecida por Deus – essa é a origem do princípio conhecido por «direito divino dos reis». [Louis-Augustin Robinot, ‘Discours dogmatiques et moraux’, 1824, in J.P. Migne, Petit-Montrouge, 1856: «é Deus quem cria o pobre e o rico; Deus humilha e levanta; Deus, sem deixar nada ao acaso, destina a cada um o lugar que deseja que ocupe, o lugar que há-de ter, a função que deve desempenhar no corpo do qual é membro»; cf. Dt 28:13ss: «O Senhor te colocará no primeiro lugar e não no último; estarás sempre no alto, jamais em baixo, enquanto escutares os mandamentos do Senhor, teu Deus, que hoje te prescrevo, guardando-os e cumprindo-os»]

A Revolução Francesa mudou tudo isso – pelo menos, no plano dos princípios. As estruturas sociais podiam ser substituídas porque eram construções humanas, reproduzem-se à custa dos seres humanos e podem ser mudadas por seres humanos, quer para o bem, quer para o mal. A Revolução Russa demonstrou esse mesmo fenómeno, independentemente do que possamos pensar dos seus resultados. As estruturas sociais podem ser mudadas. [Albert Nolan, ‘Jesus Hoje’, pp. 55-57 da edição portuguesa] (…)

Contudo, a propósito da mudança estrutural, há que referir duas coisas.
Primeiro, as estruturas não mudam sempre para melhor. Às vezes, somos testemunhas de um golpe de Estado que muda um país: era uma democracia e passa a ser uma ditadura militar.
Em segundo lugar, não existem leis universais acerca do modo como as estruturas sociais mudam. Por vezes, as estruturas tornam-se disfuncionais e insustentáveis, tal como ocorreu com o apartheid na África do Sul.
Aliás, elas nem sequer se alteram por si mesmas – exigem acção humana. E mais: aquilo que faz com que certas estruturas se mantenham e outras não, nem sempre é o mesmo − intervêm numerosas variáveis.»

Albert Nolan, op [África do Sul]
«Esperanza en una época de desesperanza», Sal Terrae, 2010, pp.185-89