teologia para leigos

23 de março de 2012

CRISE DO CRISTIANISMO E PLURALISMO RELIGIOSO

Inquérito sobre Religião: Pluralismo Religioso





Colocação do problema_1

Na atual mudança de época existe, sem dúvida, uma crise não só das instituições religiosas, como da própria religião. Já não existem os fortes ateísmos dos séculos XIX e XX, porém, em troca, crescem o agnosticismo e a indiferença religiosa em muitos setores, enquanto que em outros surge com vigor a valorização de tudo o que seja espiritualidade e mística, porém à margem de toda religião. Ante essa complexa situação sobre a religião em geral, podemos nos perguntar sobre o estado da religião na América Latina. Meu intento é responder a essa questão, mais concretamente a partir da Bolívia.
 
Pessoalmente, concordo com a afirmação do sociólogo brasileiro Luiz Alberto Gómez de Souza: “Sempre reagi contra a ideia de uma secularização linear, com o ocaso inevitável do sagrado. O sagrado segue estando profundamente presente em nossas sociedades, só que em um mundo pluralista e de pós-cristandade. Nem sempre nós católicos sabemos entender estes novos tempos presentes e viver em outro clima” [SOUZA, L. A. Gómez de, Possível agenda para a Igreja nos próximos anos. Perspectiva Teológica, 117, Belo Horizonte, maio-agosto de 2010, p. 247].

A matriz religiosa foi muito forte na América Latina e no Caribe, o povo possui tradicionalmente um grande sentido da transcendência e de abertura a Deus na vida cotidiana. Isso talvez não tenha sido sempre compreendido, nem por missionários que procedem de países muito secularizados, e muito menos pelas ONGs que trabalham no continente. Contudo, a modernidade secular e a pós-modernidade intimista, a globalização, o êxodo do campo para a cidade, a industrialização, o desenvolvimento tecnológico, o impacto dos Meios de Comunicação Social e da internet, as contínuas migrações, tudo isso afeta a matriz religiosa da América Latina (AL) e transforma muitos de seus valores, costumes e comportamentos. Para alguns observadores atentos, como Bartomeu Meliá, essas mudanças são de tal magnitude que talvez só tenham como antecedente histórico as transformações ocorridas na primeira época colonial, quando foi violentada a vida dos nativos e destruída grande parte de suas culturas e crenças. Nesse novo contexto se produziu um maior pluralismo religioso, tanto no conjunto das denominações religiosas presentes na AL, como especificamente dentro da Igreja católica. Consequência disso é que ao pluralismo nacional, cultural e étnico da Bolívia e dos outros países da AL, há que se acrescentar agora também o pluralismo religioso.

Um sinal claro disso é o reconhecimento da liberdade religiosa e a separação entre Igreja e Estado que se foi produzindo com diversos matizes em todos os países latino-americanos, também na Bolívia. Desde a colônia e a primeira evangelização, a Igreja católica havia mantido a hegemonia religiosa e moral no continente: era a religião oficial, a que havia impregnado a cultura e a moralidade de toda a sociedade, em um ambiente de cristandade. Isso mudou radicalmente, a Igreja agora precisa conquistar sua autoridade moral e sua credibilidade não por seu poder político, e sim por seu testemunho e coerência cristã. Tampouco é já “a voz dos sem voz”, é uma voz entre tantas vozes existentes, uma religião entre outras.






Panorama do pluralismo religioso na América Latina e no Caribe_2

 Nas últimas décadas, o panorama religioso da AL e do Caribe se tornou multifacetado. Sem descer a números concretos, todas as estatísticas nos mostram que existe uma configuração religiosa diversa.

Vejamos os principais dados.

1) Declínio numérico do catolicismo dominante e debilitação da fé na Igreja católica. Mais tarde buscaremos especificar e concretizar essa situação.
2) Aumento numérico dos grupos evangélicos e, concretamente, explosão do pentecostalismo, que constitui um fenômeno novo e surpreendente: o pentecostalismo junto com o Islã são as religiões que mais crescem no mundo de hoje; alguns, como José Comblin (recentemente falecido), crêem que desde a Reforma não se havia experimentado no cristianismo uma mudança religiosa tão profunda. E o pentecostalismo cresce em ambientes marginais e pobres, entre mulheres, negros e indígenas, que recuperam a voz e o protagonismo eclesial que não tinham antes em suas Igrejas históricas; agora experimentam sua salvação e cura, lêem a Palavra e renovam suas forças para lutar com a ajuda do Espírito. Como disse Carlos Mesters, os mais pobres entre os pobres da AL não estão nas CEBs, e sim nos grupos pentecostais [C. Mesters, «Onda pentecostal», Perspectiva Teológica, 119, Belo Horizonte, janeiro-abril de 2011]
3) Sobrevivência e ressurgimento das religiões originárias. Isso não acontece apenas na Bolívia. As religiões originárias que desde a colônia se haviam mantido de forma sincrética e muitas vezes semiclandestina, agora recuperam sua força original. Para a grande maioria essa recuperação cultural e religiosa se faz desde sua fé cristã, em um clima de diálogo intercultural e inter-religioso, contribuindo ao que se chama teologia cristã índia e afro. Porém há grupos minoritários mais radicais que no processo de descolonização querem abandonar a fé cristã e voltar a suas religiões originárias anteriores à evangelização. Por outro lado, a cultura e religião originária também sofreu o impacto da modernidade globalizada, com seus valores e contra-valores; a religião originária tampouco existe em estado puro, como afirma Simón Pedro Arnold [ARNOLD, S. P. Ensayos Andinos, Puno - Cochabamba, 2009, p. 97-114].
4) Presença minoritária de outras tradições religiosas não cristãs: Judaísmo, Islã, religiões orientais asiáticas, algumas de tipo esotérico e gnóstico (Rosacruz, Acrópole, New Age,…), que atraem muitas pessoas sinceras que buscam uma espiritualidade que não encontram nas religiões tradicionais e históricas da AL.
5) Aumento de setores que não se professam religiosos mas agnósticos, indiferentes ou inclusive ateus. Este grupo, formado por jovens, intelectuais, profissionais liberais, políticos, mulheres, operários, etc assemelha-se ao que cada vez mais prolifera na Europa e USA. Baste esta sumária exposição para compreender que o panorama religioso na AL constitui um verdadeiro mosaico, ao mesmo tempo novo e sempre em mudança.





Situação específica da Igreja católica na AL e Caribe_3

Dentro mesmo do seio da Igreja católica também existem profundas mudanças e certo pluralismo religioso interno. Seguindo Aparecida (2007), podemos constatar as seguintes linhas de força:

1) Existe uma fé e uma profunda religiosidade no povo latinoamericano que se manifesta na religiosidade popular, no compromisso eclesial com os pobres, na renovação bíblica, litúrgica e catequética, na vitalidade das paróquias e da vida consagrada, no trabalho em diversas pastorais específicas, no testemunho dos leigos, na riqueza das diversas comunidades eclesiais, etc. (Aparecida, 98-99).

2) Mas há um enfraquecimento da vida cristã e da pertença à Igreja, clericalismo, individualismo, marginalização da mulher, sacramentalismo, com falta de evangelização, pouco compromisso dos leigos na vida social, diminuição do clero e da vida religiosa, materialismo, falta de sentido de transcendência, abandono das práticas religiosas e débil pertença à Igreja, passagem para outros grupos religiosos (Aparecida, 100).

3) Mais ainda, existe uma crise de fé, a fé se desmorona (Aparecida, 13, 38), pela qual se necessita uma forte conversão e uma correcção de rota da pastoral, se não se quer chegar a uma descristianização como ocorreu em outros continentes. Há crença sem pertença (believing without belonging, G. Davie), mas também existe em muitos grupos pertença sem crença, quer dizer, são incrédulos pós-cristãos que desejam manter símbolos cristãos porque esses pertencem à cultura ocidental [GONZÁLEZ CARVAJAL, L. Cristianos sin Iglesia. Concilium, 340, abril de 2011, p. 115-121]

4) O lema de Aparecida “discípulos e missionários” é um sinal de alerta no semáforo eclesial. A missão continental à qual se está sendo convocado supõe que a América Latina é um continente de batizados que não foram suficientemente evangelizados, que não são discípulos e missionários do Senhor.
As causas dessa deterioração da fé são múltiplas, externas e internas à Igreja. Entre as externas está a profunda mudança de época, que como um tsunami global a tudo sacudiu; questionou as instituições religiosas e a própria fé. Em nível interno, a Igreja católica que havia começado a viver uma primavera espiritual e um verdadeiro pentecostes desde o Vaticano II, e que na AL havia iniciado um processo profético desde Medellín, nas últimas décadas experimentou um caminho restauracionista, de freio e marcha-a-ré; quer-se edificar uma nova cristandade. É a situação de inverno eclesial que agora padecemos.
Mais ainda, a Igreja foi incapaz de responder aos novos desafios que nestes 50 anos depois do Vaticano II surgiram na sociedade e na própria comunidade eclesial. Existe um surdo clamor, às vezes com indignação, que surge a partir da base da Igreja pedindo mudanças radicais. Alguém o escuta?





Um pluralismo religioso_4

Reassumindo tudo o que constatamos, através de Aparecida, sobre o panorama religioso e eclesial da América Latina e o Caribe, podemos confirmar que nos encontramos frente a um grande pluralismo religioso. A expressão pluralismo religioso, que ordinariamente se aplica à coexistência de várias religiões no mundo, nós a entendemos aqui como a coexistência de diversas formas e estilos religiosos dentro da própria sociedade e da Igreja latino-americana. Concretamente, convivem dentro da América Latina, também da Bolívia, setores religiosa e eclesialmente muito diferenciados que formam como que uns círculos concêntricos e sincrônicos.

1) Uma grande maioria de católicos pertence à religiosidade popular, com um grande sentido do sagrado, que talvez tenha sua raiz mais nas religiões originárias do que no cristianismo. São os chamados “cristãos das quatro estações da vida” que acodem à Igreja no nascimento de seus filhos (batismo), na adolescência-juventude (primeira comunhão/confirmação), na fase adulta (matrimônio) e finalmente na morte (ritos dos defuntos e exéquias). Vivem as festas da Igreja, sobretudo Natal e Semana Santa, as celebrações do padroeiro(a), e peregrinam a santuários marianos (a Copacabana, Urkupiña, Cotoca…) ou do Senhor. São adeptos mais dos sacramentais (água benta, cinza, ramos, velas, santos…) que dos sacramentos, movem-se sob o esquema de cristãos sociológicos ou cristãos culturais, típico da época de cristandade: há crença, mas com fraca pertença eclesial, formam parte de uma espécie de Igreja clandestina, informal, subterrânea, a seu modo, bastante ignorante de questões bíblicas e dogmáticas, muito livre frente às normas morais da instituição eclesial (preceito dominical, sexualidade, matrimônio,…) que muitas vezes inclusive desconhecem. Contudo, muitos destes fiéis, simples e pobres, vivem grandes valores humanos e cristãos: o amor e a solidariedade, a acolhida, a resistência, a harmonia com a natureza, a paciência, a luta pela vida, o sentido da festa, a confiança e esperança em Deus, a oração, a convicção de que o “Deusinho” os acompanha sempre. A religiosidade popular é a que melhor elaborou a síntese entre as culturas originárias e a fé católica.

2) Há um bom número de praticantes dominicais, sobretudo de classe média e alta, que assistem regularmente às celebrações eucarísticas, mas que com dificuldade se comprometem com as tarefas da comunidade eclesial. Costumam ser muito tradicionais em sua mentalidade cristã, sobretudo no que se refere ao social.

3) Existe um número mais reduzido, mas muito vivo, de católicos de diferentes níveis sociais, que se comprometem seriamente com sua fé, tomam parte de comunidades, paróquias, movimentos, comunidades eclesiais de base... Preocupam-se por una formação cristã séria, têm uma orientação evangelizadora e missionária, ordinariamente são sensíveis à justiça e ao compromisso social.

4) Existem outros grupos religiosos como os evangélicos pentecostais, religiões não cristãs tanto originárias como religiões tradicionais e modernas.

5) Cresce o grupo de agnósticos, indiferentes e inclusive ateus, totalmente à margem das Igrejas e das religiões, alguns em busca de uma espiritualidade.


Desconhecer esse grande pluralismo religioso da América Latina e da Bolívia, julgar o continente com parâmetros seculares europeus ou norte-americanos, é um grave erro. Mas há que evitar toda idealização no sentido de que seja “o continente da esperança”. Aqui convive a sacralidade com a modernidade e a pós-modernidade; o cristianismo com os ritos originários das religiões ancestrais; a ideologia às vezes marxista com a religiosidade popular, a devoção ao papa com a ignorância da Bíblia; as peregrinações a santuários marianos com o machismo, violência, bebedeiras, abusos sexuais, corrupção, narcotráfico e injustiça.

O continente com maior número de católicos é o que mantém estruturas mais injustas. Num passado ainda recente, em nome da “civilização cristã ocidental”, ditadores latino-americanos assassinaram a populações inteiras de indígenas, martirizaram a camponeses, mulheres, jovens, a sacerdotes, religiosas e bispos. É estranho que se fale da necessidade de uma nova evangelização, de passar de um continente de batizados a um continente de discípulos e missionários, como postula Aparecida?






 Interrogações diante do futuro_5

É muito difícil prognosticar qual vai ser o futuro da religião na AL e da própria Igreja. Aparecida recolhe um parágrafo de grande lucidez: “Não resistiria [O texto original da versão episcopal dizia “não resistirá”. A correção vaticana muda o futuro mais realista dos bispos por um condicional.] aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados” (Aparecida 12).

A cristandade está em agonia, mas as agonias às vezes são lentas e podem durar um longo tempo [CODINA, V. La agonía de la cristiandad. Cuarto intermedio, 89, Cochabamba, dezembro de 2008, p. 80-94].

setores da Igreja saudosos da época de cristandade quando os estados se proclamavam católicos, os templos estavam cheios, havia numerosas vocações, os bispos normatizavam a vida pública com seu magistério, a instituição eclesial gozava de prestígio, era a religião oficial e seus dirigentes tinham plausibilidade social.

Contudo, esse mundo religioso do passado é um imaginário que já não é o atual; é algo residual. A crise da Igreja participa da crise das religiões estabelecidas. Cair em catastrofismos não conduz a nada. Antes, é preciso ver positivamente as possibilidades que se delineiam para a criação de uma Igreja de cristãos convictos; uma Igreja povo de Deus; uma Igreja que descubra a presença do Espírito na história e nas religiões; uma Igreja de portas abertas, do umbral e do átrio, em diálogo com as diversas religiões e com as crescentes formas de agnosticismo, de indiferença e de ateísmo. O pluralismo religioso veio para ficar.

Vitor CODINA sj, Cochabamba, Bolívia
Tradução: Rogério Mosimann da Silva sj





«Proponho 14 saltos qualitativos
(para ‘Repensar a Pastoral da Igreja em Portugal’):

12º «Passagem duma actividade sociocaritativa a uma edificação de comunidades eclesiais que assumam a dimensão da caridade fraterna como uma vertente da koinonia que a define e do Evangelho que a configura».

Cónego Carlos Paes,
«Repensar a Pastoral da Igreja em Portugal – a minha resposta ao desafio da Conferência Episcopal Portuguesa», Ed. Paulinas, Junho 2011, ISBN 978-989-673-174-8.

Ex-docente de Teologia Dogmática e de Teologia Pastoral na UCP (durante 20 anos), membro do Cabido Patriarcal e Consultor Diocesano do Departamento de Animação Comunitária da Cúria Patriarcal, Pároco da Igreja de S. João de Deus, em Lisboa.