teologia para leigos

19 de março de 2012

ACESSO A DEUS SÓ A PARTIR DOS POBRES



A resposta de Jesus

 
A figura de Jesus e a sua acção na Palestina, na terceira década da nossa era, não são de consenso fácil – Jesus permanece um desafio [João 20:17]. Contudo, existe já investigação suficiente para as abordarmos, mais que não seja, como tese. (este comentário tem como pano de fundo apenas os seguintes 5 capítulos de Marcos: 6-10; foi fruto dum trabalho de grupo que perseguiu as seguintes perguntas: ‘O que movia/como se movia Jesus? Quais os contornos da sua utopia? Qual aquilo por que se bateu?’)


Jesus, um itinerante ao serviço do Reino_1

Jesus foi oriundo do meio rural e aprendeu uma profissão: era um artesão, não propriamente um maltrapilho [‘teknos’, um «artista», como ainda se diz entre nós; provavelmente, artesão da construção civil – trolha, pedreiro, carpinteiro, etc.].

Jesus nasce num mundo dominado pela presença massiva do poder imperial romano, facto que determinara uma mudança cultural e comercial de tal monta naquela região, ao ponto de originar crises sociais gravíssimas com impacto nas relações humanas, na propriedade da terra, na política, na realidade aduaneira e na expressão ou compreensão das promessas de Deus.

Surgem, assim, uma oligarquia e uma aristocracia urbanas a par e passo com a pauperização das classes trabalhadoras braçais: não admira que passassem a existir “multidões” deserdadas que deambulavam à procura de trabalho. Talvez se possa dizer que a dominação imperial romana correspondeu a uma certa forma de ‘globalização’, da qual, renovada hoje em dia, saboreamos amargos frutos. A passagem de uma sociedade de agricultores auto-suficientes (no plano da subsistência) a uma sociedade industrial e comercial «implica um avanço (gera riqueza), mas traz também muito sofrimento (destruição social e injustiças).» [X. Pikaza]

Cresceram as cidades e a aristocracia (Sídon, Tiro, Séforis, Tiberíades, etc), a cultura helenista urbana impôs-se, multiplicou-se a estratificação social com a respectiva multiplicação das custas, taxas, mais-valias e impostos, mas o certo é que Jesus não nos surge associado a nenhuma actividade nessas cidades importantes das cercanias da sua terra natal. Cafarnaum não o é e, dizem os especialistas, pela sua localização geográfica na margem do grande lago, talvez funcionasse mais como trampolim para alguma fuga de emergência diante de eventual perseguição. [J A Pagola]

Jesus, depois da sua frustrada aproximação ao «movimento baptista», ou a outro movimento ascético qualquer, sediou-se na Galileia, em Cafarnaum, relativamente perto da sua terra natal. A Galileia era terra de lavradores remediados ou pobres e de pescadores. A Galileia era, do ponto de vista fiscal, uma região fortemente massacrada.

Podemos dizer que Jesus tinha ideias muito claras quanto à sua estratégia de missão. Jesus virou as costas ao mundo urbano, afastou-se do poder religioso central e não se deixou encantar pela florescente cultura e religião gregas. É a partir do campo (dos ‘pagos’ – donde derivou a expressão ‘pagãos’), que Jesus inicia a sua actividade pública como profeta. O mesmo não iria acontecer ao cristianismo aquando de S. Paulo [X. Pikaza] – o ‘cristianismo paulino’ seria eminentemente urbano, dependente do judaísmo e do helenismo, paredes-meias com a riqueza urbana e o sincretismo religioso, um cristianismo de grandes praças públicas. O cristianismo paulino tinha pouco a ver com a estratégia de Jesus. Jesus partia do campo, Paulo da urbe! Jesus partiu da experiência de proximidade relacional e duma fé experimentada na história; Paulo da teologia (veterotestamentária) e da filosofia grega. Como se diz hoje, com S. Paulo ‘o mundo mudara’ para o futuro da mensagem de Jesus.

Mas há uma cidade que permanece na mente de Jesus: Jerusalém. Não como cidade helenista, mas como «a cidade das promessas de Deus, lugar onde seria testado o movimento do Reino» iniciado por Jesus [X. Pikaza]. Jerusalém, não como o centro do movimento carismático iniciado por Jesus, mas como o teste final à sua decisão de oferecer uma alternativa global e radical ao sem-sentido da vida do povo de Deus. Jerusalém (Sião, colina de jebuseus conquistada pelo rei David; 2 Sm 5), a cidade instituída, a cidade Santa [2 Sm 6:17], o ponto de clausura da abóbada do sonho de Jesus de um «movimento desprovido de qualquer cariz institucional» [R. Aguirre], cidade a que Jesus, também, deveria levar o seu desafio, sem acepção de pessoas… Jerusalém, a madrasta [Mt 23:37-39] – é a ela que Jesus subirá com denodo: «Iam a caminho, subindo para Jerusalém, e Jesus seguia à frente deles. Estavam espantados, e os que seguiam estavam cheios de medo» [Mc 10:32]

Jesus é, sobretudo, um profeta itinerante com os olhos postos nas promessas de Deus feitas, outrora, a Moisés e a David, ou seja, com os olhos postos em Jerusalém, local onde todo o judeu se podia encontrar com Yahvé, o seu Deus.




A justiça do Reino_2

No entanto, Jesus inicia a sua actividade profética nos antípodas da capital religiosa de Israel: Jesus escolhe a Galileia, precisamente uma terra de má fama [Jo 1:46]. Jesus sabia que a «alternativa» à vida do povo deveria ser algo concretizável e não apenas um «programa». A fé, para o Deus de Jesus, é sinónimo de «realização» [Dt 18:20-22] e não mera pose ou opinião! Jesus buscava a concretização de algo «universal e concreto» [X. Pikaza] que permitisse acender a esperança do Povo e contagiar uma «radical mudança de vida» [«convertei-vos»; metanoia]. Foi isso que, seguramente, Jesus amadureceu durante trinta anos. Perseguia um sonho e uma senha!

Mas, quando Jesus provocou espanto na Sinagoga de Nazaré [Mc  6:1-3], já sabia bem em que ‘pedra’ faria assentar a sua obra: no anúncio dum Deus-entre-os-homens, congregador, misericordioso, e bom para todos. E assimilara, já, a pedagogia: a partir dos pobres! Os pobres como os anunciadores do Reino de Deus, como «os portadores do evangelho, da Boa Notícia» [X. Pikaza]. A senha era os anawim’ (=pobres), conclusão a que chegara depois de viver muito atento aos mais chegados a si. Foi na «escola da vida» que Jesus chegou aos ‘anawim’ – não podia ser doutra maneira. Numa espécie de contacto físico de vizinhança, Jesus percebeu que era possível começar a construir um mundo outro. A «vida pública» de Jesus não terá sido mais do que a extensão daqueles pequenos gestos de vizinhança na sua aldeia que, seguramente, a sua mãe e ele praticaram durante trinta anos e não de práticas religiosas no templo desligadas do sofrimento do povo.

O «movimento de Jesus» foi, de facto, um movimento de pobres itinerantes pelas aldeias da Galileia, pobres das mais diversas proveniências. Não excluía ninguém, por exemplo, não excluía os abastados sedentários, só que, para Jesus, quem melhor anunciava o Reino eram os pobres. Portanto, duas conclusões:

(a)        Um movimento que julgue o tempo histórico presente e responda às angústias do povo marginalizado, que instile esperança universalista a cativos (na linha de Isaías 33; 42:7;61), cativos já não da Babilónia do passado, mas duma Babilónia ‘bestial’ bem actual (Ap 14:8); um movimento não vingativo, mas compreensivo, includente;
(b)       Um movimento flexível, leve e moldável, que, assim, relativiza-desautoriza o Templo e a Thora (Lei de Moisés), «um movimento desprovido de qualquer cariz institucional» [R. Aguirre], movimento que se alimenta apenas do Espírito de Deus e se basta com uma escala doméstica (Mc 9:33; Jo 4:53; Act 11:14; Act 12:12); movimento que, assim, permite o ‘ir ao outro’ em vez de obrigar o outro a vir à instituição;

Sendo assim, três actualizações:

(a)        Como compreender a inépcia da Igreja actual em ler os sinais da história numa perspectiva universal, estrutural, esperançosa, sem condições doutrinárias prévias?
(b)       Como compactuarmos com uma Igreja que se estriba no juridicismo (‘Código do Direito Canónico’) e diz que ele é conforme à ‘herança jurídica e legislativa do Antigo Testamento e do Novo Testamento, bem como de Jesus’? Como compactuar com uma organização curial que é apenas policial, condenatória, supervisora, autoritária?
(c)        Como continuarmos a aceitar uma Igreja de multidões (ou minorias) anónimas sem escala humana, anti-domésticas?

O «movimento popular profético de Jesus» valorizava a experiência do Êxodo e não as experiências messiano-políticas ancoradas na sagração da realeza (Reis Saul e David), onde o sagrado e o poder político se auto-pervertem. Para Jesus, o Reino deve ser anunciado pelos pobres aos ricos e não o inverso.

A Igreja que Jesus quis foi, «a partir dos pobres e dos mendigos» (Mc 10:25), uma tentativa de «alianças entre mendigos e proprietários». (Mc 10:17) [X. Pikaza]

Jesus não pensou apenas numa situação inversa à que ele presenciava, ou seja, convocar os excluídos e com eles organizar a mesma sociedade mas «em negativo» … Não imaginou um exército de mendigos-soldados, descontentes e violentos à maneira dos soldados do rei David [1 Sm 22], mas, sim, uma ‘legião sem força nem possessão’ (Mc 10:14), que apenas revelasse uma inversão absoluta da (nossa) relação com os bens/riqueza e com o poder! Jesus imaginava que só os pobres (anwim) poderiam dar credibilidade a esse projecto de vida: só o desprendimento prático, real, credibiliza a crença, a mensagem e o mensageiro.

A plenitude de Deus é a plenitude dum Reino assim: reino de «generosidade e comunicação entre todos». [X Pikaza] Um Reino em que a riqueza é partilhada em convívio, instaurando um «princípio de riqueza compartida e convivida» «através do amor daqueles que nada têm» − assim se inverte a lógica da posse e do poder do sistema, de modo que os que nada têm se tornem nos ‘curadores’ dos que têm demais.

Viver é fazer alianças!
Como se diz em Marcos 10:29-30, «aqueles que deixaram um campo, uma casa, uma família (em chave de posse) receberão cem campos, cem casas, cem famílias (em chave de comunicação e abundância partilhada)» [X. Pikaza]

A itinerância [Lc 10:7; Mt 25:35] é a dupla cura: dilata o coração dos anawim (pobres) prevenindo o ódio estéril que auto-corrói, elimina rancores e dependências consumistas, ao mesmo tempo que faz diminuir as dores de cabeça e as preocupações dos ricos. Jesus é radical e faz o diagnóstico: é injusta esta corrosiva angústia pelo dinheiro, quer por parte dos ricos, quer por parte dos pobres. O próprio ‘assistencialismo’ não resolve nada, na medida em que não mexe nos mecanismos do sistema e nos lugares sociais que geram pobreza…

Os sedentários-proprietários oferecem casa e comida aos itinerantes [«Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver», Lc 10:7]. Os itinerantes-pobres oferecerão daquilo que têm e os ricos-sedentários não possuem: vida em liberdade, saúde, gratuitidade – dar-se-ão a si mesmos! [Mc 6:37]

«Jesus iniciou um movimento de comunicação e comunhão social que abre caminho à chegada do Reino a partir dos pobres – os que aparentemente pouco possuem são os que mais dão: graça e cura, salvação!» [Mt 25:35] [X. Pikaza] «Por isso, quando em Mateus 11:4 (cf. Lucas 7:22) se diz “e a Boa-Nova é anunciada aos pobres” não se diz que eles a recebem dos ricos, mas que eles mesmos são os transmissores de saúde, isto é, de esperança para todos, graças recebidas directamente de Deus. No entanto, os ricos podem e devem ofertar também a sua casa e o seu campo, isto é, a sua quinta e o seu trabalho» [X. Pikaza], anulando assim, de vez, os mecanismos de apropriação e má distribuição que geram a dependência e a pobreza. Jesus propõe um comunismo que vá até às entranhas… do sistema!



Os Doze – todo o Israel. Um «movimento aberto»_3

Jesus quis realizar uma obra profética ao serviço da redenção ou plenitude de todo o conjunto de Israelnão de um simples «resto». [Is 1:9; 10:20-23; 11:11; 37:32]

Portanto, não o podemos denominar de um profeta de um grupo de «pobres de Yahvé», de israelitas piedosos e bons, mas de todos os eleitos e amados de Deus («as ovelhas perdidas da casa de Israel») numa abertura a todas as casas e nações do mundo [Mt 28:18-19; Is 40:4.6].

Os Doze significam “Israel inteiro”. Jesus não desenhou uma teologia dos «eleitos», própria de minorias elitistas, resistentes e piedosas, aferradas ao passado. Jesus deixou duas indicações que vão nesse sentido:

(1)       os ‘Doze’ – simboliza esperança de universalidade [na linha de Génesis 12:1-3], de abertura a todos os povos;
(2)       Os ‘pobres-marginalizados’, expressão do conjunto da humanidade, pois, uma vez que os pobres não têm nação nem preferência sagrada especial [2 Sm 5:8], ninguém melhor do que eles para documentar este largo desejo de Jesus.

Esta união ‘Doze’-‘anawim’/pobres é um elemento distintivo da mensagem evangélica de Jesus! Este conceito de ‘Doze-enviados [Mc 6:7; Lc 10:1], e enviados em estado de pobreza, é um sinal de abertura israelita ao conjunto da humanidade. Centrando-se nos pobres, a história de Israel pode abrir-se ao conjunto da humanidade como sinal sacramental.[Is 40:11; a partir dum Deus pobre e condoído]

Só a partir do POBRE se pode ter acesso a Deus Universal, a um Deus para todos!

Este é o «universal concreto» de Jesus: os ‘anawim’, aqueles que só de Deus podem esperar algo e que só têm para anunciar e realizar a utopia de Deus. [Mc 6:7-8.12-13]

Algumas actualizações. Este eixo essencial, esta pedra de apoio, se fosse hoje lançada entre nós, questionaria terrivelmente:

(a)        a Esmola desligada da denúncia do sistema que gera a pobreza (almoços de beneficência, chás de caridade, tômbolas, etc);
(b)       a Tele-Beneficência que não arranca do sofá do seu estatuto quem se limita a ligar para o número que passa no rodapé do ecrã do seu televisor («O Crepúsculo do Dever», G. Lipovetsky);
(c)        a Beneficência Interesseira: Fundação António da Mota, Leopoldina, Popota, Fundação Manuel dos Santos, Fundação EDP, etc;
(d)       a Lavagem de Dinheiro Sujo (Comunidade Santo Egídio, Movimento Comunhão e Libertação, Caminho Neo-Catecumenal, Arautos do Evangelho, IOR-Banco do Vaticano, etc);
(e)        a Acumulação de Riqueza, sobretudo, a partir da titularização e da especulação (Diocese do Porto-BPP, Instituto Missionário da Consolata-Fátima);
(f)         os Falsos e Hipócritas exemplos de Pobreza-Humildade (viagens papais imperiais cheias de seguranças; a predilecção do actual papa por pessoas cultas − apud Peter Seewald; o culto duma imagem pobretana de Steve Jobs-Apple ou do fundador do IKEA [Ingvar Kamprad Elmtaryd Agunnaryd], o primeiro sempre de t-shirts e ténis e o segundo de casaco roto guiando um pequeno carro muito velho);

Só a partir da radical inversão da relação para com a riqueza e o poder se pode caminhar no sentido do desprendimento real, concreto, credibilizante. «Fora dos pobres não há salvação» (felicidade) [Jon Sobriño]. A vida é o longo caminho ao longo do qual se faz a aprendizagem do desprendimento! [confronte Mc 10:28 com v.32b; subindo para Jerusalém: tanto desprendimento vs tanto medo…].

Há, de facto, uma incompatibilidade [Miguel Ramos] entre Reino de Deus e Mamon! O dito ‘diálogo inter-religioso’ só a partir deste ‘universal-concreto’ poderá ter algum futuro e credibilidade. [Aloysius Pieris, sj, ‘Liberación, Inculturación, Diálogo Religioso. Un nuevo paradigma desde Asia’, SCAM, Verbo Divino, 2001, p.269]





Koinonia’ como apólice de vida plena_4

Estes 5 capítulos de Marcos, que hoje abordamos (6-10), têm uma mensagem axial que gira à volta da relação «poder-serviço». A palavra ‘koinonia’ quer dizer ‘serviço comum’, mas na tradição católica ocidental sempre que (em religião) se fala de ‘serviço’ pensa-se em serviço cultual, adoração a Deus, serviço religioso, tarefas paroquiais, actividades centradas no templo [Jz 17:1-6; s Sm 15:7-8], ou seja, associa-se ‘servir’ a uma casta de pessoas mais ou menos vocacionadas para o sagrado − pensa-se não só em sacerdotes e catequistas, mas sobretudo nesses. [Nm 18; 1 Sm 2:11.18; 3:1; Jer 33:21s]

No entanto, os judeus sempre viveram a tensão da relação com um sagrado descaracterizado e idolátrico: o ‘serviço a Yahvé’ deve estender-se a toda a vida do judeu crente através da obediência aos Mandamentos da Thora de Moisés. É o que os profetas e o Deuteronómio não cessaram de repetir: «a obediência é preferível ao melhor sacrifício cultual». [1Sm 15:22; Dt 5:29ss] «Quero o amor, não os sacrifícios (rituais religiosos)» desligados do amor… [Os 6:6; Jer 7]

No evangelho de Jesus, quase impressiona a ausência de ‘culto’ prestado por Jesus a Deus. Seguindo os sinópticos, na boca de Jesus, as palavras ‘reverenciar’, ‘venerar’, ‘louvar’, ‘glorificar’, ‘adorar’ [Mt 15:36; Mc 8:6 dizem «dar graças» e não reverenciar] ou os gestos de adoração a Deus como ‘prostar-se’, ‘cair aos pés’ quase não existem! [cf. um momento muito especial que não pode ser definido de adoração a Deus, mas de terrível aflição e apego: Mc 14:35; Mt 26:39] A somar a isto, Jesus é muito explícito: «Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto (=servirás, latreúseis).» [Mt 4:10; Lc 4:8]. Ou seja, Jesus não só não oferece sacrifícios religosos cultuais como não se considera Deus. Nos sinópticos não se valoriza o significado cultual, ritualista da palavra ‘servir’, ao contrário do que acontece nas Cartas de Paulo [Rm 9:4; 12:1; Heb 9:1.6].

Aquando da chamada ‘instituição da eucaristia’ [Mc 14:22s; Mt 26:26s;: «pronunciou a benção», «deu graças»], as expressões podem ser vistas como manifestações de júbilo e agradecimento a Deus, as quais estão na raiz da palavra eukharistía’ (acção de graças, agradecimento, tal como acontecia nos banquetes a que Jesus presidia; cf. Mc 8:6 e Mt 15:36).

Além disso, no evangelho de João, a instituição da eucaristia é substituída pelo «lava-pés»! [Jo 13:4ss] « Disse-lhe Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» Replicou-lhe Jesus: «Se Eu não te lavar, nada terás a haver comigo

A palavra ‘servo’ quer dizer ‘escravo’ [J. Gnilka], e a palavra escravo, no tempo do império Romano, tinha uma conotação horrível. Ou seja, para Jesus ‘servir’ é «fazer a vontade do pai», é colocarmo-nos, de livre vontade, totalmente ao serviço uns dos outros: «o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos» [Mc 10:45] «Eu vos dei o exemplo… O servo não é maior do que o mestre» [Jo 13:15ss]. «Estou no vosso meio como quem serve» [Lc 22:27]. «Jesus chamou os discípulos e disse-lhes: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso escravo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o escravo de todos.» [Mc 10:42; cf. ]

No tempo de João Baptista e de Jesus, a religião estava estragada, tal como o sal corrompido, e já não servia para nada a não ser para ser deitada fora e calcada pelos homens. [Mt 5:13] Jesus não surge como um ‘piedoso’, uma pessoa religiosa, dada a rezas e benzedices, personagem sorumbática, amiga de procissões, cinzas e senhor dos passos… vias-sacras, veste roxas e mortificações. Jesus nunca foi um asceta! E, no entanto, «a sua fama logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia». [Mc 1:28] Porque terá sido? Adoptando uma postura bem diferente da de João Baptista, Jesus consegue um impacto maior. João, usando a linguagem da religião (‘pecados’, ‘castigo divino’, etc) instigava medo; Jesus, usando a linguagem dos profetas que anunciavam o fim de todos os fardos (morais, religiosos, sociais, económicos, políticos, etc), provocava a euforia. Porque terá sido?

A resposta tem a ver com o tipo de auditório de um e de outro? Também, mas, sobretudo, tem a ver com o conteúdo da mensagem. Em Jesus, tratava-se de uma mensagem que ultrapassava as fronteiras do judaismo ortodoxo (chegando à Decápola, à Transjordânia, etc). «O entusiasmo que produziu o anúncio da imediata chegada do reino alcançou praticamente toda a Palestina e ultrapassou as fronteiras do país alcançando os povos circundantes do estrangeiro. Ou seja, as pessoas compreenderam imediatamente que aquilo não era um assunto de tipo nacionalista, algo só para judeus e, portanto, compreenderam igualmente que aquilo tão pouco era uma questão específica de determinada religião, a religião de Israel. O Reino, portanto, vai para além do político. E também para além do religioso.» [José M. Castillo, EI, p.179]

Sabendo nós que não tinham a mesma nacionalidade, a mesma religião e a mesma filiação política, que tinham, então, aquelas multidões em comum para se sentirem seduzidas pelas palavras de Jesus?

São necessárias 3 explicações prévias.
A primeira tem a ver com o tipo de auditório que Jesus atraiu a si. Os evangelhos definem essas pessoas usando a palavra grega ‘óchlos’, e que significa ‘a multidão do povo’ ou ‘o gentio’ em contraposição às classes nobres e aristocráticas superiores. Tratava-se da «plebe carente de significado político e intelectual». [R. Meyer] O Evangelho de João diz que era «a plebe que desconhecia a Thora e era, por isso, maldita» [Jo 7:48-49], pessoas que designavam por ‘am hâ’âres, ou seja, a multidão de pobres e ignorantes, sem cultura e sem influência, que abundavam na época de Jesus. As palavras de Jesus [Lucas 4:18ss; «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres… enviou-me a proclamar a libertação aos cativos… a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.»] foram imediatamente acolhidas pela multidão dos famintos e deserdados, mas rechaçada pelos guardiões da ordem económica e ideológica: fariseus, doutores em teologia, sacerdotes e senadores imperiais romanos [Lucas 4:28ss: «encheram-se de furor. E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o matarem dali abaixo.»].
O anúncio do Reino de Deus anda associado aos estratos mais baixos da sociedade e ao seu imediato acolhimento das palavras de Jesus.

A segunda tem a ver com o facto de não se tratar de uma promessa para a vida depois da morte, mas a ser concretizada aqui na única vida que vale a pena. Daí as curas e a expulsão de demónios! Ou seja, tudo do que Jesus deitou mão para definir o que era aquilo do Reino só podia ter impacto em quem estivesse na mó de baixo, em quem se sentisse sem futuro, sem a mínima porção de dignidade humana, sem possibilidade alguma de se livrar de dívidas, da fome e de credores. Jesus chega a dizer que, se expulsa os demónios pelo poder de Deus, então, é porque o reino já veio! [Mt 12:28; Lc 11:20] Tem a ver com um Reino como utopia, que consiste em sonhar com um «mundo outro» e não somente um mundo meramente melhorado, nem, muito menos, com um Reino celestial. Não! Falar do Reino é falar da devolução da dignidade aos pobres e escurraçados desta sociedade em que vivemos e não num longínquo além. Falar de Reino é ultrapassar as linhas de fronteira que separam a classe média dos marginais: é passar para o lado de lá e exigir que se acabe com o acantonamento dos pobres nas cidades (vulgo, ‘os bairros’, ‘as ilhas’)! Falar de Reino é denunciar os condomínios fechados… e propor a abertura de canais de comunicação, de convívio e de partilha total entre ricos e pobres. Claro está que, falar radicalmente de Reino como Jesus falou, não pode ser apontado como puro sadismo: Jesus não foi sádico para com o homem rico (Mc 10:17) – o texto até diz que Jesus, olhando-o nos olhos, sentiu afeição por ele (v.21)! O que Jesus propõe é que todos possam experimentar a alegria da libertação plena quando (nos) libertamos as grilhetas do económico, do psicológico, do relacional.  Ou seja, a alegria da libertação plena acontece quando somos capazes de nos libertar do que está dentro e do que está fora de nós (ou seja, daquilo que está ao nosso alcance e daquilo que está fora da nossa capacidade de alterar; ou seja, o pessoal/local e o estrutural/nacional/internacional), de eliminar aquilo que estraga a vida, a dignidade e a felicidade (nossa e dos outros).

A terceira tem a ver com o seguinte. Jesus nunca elegeu o império romano como o seu adversário privilegiado, Jesus não se interessou pela sublevação armada, porque ele sabia bem que ‘a coisa’ é mais complexa. Quando, certo dia, alguns lhe vêm dizer que Pilatos havia assassinado uns quanto galileus [Lc 13:1], Jesus, em vez de se pôr a arengar impropérios contra a dominação política romana e seus métodos de selvajaria brutal, desconcertantemente, Jesus disse: «Julgais que esses galileus eram mais pecadores que todos os outros galileus, por terem assim sofrido? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes (éan mè metanoête), perecereis todos igualmente.» Jesus recusa-se a alimentar a ideia de que não há alternativa à cumplicidade com o que está a acontecer: Jesus diz que, se não lutarmos por uma mudança radical (metanoia) de vida, acabaremos do mesmo modo como aqueles galileus que Pilatos assassinou. E sugeriu mais: a nossa infelicidade está em nos preocuparmos apenas com a nossa felicidade. Jesus alerta para uma aspecto nuclear da sua visão das coisas: aquele que só pensa em se desenrrascar sozinho – neste caso, servindo-se da religião e de todo um sistema ideológico/teológico de justificação do Mal que acontece – esse perderá a (sua) vida de que tanto gosta.

Jesus elege os ideólogos do sistema (os romanos eram apenas ocupantes militares) como o seu inimigo número um: os teólogos, os piedosos (sumos sacerdotes e fariseus), etc. Numa sociedade teocrática eram estes que faziam com que as multidões aceitassem a inevitabilidade das desgraças das suas vidas, culpabilizando-as. Eram eles que eram capazes de usar a religião para tudo e para nada, tudo moralizando. Foram eles que se sentiram muito mal por Jesus ter recusado entrar nos seus paradigmas mentais [Mc 7], os de um culto desligado da justiça [Mc 7:9-11].

Estes aspectos do evangelho jesuano – não ter nada (a melhor denúncia do sistema), realizar «um mundo outro» nesta terra (oferta de uma alternativa real curadora), recusar a violência gratuita, pugnar pela coerência e pela responsabilidade social – ajudam a explicar a adesão das multidões marginais e a hostilidade dos gestores dos vários poderes instituídos.





Concluindo

Deste 5 capítulos de Marcos seleccionados, demoremo-nos, por fim, no relato em que está envolvido João, um dos dois filhos de Zebedeu: Mc 9:38-40.

Trata-se duma marca daquilo que se pode definir como a primeira tentativa de controlo institucional do espírito livre de Jesus, dentro da Comunidade Primitiva.

De facto, sabemos do envolvimento deste João nesse tipo de actividades, quando o evangelho chegou à Samaria [Act 8:14]: aí o vemos, ao lado de Pedro, tratando de ‘legalizar’ a adesão a Cristo (numa linha muito ‘controleira’…). Tal facto não admira, pois João e seu irmão Tiago, o Zebedeu, eram desejosos de poder e, para isso, não hesitavam em servir-se dos meios mais baixos, ou seja, não hesitavam em deitar mão da religião/ideologia para ascender na hierarquia… [Mc 10:35] Ao lado de Pedro, até não ficavam mal: o modo de ambos verem as coisas era coincidente [Mc 8:33].

A História sempre nos ensinou: toda a instituição dominadora alimenta-se da segregação e do medo. Toda a dominação se baseia na ‘sacralidade separadora’ [X. Pikaza], sustem-se do acantonamento dos impuros alimentado pela culpabilização. É ou não é isso que acontece hoje entre nós em matéria de xenofobia contra os pobres e os utentes dos subsídios sociais? A resposta de Jesus é NÃO! (v.39 - «não o impeçais») Jesus defende os heterodoxos que vivem fora da ‘comunidade zebedeia’. Jesus pede a essa comunidade que não reserve o evangelho a um grupo de amigos: para Jesus, os eleitos são os que libertam − «vimos alguém expulsar demónios». Jesus desautoriza a imposição eclesial que privilegia a pertença. Quantas paróquias, de facto, ainda hoje pensam a pastoral em termos territoriais ou fazem depender o acolhimento de prévias relações de amizade… Quantas paróquias ainda hoje são ‘controleiras’…

Para Jesus, a garantia de pertença ao Reino não é fazer em nome de Jesus e pertencer administrativamente à instituição, mas pura e simplesmente fazer!

Aliás, é curioso ver como esta queixa de João é pretexto para uma radicalização de Jesus: «Quem não é contra nós é por nós. Sim, seja quem for que vos der a beber um copo de água por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.» (v.40-41). Curiosamente aqui, Jesus reforça a sua argumentação com um gesto laico de máxima simplicidade − matar a sede ao apóstolo – e não com nenhum exemplo de piedade religiosa ou que envolva donativos ou pecúnia. Ao contrário dos filhos de Zebedeu e do que alguns ricos da nossa praça pensam, a pertença à Igreja não se compra, bem como o céu também não se compra. Marcos 10:21 deveria ser mais vezes objecto de declaração pública…

O que está em questão em Mc 9:38-40 é o problema da autoridade na Igreja: esta passa obrigatoriamente pela laical primazia dada à libertação dos pobres face à doutrina religiosa; pela desafeição, por parte do clero, face à riqueza; pela liberdade do magistério face ao institucional e sua rigidez («itinerância crítica»).





Jesus vem propôr uma inversão absoluta de critérios [Mc 10]. A fim de alguém ser recompensado, Jesus não mandou dar dinheiro à Comunidade, nem ser mecenas das obras de restauro da igreja − mandou desfazer-se da posse e do instinto de posse [Mc 10:21] e ACEITAR CORRER OS RISCOS TODOS: marginalização e/ou perseguição! [Mc 10:30-31]

O programa de vida felicitante de Jesus assenta no serviço desinteressado, em servir, servir gratuitamente, servir graça e dom de graça. É claro que tanto desprendimento – adverte-nos o bom-senso – não são favas contadas… seguramente! Estes 5 capítulos de Marcos (6-10) não só contêm 3 avisos de Jesus aos discípulos de que as coisas podiam vir a correr mal… [Mc 8:31; Mc 9:30; Mc 10:32], como começa com um mau agoiro [Mc 6:17].

Mais tarde veremos no que tudo isto deu…

Porém, o evangelho de Jesus insiste: só a Koinonia, só o serviço pode constituir-se em apólice de vida plena! Jesus garante-nos que aos homens-autosuficientes isso pode parecer impossível, mas aos homens-em-Deus, não… [Mc 10:27]


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Devo muita da inspiração deste texto a Xabier Pikaza Ibarrondo:
[cf. seu blog de 29 Abril 2010]

a José María Castillo, Espiritualidade para Insatisfeitos, Ed. Trotta.

e a ‘Diccionario de la Biblia – Historia y Palabra’, por Xabier Pikaza, EVD, 2007


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«Pues bien, hablando de los “Apóstoles”, sabemos que, cuando Jesús los mandó a predicar el Evangelio, lo primero que hizo fue prohibirles severamente que llevaran o que manejaran dinero: “ni oro, ni plata, ni calderilla...” (Mt 10, 9...). Es decir, Jesús se dio cuenta de que, para transmitir el Evangelio, el dinero, no sólo no ayuda, sino que (sobre todo) es un estorbo, es un impedimento. Cuando Jesús dijo esto, lo que en realidad estaba afirmando es que la condición indispensable para transmitir el Evangelio es la ejemplaridad, la claridad y la transparencia de la propia vida. El que no tiene dinero, no tiene nada que ocultar. Y el que oculta (lo que sea) en asuntos de dinero, lo mejor que hace es dedicarse a cualquier otra cosa, que no sea el Evangelio. ¿Cómo va a explicar las Bienaventuranzas, el Sermón del Monte, las numerosas parábolas de los evangelios, que desentrañan la maldad que lleva consigo la codicia por el dinero, si eso lo hace un individuo o una institución que mantiene buenas relaciones con los “mercados” ésos de los que tanto se habla ahora?» (…)

«Lo grave de la postura, que ha asumido la Conferencia Episcopal Española, está en que, en el caso de la España actual, los obispos no están dispuestos a renunciar a un derecho, sino ni siquiera a un privilegio. Este punto capital ha sido analizado al detalle por expertos que saben bien de lo que hablan. Hace más de diez años, el profesor Julio Jiménez Escobar defendió una excelente tesis doctoral, en la Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales (ETEA), de Córdoba: Los beneficios fiscales de la Iglesia Católica (editada por Desclée, Bilbao, 2002), en la que, entre otras cuestiones de importancia, defiende y demuestra que la Iglesia española goza ahora mismo de más privilegios económicos que los que obtuvo con el concordato del año 1952, en tiempos de Franco. Durante siglos, la Iglesia ha podido “justificar” sus posesiones, sus bienes, sus privilegios legales, fiscales, sus abundantes beneficios de todo tipo. No sé si esta situación se va a prolongar mucho tiempo. Sospecho que no. En todo caso, y sea lo que sea de este asunto, confieso que, cuando me entero de las cosas que dicen algunos obispos sobre esta cuestión (recientemente Mons. Martínez Camino), siento vergüenza ajena. Y vergüenza propia. Pienso mucho en el dolor de los que sufren las peores consecuencias de la crisis. Y me da pena de esta Iglesia que, por boca de sus más altos representantes, da señales de haber entrado en un proceso de descomposición que difícilmente va a tener vuelta atrás.»