S. João e a revelação da Liberdade
«A verdade vos fará livres» [João 8:32]
Império sob Domiciano_Época de Crise e perseguições (Patmós) |
I - UM POVO DE REIS E SACERDOTES
O CONTEXTO_1
Não podemos compreender o evangelho segundo S. João fora da perspectiva do livro do Apocalipse. Mesmo que os dois livros não tenham sido escritos pelo mesmo autor no seu teor actual, pelo menos temos a certeza de que ambos estão estreitamente relacionados com S. João e foram escritos por pessoas que pertenciam ao grupo formado em torno do último dos apóstolos, aquele que foi o último a morrer, e a respeito do qual circulou um dia o rumor de que não morreria, antes que Jesus voltaria antes da sua morte.
O livro do Apocalipse é anterior ao evangelho e deve ser lido antes do evangelho, se queremos entender a mensagem deste último. O Apocalipse fornece o contexto do evangelho. De certo modo, podemos dizer que o evangelho de S. João é uma leitura do evangelho de Jesus Cristo à luz dos acontecimentos contemplados e interpretados pelo livro do Apocalipse.
O livro do Apocalipse não exprime explicitamente uma mensagem sobre a liberdade. Não é o seu tema. Mas a mensagem sobre a liberdade que se acha no quarto evangelho não pode ser separada do seu contexto que é o Apocalipse. O Apocalipse mostra a história e não a exprime em termos abstractos. Não chega a usar o vocabulário da liberdade, mas mostra o povo livre, implicado no drama do mundo, enfrentando o seu adversário cósmico e histórico de sempre. Por isso, a contemplação da luta daquele povo de homens livres contra os opressores da liberdade constituirá a melhor introdução à leitura da revelação da liberdade no evangelho segundo S. João. O evangelho considera a mesma perspectiva, usa os mesmos conceitos e ensina a mesma mensagem, mas num outro género literário. O que o Apocalipse mostra na forma de drama histórico mundial, o evangelho o expõe em forma de discursos de Jesus: Jesus anunciou o que o Apocalipse mostra.
Vimos (noutras meditações anteriores) a proclamação da mensagem cristã para o mundo dos judeus, dentro do contexto judaico e numa linguagem judaica. Para S. Paulo, o império romano era simplesmente uma circunstância acidental. Não era o objecto da mensagem. Não interferia, realmente, com a novidade do cristianismo. Parecia tão neutro como o ar, a terra e o mar: uma parte da paisagem e nada mais. A liberdade não o atingia. Ele parecia estar fora do alcance da liberdade.
Mas, na perspectiva de S. João, o império romano ficava no centro do drama. Acontece é que passaram muitos anos: 30 anos entre as grandes Epístolas e o Apocalipse. Em 30 anos as circunstâncias mudaram. Com a destruição de Jerusalém e do Templo, a polémica judaica contra as novas igrejas perdeu grande parte da sua força persuasiva. Ao invés, sobretudo nas cidades gregas da Ásia Menor, a presença das novas comunidades cristãs começa a ser percebida como factor social e cultural novo, específico. Apareceram os primeiros conflitos e as primeiras formas de rejeição do cristianismo pelo conjunto social e cultural do império romano. Alguns cristãos morrem vítimas das agressões de certos grupos irritados pela posição dos cristãos contra os cultos pagãos e provavelmente contra o culto imperial. As sete cartas do Apocalipse às sete igrejas revelam tais situações de conflito.
Nesse contexto, o significado histórico do Apocalipse de S. João tem a ver com o começo dum novo drama que o cristianismo estava a enfrentar. A profecia de S. João revela que esses conflitos não devem ser interpretados apenas como simples acidentes da história: nas primeiras perseguições, havia que reconhecer os primeiros sinais de um debate que doravante ia definir a condição cristã no mundo. A oposição entre fariseus e discípulos de Jesus dentro do povo judaico − perspectiva constante de Paulo − era um facto superado pela evolução. Mas o fim dessa oposição, como situação característica, não significava, para a igreja de Deus, um tempo de paz e tranquilidade. Muito pelo contrário. A perseguição das primeiras comunidades cristãs pelos fariseus era apenas uma imagem duma perseguição muito mais ampla, profunda e radical. A Igreja estava na aurora duma perseguição imensa e dum drama imenso que ia ocupar a totalidade do seu destino na terra.
O Apocalipse era a revelação da totalidade do porvir da Igreja na forma de uma imensa perseguição e de uma imensa resistência à perseguição. A liberdade cristã era chamada a ser vivida sob a forma de uma resistência oposto a uma oposição total e radical. E a oposição procedia, desta vez, do império romano na sua totalidade: como cultura e como poder, como união de todos os povos da terra e como sistema de dominação total. O julgamento de S. João sobre o império romano é dramático e terrível. Mas não podemos considerá-lo excepcional na história cristã. Lembremo-nos que, para S. Agostinho, o império romano era «magnum latrocinium»: uma imensa empresa de roubo, banditismo, no fundo, uma imensa máfia e nada mais. E, na realidade, assim era, apesar do império se ter revestido de todos os despojos, bens materiais e culturais roubados aos povos escravizados, de tal modo que o mérito de todo o trabalho dos povos escravos lhe ser atribuído como mérito próprio do império. S. João não se deixou seduzir pelo prestígio do império. Ao invés, a sua profecia é a revelação da mentira que engana os povos, é a revelação da mentira que o próprio império é e que provoca uma profecia de denúncia generalizada dessa mentira generalizada. O papel da Igreja no mundo será, justamente, a denúncia dessa mentira total sob a forma duma profecia total. Esse é o contexto em que se vive a liberdade cristã.
Hoje em dia, o império romano morreu, mas a mensagem de S. João não perdeu a sua força, pois o império é uma realidade permanente. Os impérios históricos desaparecem, mas o sistema renasce sob outras formas. A teologia cristã da história consiste, justamente, em mostrar como as realidades denunciadas por S. João reaparecem em novas circunstâncias sob novas formas. A realidade do império é mais viva do que nunca nos dois impérios que repartiram o poder entre si: o Americano e o Soviético. Nós mesmos somos uma parte do império americano, dirigidos por um poder político e económico que corresponde aos aspectos denunciados por S. João no império romano, com a ajuda de uma ideologia imperial que é a ideologia da segurança nacional, hoje em dia norma e consciência de todos os órgãos do império em todos os países que dependem dele [NATO, etc]. Se cada império mantém a disciplina e a sujeição dos povos dominados invocando a necessidade da defesa comum contra o império rival, na realidade ambos os impérios são cúmplices e, graças a essa luta fictícia, ajudam-se mutuamente a manterem a sua dominação sobre a parte do mundo que lhes compete.
De acordo com a mensagem profética de S. João, o povo de Deus há-de ser colocado dentro do contexto desse drama, se é que se quer compreender o conteúdo real da sua liberdade. Já não se trata de conquistar a liberdade da Lei de Moisés, mas a liberdade frente à máquina infernal do império romano. A liberdade cristã é histórica, um dado que se conquista dentro dum contexto histórico numa luta contra adversários cujos nomes agora são conhecidos. Já não são os rabis de Israel, mas os imperadores com a sua corte, a sua administração e os seus exércitos.
Imperadores, Império e Roma Imperial |
O DRAMA_2
Vejamos, primeiro, como o Apocalipse descreve a situação histórica do Povo de Deus.
Em primeiro lugar, S. João revela que o império romano não é toda a realidade abarcada por essa designação. Naturalmente, dentro das fronteiras do império há inúmeras realidades humanas boas e óptimas, que não têm responsabilidade nenhuma no sistema imperial, bem pelo contrário, são vítimas do sistema imperial. O que ele tem na mira é o sistema como tal, o sistema de dominação que é, ao mesmo tempo, um sistema de mentira, sistema que pretende destruir o cristianismo por este estar a descobrir que tem no império romano o seu mais radical adversário. Ora, segundo S. João, esse sistema não é apenas um acidente histórico, não é apenas obra de homens malévolos, corruptos pela vontade de poder. Tal sistema de poder não se explica pela pura malícia de alguns indivíduos: os imperadores são muito mais instrumentos do sistema de poder que seus autores. Não está excluído que, os imperadores e seus funcionários, possam ser pessoas com boas intenções e, inclusivamente, capazes de actos bons. Mas, por trás deles, está o sistema. E o autor do sistema, o inspirador que fez surgir a máquina imperial é o próprio Satanás, a serpente do Génesis.
Para S. João, o drama mundial da oposição entre o sistema imperial romano e as igrejas cristãs é a manifestação, a continuação, a repetição sempre renovada do drama do primeiro capítulo do Génesis[1]: a luta entre Deus e «o grande dragão, a cobra antiga que se chama diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro» [Ap 12:9]. O jardim do Paraíso tem, agora, o tamanho do mundo inteiro. A humanidade enganada pela serpente é o conjunto dos povos: «Toda a terra admirou a fera e adorou o dragão» [Ap 13:3]. O dragão não conseguiu vencer Cristo, mas continua fazendo guerra ao seu povo: «o dragão irritou-se contra a mulher e foi fazer guerra ao resto da sua descendência, aos que guardam os mandamentos» [Ap 12:17]. Esse é o dragão que enganou a antiga Eva, mas que foi vencido pelo Filho da nova Eva e que não conseguiu enganá-la: agora o dragão continua a luta ao atacar os descendentes da nova Eva, isto é, as Igrejas cristãs.
Portanto, as perseguições que as igrejas cristãs sofrem são a nova forma de luta do dragão que não conseguiu enganar a Igreja, a nova Eva. E a fera que o dragão suscitou, «o dragão deu-lhe a sua força, o seu trono e grande poder» [Ap 13:2], é, de acordo com os melhores intérpretes, o império romano e todos os poderes que lhe prolongam o domínio na terra. «Foi-lhe dado fazer a guerra aos santos e vencê-los. E foi-lhe dado poder sobre toda a tribo, língua, povo e nação» [Ap 13:7]. As perseguições que sofrem as igrejas, desde o final do século I, correspondem à guerra de Satanás − a guerra da mentira, da falsidade contra a verdade, pois só Deus é verdadeiro.
Sobre os mártires − os discípulos que são fiéis até à morte − o dragão não tem poder. Foi vencido por Jesus, em virtude da sua morte e ressurreição – eis o sentido dos mil anos de preservação de que fala o profeta do Apocalipse: «Vi descer do céu um anjo que tinha na mão a chave do abismo e uma grande algema. Ele apanhou o dragão, a serpente antiga, que é o diabo, Satanás, e algemou-o por mil anos» [Ap 20:1s]. «Depois de se consumarem mil anos, Satanás será solto da prisão saindo para seduzir as nações dos quatro cantos da terra, Gog e Magog, e reuni-las para a luta, numerosas como areia do mar… Mas desceu um fogo do céu e as devorou» [Ap 20:9].
A situação das igrejas cristãs há-de ser pensada como o inverso da condição do primeiro Adão que foi escravizado por Satanás e submetido à escravidão do pecado. A libertação da mentira e da morte, isto é, da condição de submissão ao dragão, é a condição das igrejas perseguidas que enfrentam, pela vitória, a actual agressão do dragão.
O livro do Apocalipse é, porém, uma reinterpretação da totalidade do Antigo Testamento, uma compreensão dos acontecimentos actuais à luz dos grandes antagonismos passados do Povo de Deus. Depois do antagonismo entre Satanás e os pais da humanidade, verificamos a luta entre o Egipto e Israel. Dessa luta resultou a libertação pelo Êxodo. Ora, nas igrejas cristãs estamos assistindo a um novo Êxodo [2]. Não podemos citar aqui todos os textos do Apocalipse que evocam o Êxodo. Basta-nos lembrar alguns dos mais importantes. Eles mostram-nos a realidade actual da libertação da qual o Êxodo (de Israel) do Egipto foi uma imagem e uma primeira aproximação. «E vi também como que um mar… E os vencedores da fera… conservavam-se de pé sobre o mar com as cítaras de Deus. Cantavam o cântico de Moisés, o servidor de Deus…» [Ap 15:3]. Passaram o Mar Vermelho e Cristo, o novo Moisés, o Cordeiro os leva pelo deserto até à nova Jerusalém: «O Cordeiro será o seu pastor e os levará às fontes das águas de vida» [Ap 7:17]. O Egipto é identificado pelo autor do Apocalipse: as duas testemunhas que encarnam a Igreja de Deus frente ao dragão estão no Egipto. Agora é que estamos no Egipto e estamos vencendo os egípcios, ainda que lhes seja concedido dar a morte às testemunhas da verdade [Ap 11:7-9].
Na história de Israel, o papel do Egipto, opressor, cruel, idólatra, anti-divino foi assumido mais tarde pela Babilónia. Ora, a oposição entre um resto de Israel perseguido mas inabalável e a grande cidade dos ídolos e da blasfémia acha-se renovada e atinge o auge na situação concreta em que vivem as igrejas cristãs no momento em que João recebe a sua revelação e proclama a sua profecia.
Babilónia [3] é, ao mesmo tempo, o grande ídolo, a grande mentira que assume o lugar de Deus e do seu Cristo e a cidade que domina os povos da terra. Ela é dominação para os homens e mentira para Deus. Face a um Deus que dá vida, ela é fonte de morte: «Vem e eu te mostrarei o julgamento da grande prostituta, que se assenta sobre as muitas águas, com a qual se prostituíram os reis da terra» [Ap 17:1-2]. «A mulher estava ébria do sangue das testemunhas de Jesus» [Ap 17:6]. O anjo disse-me: «As águas que viste, sobre as quais a prostituta se assenta, são povos e multidões, nações e línguas» [Ap 17:15].
Os exegetas concordam: Babilónia é Roma, o império romano. Esse império que a Igreja enfrenta é a realização completa daquilo que Babilónia prefigura no Antigo Testamento. Desse modo, a luta de Israel contra o Egipto e contra Babilónia, há-de ser contemplada na situação actual: fornece, à situação actual, as categorias que nos permite compreendê-la.
A Igreja é Israel frente ao Egipto e à Babilónia. Tanto o Egipto como a Babilónia têm, por carácter típico, a dominação dos povos reduzidos, por si, à escravidão material e cultural: estão submetidos à edificação da máquina de poder e riqueza duma potência mundial que se quer total e absoluta, e estão submetidos à mentira radical e blasfemadora que consiste em apresentar esse poder mundial como o verdadeiro deus e o verdadeiro salvador.
Frente a essa escravidão levantam-se as testemunhas, a igreja dos profetas, denunciando a mentira e rejeitando a submissão: essa é a sua liberdade. Precisamos ver a libertação e a liberdade no quadro do drama total da humanidade colocada na opção radical entre escravidão total e liberdade radical.
Para completar esse quadro, convém assinalar um aspecto que será importante para a interpretação do quarto evangelho e que, sem dúvida alguma, já é importante para o próprio Apocalipse. S. João considera uma quarta oposição como sendo paralela às três que acabamos de expor. Trata-se da oposição tão viva na tradição da primeira geração cristã entre o grupo dos discípulos de Jesus e o judaísmo simbolizado por Jerusalém [4]: Jesus morreu em Jerusalém. Jerusalém matou-o. A cidade que tinha recebido as promessas messiânicas matou o Messias, Jerusalém transformou-se assim num novo símbolo do poder de Satanás e do seu assalto contra Deus. Jerusalém é mais uma figura do império romano, na medida em que o que está a acontecer presentemente no império romano é a repetição, a renovação daquilo que aconteceu com Jesus em Jerusalém. Jerusalém pôs-se na linha do grande dragão-serpente do Génesis, na linha do Egipto, da Babilónia. Ela representa a oposição à verdade, o poder da mentira e da dominação. Assim se explica porque é que João vê cadáveres das testemunhas mortas por causa do império romano, em Jerusalém: «seus cadáveres jazerão na praça da grande cidade que se chama simbolicamente Sodoma ou Egipto, onde o seu senhor foi crucificado (isto é, Jerusalém)» [Ap 11:8].
Jerusalém, ou seja, os judeus que crucificaram Jesus, mas também os judeus que participaram na perseguição aos cristãos [Ap 2:9; 3:9], separa-se do verdadeiro Israel e junta-se aos inimigos de sempre do Povo de Deus: Egipto, Sodoma, Babilónia! Frente a eles, o «verdadeiro Israel», que são as comunidades cristãs, permanece fiel à vocação do Israel de sempre.
Tal é a estrutura do mundo revelada pela profecia de S. João. Contudo, o profeta não usa o vocabulário da liberdade para a enunciar. É verdade que as palavras abstractas não intervêm para definir a condição cristã, mas a realidade concreta da liberdade está bem presente.
Eis como o autor do Apocalipse a vê:
1/ Por um lado temos o Dragão, as feras, o Egipto, Babilónia, Jerusalém a traidora que mata o Messias. Ora, essas imagens designam o império romano e todos os seus sucessores. Aquilo que os caracteriza, assim como as suas figuras do Antigo Testamento, são dois atributos: a mentira e a opressão. A mentira consiste em dar o nome de Deus a quem não é Deus: ao poder imperial; o culto ao imperador não é a totalidade da blasfémia, mas o culto imperial representa bem o carácter anti-divino do sistema civilizacional (ou de anti-civilização encarnado no império). Quanto à opressão, ela é total e envolve todas as actividades dos povos submetidos condenados a edificar uma riqueza blasfemadora e atentatória da dignidade de Deus e dos homens.
Já citamos alguns textos que mostram a dominação total sobre os povos escravos. Eis alguns textos mais. «E a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, marcou-os com um sinal na mão direita ou na fronte. E assim, quem não tivesse o sinal, o nome da Besta ou o número do seu nome não podia comprar nem vender» [Ap 13:16-17]. «Caiu, caiu Babilónia, a grande. Tornou-se antro de demónios, guarida de todos os espíritos imundos, guarida de todas as aves imundas, guarida de todos os animais imundos e repelentes; porque, do vinho da sua luxúria, se embriagaram todas as nações; prostituíram-se com ela os reis da terra e, com o seu luxo despudorado, enriqueceram os comerciantes do mundo.» [Ap 18:2-3]. Não podemos citar aqui todo o capítulo 18 que é uma lamentação de estilo profético, na linha dos profetas do Antigo Testamento, sobre a ruína de Babilónia. «Todas as nações erraram por causa dos seus malefícios» [Ap 18:23].
2/ Diante dessa dominação total, numa mentira e num engano total, está o povo dos profetas. As igrejas cristãs são descritas na categoria dos profetas. O seu papel no mundo, a sua figura ideal é a dos profetas. São os continuadores dos profetas do Antigo Testamento.
3/ Entre o poder de dominação e os profetas, quais são as relações? Quais são os actos que constituem a história do seu enfrentamento? Esses actos são três e aparecem sucessivamente no capítulo 11: a profecia, o martírio e a ressurreição da alma, como prelúdio da futura ressurreição do corpo.
A profecia é uma primeira vitória sobre a mentira e a dominação. A morte dos mártires é uma derrota aparente, que a força da vida de Deus transforma em triunfo: ressurreição. O destino da Igreja na terra está marcado por esses três actos: são as três etapas do seu relacionamento com o mundo.
LIVRES DA DOMINAÇÃO_3
Tudo o que acabamos de lembrar a respeito do contexto geral do livro do Apocalipse permite-nos agora entrever em que consiste a liberdade que resulta da salvação ou libertação realizada em Jesus. Essa liberdade tem dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar ela é atitude de afirmação e de desafio diante do poder da mentira e dominação; em segundo lugar, ela consiste num novo relacionamento entre os membros do povo de Deus que nasce da fecundidade do martírio e da profecia entre os homens que se salvarem da dominação e da mentira.
Em primeiro lugar, a liberdade dos homens livres está em não aceitarem o domínio do dragão e das feras, da Babilónia ou do Egipto e não se deixarem seduzir pelo aparelho de intimidação da mentira. Essa é a liberdade que se conquista pelo acto de rejeitar a dominação. E não se trata simplesmente duma rejeição interior, mas do acto público da profecia que é um verdadeiro desafio: eles têm o poder de renovar os sinais (1 Rs 17:1-7: ELIAS, ‘ fechar as águas do céu’; Êxodo 4:9: MOISÉS, ‘mudar as águas em sangue’), que faziam de Moisés e Elias os grandes profetas do passado [Ap 11:3-6;]. Assim, os cristãos de Sardes: «Sei onde habitas: aí se encontra o trono de Satanás. Mas tu te apegas firmemente ao meu nome e não renegaste a minha fé, mesmo naqueles dias em que Antipas, minha fiel testemunha, foi morto entre vós, onde Satanás habita» [Ap 2:13].
Os profetas estão destinados ao martírio: «E, quando terminarem de dar testemunho, a Besta que sobe do Abismo lutará contra eles, vencê-los-á e dar-lhes-á a morte.» [Ap 11:7]. Mas, depois do seu martírio,, «um espírito de vida vindo de Deus entrará neles: eles se porão de pé…» [Ap 11:11]. «Foram resgatados da terra» [Ap 14:4]. Estão a salvo das garras do dragão.
Em segundo lugar, a liberdade das testemunhas procede da confiança total e absoluta em Deus que os leva à vida ainda que pelo caminho do martírio. Confiança absoluta no valor da morte vivida em Jesus Cristo. E confiança absoluta na força da palavra do testemunho. A liberdade é a superação do medo e da segurança individual e colectiva. A liberdade da testemunha é a figura terrestre e a encenação da liberdade da palavra de Deus à qual nada pode opor-se. Essa liberdade paga-se com um preço altíssimo, mas, uma vez pago o preço, essa liberdade logra romper todas as barreiras da dominação, da opressão e da mentira. Ainda que totalmente desarmado no meio do mundo opressor, o profeta é livre porque pode pronunciar o seu testemunho, e esse testemunho fica a agir no mundo, infundindo fé, suscitando o povo de Deus.
O POVO LIVRE_4
Chegamos, assim, ao segundo aspecto da liberdade: a liberdade do povo resgatado pelo testemunho. O testemunho dos profetas gera o novo Israel, que se levanta como povo livre diante do mundo escravizado. O povo livre de Deus procede dessa massa escravizada: são as primícias que foram compradas pelo sangue do Cristo e salvas pelo apelo do testemunho. Sem dúvida o estado final deste novo Israel acha-se somente depois da prova final do martírio: os seus membros definitivos e exemplares são as almas dos mártires que aguardam a hora da ressurreição final: «as almas dos que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus e todos aqueles que não tinham adorado a fera ou sua imagem, que não tinham recebido o seu sinal na fronte nem nas mãos» [Ap 20:4]. Deles se fala quando se cantam as aclamações a Cristo: «resgataste para Deus, pelo teu sangue, homens de toda a tribo, língua, povo e nação» [Ap 5:9]. Porém, esse povo de Deus, novo e verdadeiro Israel, já está presente, ainda que permanentemente exposto à perseguição, no meio deste mundo: a sua presença actual responde à fase de profecia dos mártires. A Igreja actual é uma Igreja confessante, uma Igreja-profeta, e, como Igreja-profeta, ela constitui a presença da liberdade entre os homens aqui na terra. A liberdade não qualifica somente a palavra, mas o próprio povo que a recebe e assume a tarefa de proclamá-la.
Se as massas dominadas pelo dragão e as suas encarnações terrestres são escravos que somente o sangue de Cristo pode resgatar, ao invés, o verdadeiro Israel adquire a qualidade de povo livre: «ele fez de nós um povo de reis e sacerdotes» [Ap 1:6]; «fizeste para nosso Deus um povo de reis e sacerdotes, e eles reinarão sobre a terra» [Ap 5:10]. Essa fórmula – povo de reis e sacerdotes – alude à constituição de Israel proclamada por Deus no Sinai. Israel foi constituído povo livre: independente de toda dominação de príncipes ou de sacerdotes. Um povo em processo de afirmação de si mesmo: assim surgiu a noção cristã de povo.
Um povo, no sentido cristão da palavra, quer dizer uma sociedade em que todos participam do poder quanto às relações com Deus e entre si mesmos. Todos são sacerdotes e, portanto, comunicam com Deus sem depender duma classe privilegiada, e todos participam do governo do Estado porque o poder não é reservado a uma classe de salvadores.
A proclamação dum povo em que todos são reis e sacerdotes tem consequências incalculáveis. Todos os sistemas de dominação são virtualmente atingidos e mortalmente feridos. Sem dúvida, uma longa história será necessária para que tal proclamação entre realmente na história e produza consequências visíveis. No princípio, tratava-se apenas duma proclamação feita pelo mártir. Mas, quando o novo Israel começou a crescer, apareceram os primeiros movimentos no sentido de buscar na história uma encarnação dos princípios de liberdade. Apareceram movimentos para encarnar o sacerdócio de todos os membros do povo: sabemos como finalmente o Concílio Vaticano II publicou solenemente o sacerdócio de todos os membros do povo de Deus e a dignidade de povo sacerdotal. Ao mesmo tempo, o Concílio destacou, depois de muitos documentos pontifícios, o direito de participação de todos os cidadãos no governo da cidade: no povo de Deus todos são reis e ninguém pode ser tratado como escravo, como elemento sem direito e sem participação. Essa participação é entendida como um movimento indefinido visando mais igualdade efectiva no governo e nas responsabilidades da vida colectiva.
Assim vemos que, quando o conceito cristão da liberdade entra em contacto com a totalidade social daquele tempo, provoca a abertura completa da revelação. A liberdade não é somente a libertação da Lei judaica, a libertação dos sistemas de dominação dentro do povo judaico, como se o facto de se afastar do antigo povo de Israel fosse suficiente para esgotar todas as virtualidades da mensagem de libertação.
Muito pelo contrário: a emancipação da dominação dos fariseus e sacerdotes do templo de Jerusalém era apenas uma figura do grande movimento de libertação que começa no momento em que o evangelho de Jesus é anunciado no meio das nações e dos impérios.
O livro do Apocalipse esclarece o que estava ainda um pouco implícito nos livros anteriores. No fim do primeiro século, o evangelho de Jesus Cristo atinge a plenitude das suas implicações. O próprio Jesus não tinha explicitado tudo dado o facto de que Ele estava reservado para as tribos do Israel antigo. Mas os apóstolos foram encarregados de pôr o fermento da sua palavra no meio do mundo. O Apocalipse de S. João é justamente esse acto de colocar o fermento da liberdade no meio da escravidão e da opressão. Aí começa a história nova e definitiva do povo de Israel novo livre, livre pela palavra profética, livre e chamado a pagar, como Jesus, o preço da sua liberdade, mas livre definitivamente pela força de Deus.
José Comblin [1977]
Anselmo Borges, in 'Diário de Notícias' 31:III:2012, sobre o Apocalipse e o Fim do Mundo: