teologia para leigos

7 de março de 2012

O CONCEITO CRISTÃO DA LIBERDADE_2


II - SEREIS REALMENTE LIVRES


Perseguição aos primeiros cristãos

O TESTEMUNHO DA VERDADE_1

No quarto evangelho, a liberdade é explicitamente o objecto do evangelho. O evangelho de Jesus, chamado testemunho’ por S. João, tem por objecto o anúncio de alguns atributos essenciais: a vida, a luz, a liberdade. Aqui, o conceito de liberdade está presente explicitamente. Ele designa aquilo que Jesus nos traz da parte de Deus, paralelamente à luz e à vida. Por outro lado, a liberdade está em conexão íntima com a vida e como a luz ou a verdade. A vida é liberdade e a vida, tal como a liberdade, procede da luz e da verdade.

S. João não explica os conceitos que usa. O seu significado torna-se claro pelo contexto e, quando o contexto do próprio evangelho não é suficientemente claro, podemos e devemos considerar o Apocalipse como parte integrante do contexto. O quarto evangelho não dá nenhuma definição do seu conceito de liberdade. Mas devemos iluminar-lhe o contexto pelo que acabamos de ver sobre o Apocalipse na meditação anterior.

Para o quarto evangelho está subjacente a ideia do povo de Deus, verdadeiro Israel. Os discursos de Jesus não são dirigidos às almas individuais, mas ao verdadeiro Israel. Jesus é o novo Moisés, o anunciador e o autor do novo Israel, o verdadeiro Moisés, chefe do verdadeiro Israel. Essa situação está sempre na base de todos os conceitos. A liberdade que Jesus anuncia não é a liberdade do filósofo ou do místico isolado do mundo; é a liberdade do verdadeiro Israel, oposto à falsa liberdade, que é realmente escravidão, do falso Israel.

Jesus vem revelar a Israel a sua vocação verdadeira: ele foi o revelador de Israel. De acordo com o Jesus do quarto evangelho, Israel tinha uma mensagem para o mundo – a mensagem do Povo de Deus, fiel à Palavra recebida e vivendo a mensagem recebida no amor, na caridade. Mas o Israel histórico foi infiel à sua vocação. Não foi o verdadeiro Israel, e perdeu a mensagem de liberdade.  Tinha uma mensagem para o mundo e não deu a sua mensagem. Refugiou-se na sua Lei, nos seus princípios. Os judeus ficaram fechados em si próprios. Não quiserem abrir-se para o mundo e assumir a sua tarefa dentro do mundo. Pior ainda: entregaram-se ao mundo, tornaram-se colaboradores do mundo pecador, ao entregarem Jesus ao mundo. O Israel histórico, tal como no Apocalipse, foi infiel à sua essência e tornou-se semelhante aos adversários de Israel: tornou-se instrumento do dragão, de Satanás. Os judeus históricos tornaram-se filhos de Satanás, eles que, por vocação, eram os filhos de Deus. Filhos de Deus são, agora, os membros do novo e verdadeiro Israel.

E qual é o acontecimento central que permite ter acesso à liberdade ou fecha as portas dessa mesma liberdade? Qual é o acto, a circunstância, que provoca essa divisão simultânea, ou seja, a rejeição do Israel antigo e a eleição dum Israel novo, a escravidão ou a liberdade? Resposta: o testemunho! A vocação de Israel é dar testemunho ao mundo e, para poder dar esse testemunho, tem de recebê-lo de Jesus, em primeiro lugar.

O testemunho é a palavra de Jesus, em nome de Deus, oposta ao mundo! Entre a luz e as trevas, entre a luz e a escuridão, há um abismo e uma luta incessante desde as origens do mundo. O desafio salvador de Deus produz-se na forma de palavra. Deus pronuncia a sua palavra. E essa palavra é chamada a despertar os homens para a luz e a vida. Essa palavra é criadora de liberdade: a resposta que desperta é justamente a liberdade. Essa palavra tinha sido pronunciada em parte em Israel e os filhos de Israel eram chamados a recebê-la para a anunciar ao mundo inteiro. Mas eles próprios não a receberam e preferiram as trevas à luz. «Veio até os seus e os seus não O receberam» [Jo 1:11].

A palavra de Deus encarnada em Jesus e comunicada aos discípulos para a anunciar destina-se a ser pronunciada frente ao mundo, publicamente. É uma palavra que é luta, apelo à libertação e se bate contra a escravidão. Chama-se testemunho porque é realmente um testemunho dado diante do tribunal do mundo, como defesa contra o mundo acusador, contra a acusação mentirosa do Maligno, do Grande mentiroso que envolveu o mundo inteiro e fez dele o instrumento da mentira. Quem recebe o testemunho, o guarda e o pronuncia diante do mundo, este escapa da escravidão da mentira e do demónio – torna-se membro livre do verdadeiro Israel. A separação entre verdadeiro e falso Israel, que é a mesma entre luz e trevas, entre Deus e Satanás, é feita pelo testemunho. Não basta recebê-lo: recebê-lo activamente é assumir o papel de profeta, ser testemunha do testemunho, a ponto de enfrentar a morte. Quem corre o risco dessa morte, recebe a vida.

Esta introdução era necessária para compreendermos a perspectiva do capítulo 8 que é em parte dedicado ao tema da liberdade.

O capítulo 8 do quarto evangelho é o discurso de Jesus dirigido aos judeus explicitamente, isto é, o discurso que apresenta o testemunho em contraposição aos judeus. Todos os discursos de Jesus são o seu testemunho, o anúncio da vida e o apelo à aceitação do testemunho que leva à vida. Jesus usa diversos temas para enunciar o seu testemunho. Aqui usa o tema do judaísmo: tem assim a oportunidade de opor o verdadeiro Israel ao falso. Para Jesus, os judeus que não aceitam a sua palavra são iguais ao mundo, são expressão do mundo, perderam o seu atributo de povo de Israel para passarem a ser instrumento ao serviço da serpente de Génesis 2-3: são filhos de Satanás; como o seu pai, querem a mentira, a morte e a escravidão.

Os judeus protestam: «Somos posteridade de Abraão e jamais fomos escravos de ninguém. Como é que dizes que seremos livres?» [Jo 8:33]. Com efeito, o povo de Deus é um povo livre. Eles, porém, perderam essa qualidade ao rejeitarem o testemunho: preferiram o pecado.

O pecado é sempre igual: como no Génesis 3, o pecado consiste em buscar a salvação pelo caminho da segurança pessoal, pela confiança em si próprio em vez de aceitar o caminho do risco baseado na palavra de Deus – é isso que é sugerido a Jesus pela serpente no deserto. Esse é o pecado dos judeus que não querem arriscar a sua vida através do testemunho em Jesus e preferem a segurança da sua Lei, do seu sistema.

Respondeu-lhes Jesus: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado… Bem sei que sois descendência de Abraão, no entanto, quereis matar-me, porque minha palavra não penetra em vós» [Jo 8:34-38]. Perderam a liberdade do povo de Deus. A vontade de defender a sua segurança leva-os à rejeição da verdade, preferindo a mentira; leva-os ao homicídio; preferem matar Jesus em vez de o aceitar para se tornarem livres da ameaça à segurança que o seu convite constitui. Em nome da sua segurança estão dispostos a matar em vez de aceitar, como Jesus, o risco de morrer pelo testemunho. É onde chega a sua escravidão sob o pecado: estão dispostos a querer a morte se esta lhes dá a segurança. Matam para viver pensando que desse jeito vão poder viver: «Eu falo do que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes de vosso pai» (isto é, o homicídio, pois o pai deles é o autor da morte) [Jo 8:38].

Retorquiram-lhe: «Nosso pai é Abraão». Contrapôs-lhes Jesus: «Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão. No entanto,  agora mesmo procurais matar-me a mim que vos disse a verdade que ouvi do próprio Deus. Isto Abraão não o fez. Vós fazeis as obras do vosso pai».

Disseram-lhe: «Nós não somos bastardos. Temos um só Pai, que é Deus». Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis, porque eu saí de Deus e dele venho; eu não vim porque quis: foi Ele quem me enviou. Qual é a razão pela qual não compreendeis a minha linguagem? É porque não sois capazes de escutar a minha palavra. Vós tendes o diabo por pai e quereis cumprir os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque não há nele verdade; quando ele mente faz o que lhe é próprio: ele é mentiroso e pai da mentira. Pelo contrário, a mim, que digo a verdade, não me dais crédito. Quem de vós me pode acusar de pecado? Portanto, se vos digo  a verdade, porque é que não acreditais em mim? Aquele que é de Deus ouve as palavras de Deus; se não me ouvis é porque não sois de Deus» [Jo 8:39-47]


A VERDADE LIBERTA_2

As categorias são as do Apocalipse. Por um lado, temos a morte que entrou pelo diabo na humanidade, a morte activa, a morte de quem mata; o diabo quis a morte e iniciou a cadeia dos homicídios; querer a morte está no fundo de todo o pecado. Ao lado da morte está  a mentira, porque o diabo apresentou o que era caminho de morte como caminho de vida: mentiu para matar. Ao lado da mentira está a escravidão, porque a vontade de salvar a vida por si mesmo cria uma necessidade permanente: para assegurar a sua vida, o homem vai de mentira em mentira, de homicídio em homicídio. Entra na escravidão do pecado: um pecado leva ao pecado seguinte numa espiral de necessidade implacável. Forma-se uma cadeia que é uma verdadeira escravidão. Quem busca a sua segurança torna-se escravo dessa segurança. Ao invés, quem arrisca a sua vida e aceita o martírio está livre. A liberdade é o prémio do risco dos profetas. Quem não assume essa missão profética torna-se escravo: não deixa de precisar de evitar novos perigos.

A liberdade define-se por oposição a essa escravidão. A liberdade é a condição do homem que aceita a tarefa de profeta, que aceita o desafio e o risco, pois a palavra de Deus enunciada por Jesus é uma palavra que há-de ser proclamada perante o mundo. Quem recebe essa palavra recebe-a para a pronunciar ao mundo que a ela se opõe. Não se trata de receber a palavra para a colocar numa biblioteca. Ela é uma palavra que se move, caminha e vai a diante. Quem conhece realmente a palavra de Jesus, o testemunho de Jesus, é quem o propõe ao mundo, quem o proclama na praça pública. Quem aceita essa palavra com todo o seu dinamismo, toda a sua missão, esse é realmente livre; esse realiza o acto realmente livre neste mundo e entra num povo livre, o povo dos livres profetas de Deus. Desse modo é que a palavra de Jesus torna o homem livre.

«Se permaneceis na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará» [Jo 8:32]. «Se o Filho vos liberta, sereis realmente livres» [Jo 8:36].

A verdade que liberta é aquela verdade plenamente assumida numa missão profética. O testemunho liberta quem o pronuncia; a verdade liberta quem a proclama ao mundo.

À primeira vista, alguns leitores poderão pensar que o conteúdo dessa liberdade está pouco determinado, pouco claro. Do mesmo modo, as categorias de ‘mundo’, ‘mentira’, ‘escravidão’, ‘morte’ parecem vagas e bastractas. Precisamos, porém, de situar o quarto evangelho no pano de fundo do Apocalipse e recebê-lo no seu contexto histórico. O mundo não é vago: é o mundo pagão do império romano e todos os seus sucessores; a mentira, a escravidão e o homicídio não são categorias abstractas, mas factos quotidianos no sistema romano. Portanto, o testemunho que enfrenta o mundo não é uma palavra vaga, mas uma palavra que se dirige a uma realidade histórica bem concreta.

O império romano e a sua civilização desapareceram, mas o pecado que S. João nele denunciava não desapareceu com ele. Renasceu e renasce constantemente na história, de tal modo que a verdade de Jesus sempre é uma verdade dinâmica, um desafio feito a um mundo antagonista, um risco, e, finalmente, um martírio. E a liberdade é uma superação desse mundo através do acto profético do testemunho sempre renovado e aplicado a novas realidades históricas. Somente a liberdade dos profetas gera o verdadeiro povo de Deus, o verdadeiro Israel livre, o Israel dos reis e dos sacerdotes, livre de qualquer dominação política ou ideológica.

Os profetas falam do futuro último e do presente à luz desse último futuro. Não conhecem as etapas intermediárias, nem podem anunciá-las. Assim, S. João mostra a comunidade profética proclamando o seu testemunho frente ao sistema romano e formando o núcleo do povo de Deus nesse acto de testemunhar, no martírio e na união com os mártires que, invisivelmente presentes, aguardam com eles a ressurreição final. João anuncia também essa consumação final depois do testemunho presente, mas não pode prever as etapas intermediárias. Da profecia podemos, porém, concluir que as etapas intermediárias serão determinadas pelas categorias que aparecem no momento presente. O que o profeta afirma é que os conceitos que permitem compreender o presente à luz do fim e o fim à luz do presente servem também para compreender as etapas intermediárias. Estas constituem, por um lado, como que uma transição entre o puro testemunho e o puro martírio, e, por outro, o advento completo do povo de Deus na nova Jerusalém. Entre os dois pólos, teremos situações intermediárias: ainda não a consumação do povo de Deus, mas certas realizações históricas, certas formas de cristandade em que se procuram certas aproximações da liberdade, certas instituições de liberdade. Não se trata mais do puro martírio vivido através dum testemunho a-histórico, mas (apesar de todas as conquistas do espírito) da necessidade de enfrentar o mundo, de pronunciar a profecia e de aceitar a perspectiva do martírio. Cada etapa histórica situa-se entre esses dois pólos. Ambos mostram os limites entre os quais somos chamados a desenvolver a nossa acção.

A cada momento, a liberdade cristã estará situada entre esses dois pólos que a delimitam. Por um lado, já existem certas aproximações do povo de Deus, graças a certas instituições que defendem o povo de Deus contra a dominação política e ideológica, contra «os reis e os sacerdotes», transformando-o realmente através da sua participação num «povo de reis e de sacerdotes». Por outro lado, na medida em que o mundo ainda resiste e se opõe a essa transformação e insiste em manter a dominação política e ideológica,  a liberdade ainda consiste em afirmar o testemunho da verdade diante da mentira, o testemunho da vida diante da morte, e o risco do martírio diante da prioridade da segurança. A liberdade encontra-se nessas duas expressões e no meio delas. A dosagem entre ambas está submetida às circunstâncias imprevisíveis da história e precisa de um discernimento permanente. O que S. João nos revela é o quadro em que se coloca o problema da liberdade e os indispensáveis elementos que compõem a solução de Deus.

José Comblin [1977]