Devemos boicotar a Apple?
Foi uma semana alucinante para os accionistas da Apple!
O preço das acções da empresa atingiu valores máximos, impulsionado pelo anúncio de lucros no valor recorde de 13,06 mil milhões de dólares [9,95 mil milhões de euros] só no primeiro trimestre. A empresa vendeu 37 milhões de iPhones e 15,4 milhões de iPads no período das festas de fim-de-ano, ou seja, duas vezes mais do que no ano passado.
Mas, na mesma altura, notícias comprometedoras ensombraram esta fantástica feira de gadgets revolucionários da Apple. Num artigo pormenorizado, The New York Times voltou à questão dos custos humanos da produção de todos esses iPhones e iPads – não nos Estados Unidos, mas na China. Estes custos, suportados pelos operários em cidades industriais como Chengdu [na província de Sichuan], não aparecem nos registos, uma vez que as fábricas onde estes trabalham não pertencem à Apple, mas aos seus subcontratados – a imensa cadeia de fabrico e de acabamento de todos os seus produtos.
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Segundo o inquérito, estas fábricas foram palco de explosões e de mortes. Um número elevado dos assalariados seria vítima de um ambiente profissional tão perigoso quanto brutal, que desrespeita as mais elementares condições de segurança. [cf. ‘um sistema monstruoso’ na fábrica de Foxconn, a principal subcontratada da Apple, na cidade de Chengdu]
Apenas alguns meses depois da morte de Steve Jobs [em Outubro de 2011], a empresa que este fundou jamais parecera tão poderosa. Continua a ser o filho querido da era digital: as suas inovações suscitam inveja e os seus resultados financeiros ciúme. Mas, aparentemente, os mágicos de Cupertino [sede da empresa na Califórnia] têm alguns esqueletos escondidos nos seus armários chineses. É aí que se manifesta o lado obscuro de todas estas belas invenções – a maior parte dos grandes nomes das tecnologias de ponta são, evidentemente, confrontados com o mesmo desafio ético, uma vez que todos fabricam os seus produtos na China.
Um biscoito e uma chávena de chá
Estas informações são perturbadoras, mas não deviam surpreender-nos. O fabuloso sucesso da Apple não se explica apenas pela inovação e pelo design: tem também algo de implacável. A capacidade da Apple para se impor no mercado e comercializar os gadgets mais deslumbrantes que o mundo alguma vez viu é igualmente o triunfo de um sistema de produção.
É ainda outro artigo em The New York Times, a descrever o desaparecimento dos empregos da classe média [nos Estados Unidos], que foram exportados para a China, um país conhecido pelas suas façanhas industriais. Segundo parece, na China, é possível arrancar oito mil operários dos seus dormitórios, em meia hora, e mandá-los montar ecrãs de vidro nos iPhones durante 12 horas seguidas, a troco de um biscoito e de uma chávena de chá.
Thomas Friedman [cronista em The New York Times] conta esta mesma história num editorial, vendo nela um exemplo da fraqueza da América. Que conclusões devemos tirar? Imitar a China ou ter pena dos trabalhadores chineses?
"Mais funcionalidades! Mais aplicações! Mais aplicações..."
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Uma questão de ética e de lei
Os accionistas e os aficionados da Apple vêem-se assim confrontados com um dilema moral: será que podem regozijar-se com a explosão das acções da Apple e murmurar palavras doces a Siri, a assistente pessoal virtual do iPhone 4S, e, ao mesmo tempo, manter o silêncio sobre as terríveis condições de trabalho que vigoram entre os fornecedores da Apple? No entanto, a empresa não cometeu nenhum delito. Do ponto de vista legal, não é responsável pelo que se passa nas fábricas chinesas.
Por outro lado, no mundo empresarial, raramente hesitamos quando se trata de desrespeitar os princípios morais. Nunca confundimos os resultados financeiros com as nossas pretensões de sermos os campeões da moral, dos comportamentos éticos, das boas práticas e da decência. A fronteira entre aquilo que é correcto, do ponto de vista legal, e aquilo que é justo, do ponto de vista moral, é bem clara. E essa fronteira separa igualmente o lado privado e moral da nossa vida do nosso lado profissional e público.
No mundo do trabalho, considera-se que todos os abusos são permitidos. E entre as 9 e as 17 horas os nossos actos nunca estão dependentes de critérios morais. É apenas na esfera da sua vida privada que homens e mulheres estão sujeitos a julgamento moral. No mundo do trabalho, a moral não tem lugar, porque o sucesso profissional se transformou em regra de ouro.
Podemos atirar pedras à Apple. Talvez os iPhones tenham alguns telhados de vidro. Talvez a empresa faça tudo quanto está ao seu alcance para conseguir conciliar dois imperativos, o moral e o financeiro: responder às exigências dos consumidores e dos accionistas e respeitar o exigente legado do seu fundador, preocupando-se em simultâneo com as condições de vida daqueles cujo trabalho consiste em montar as jóias da modernidade. Mas o problema é bastante mais vasto: reside na nossa recusa em aplicar os nossos princípios morais a tudo aquilo que fazemos, e não apenas à Apple.
Thane Rosenbaum
site, Thedailybeast.com (27:01:201)
Nova Iorque
In Courrier International, edç. portuguesa, Março 2012, pp. 70-71 [trad. Isabel Fernandes]
ARQUIVO:
“Apple – os grandes princípios e a triste realidade das fábricas”. Baseado num inquérito realizado por três ONG’s chinesas, este artigo do NANFANG ZHUMO, publicado em 10 Fevereiro de 2011 no Courrier International nº 1058, já denunciava as violações das normas que a Apple impôs aos trabalhadores. O mesmo cenário foi descrito, na edição portuguesa, no Artigo “A dança das empresas planetárias”, publicado em Abril.