PARADIGMAS DO PAPA ACTUAL
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Joseph Ratzinger, no que a ele diz respeito, sempre negou, sempre se defendeu veementemente do reparo que lhe fazem os seus críticos, de ser um “cata-vento”, acentuando, na sua autobiografia, com força, a continuidade da sua trajectória. E eu creio que isso é, em boa parte, verdadeiro. De algum modo, deve-se dizer que o professor, tal como abandonou Tubinga em 1969, rumo a Ratisbona, do mesmo modo chegou a Ratisbona, em 2006, para dar uma ‘lição magistral’.
«Realmente, em casa», é como Joseph Ratzinger se sente desde os começos até hoje – a viagem de Bento XVI à Baviera, em 2006, provou-o a todo o mundo – “em casa”, no catolicismo tradicional bávaro, «que, de facto, está profundamente enastrado com a cultura existencial e a história desta terra». [’La sal de la tierra’, Palabra, Madrid, 2007]
Via-se e vê-se a si mesmo como um teólogo da tradição, que, no essencial, persevera dentro dos limites teológicos definidos por Santo Agostinho e São Boaventura. Para ele, a «Igreja antiga» ou a «Igreja dos Padres» [dos ‘Pais da Igreja’] é a medida de todas as coisas.
A Igreja Antiga – a medida de todas as coisas –, tal como ele a entende. Mas não Jesus de Nazaré, pois não O vê como o viram os discípulos e as primeiras comunidades cristãs, mas como O definiram, dogmaticamente, os Concílios helenísticos dos séculos IV e V, os quais, de facto, mais do que unir, dividiram o cristianismo. O Jesus da história e o pouco dogmático judeo-cristianismo dos começos, não lhe interessam. Daí que mostre pouca compreensão pelo islão, que está marcado por esse mesmo ambiente. E tão pouco se sente interessado pela plural estrutura carismática das comunidades paulinas, pela diversidade de possibilidades de um «seguimento dos apóstolos», dos «profetas» ou dos «mestres». [Efésios 4:11] Não é a Igreja do Novo Testamento que lhe interessa, mas a ‘Igreja dos Pais’ (naturalmente, sem mães).
Para Ratzinger, a Igreja Antiga é a Igreja dos ‘Padres da Igreja’, mas se olharmos com atenção veremos que não se trata tanto da Igreja dos Padres gregos, mas a Igreja dos Padres latinos. Menos lhe interessa a Igreja anterior ao concílio de Niceia (ano 325), que subordinava a Jesus, enquanto Filho, o Deus único e Pai (o que viria a ser condenado como heresia sob a designação de «subordinacionismo»), e que igualmente ignorava um «pecado original» associado à sexualidade. Ratzinger não entende a relação entre Pai, Filho e Espírito Santo a partir dum Deus e Pai uno, o que é próprio dos Padres gregos (por essa razão, nas Igrejas ortodoxas, a introdução do termo «filioque – e do Filho» é, até, hoje, considerada herética). Ele prefere seguir o latino Santo Agostinho, nada valorizado pelos gregos, que, de forma pouca bíblica, parte da «natureza» divina comum às três «pessoas». Além do mais, Santo Agostinho é o responsável pela doutrina ocidental do pecado original e o que aparelha os alicerces teológicos da Idade Média da Igreja católico-romana.
Isto tudo confirma que Joseph Ratzinger é, desde os começos – e ainda hoje, como Papa, o continua a ser – um teólogo do paradigma católico latino-romano do cristianismo, o qual, apesar de se encontrar em muitos aspectos em contradição com o paradigma helenístico-veteroeclesial, atingiu seu cume cimeiro nos primeiros séculos do segundo milénio sob a vigência dos Papas romanos (…). Nos anos de Tubinga, Ratzinger leva, seguramente, a sério a causa principal da persistente divisão entre a Igreja grega do Oriente e a Igreja latina do Ocidente. Concretamente, reconhece a pretensão absolutista dos Papas da Reforma Gregoriana no século XI. Aprecia citar o papa Gregório Magno, que recusou com veemência o «orgulhoso título de Papa universal», o qual, à custa dos restantes bispos, «atribui o universal» ao Bispo de Roma. A este propósito, escreve Ratzinger: «Não deveria entrar imediatamente, e num totalmente outro estado, o diálogo com a Igreja do Oriente, se este texto… fosse considerado de novo em toda a sua seriedade e o modelo de convivência mútua se determinasse a partir dele?» [‘El nuevo pueblo de Dios: esquemas para una eclesiología’, Herder, Barcelona, 1972]
No seu derradeiro curso de eclesiologia, em Tubinga, Ratzinger defende, inclusivamente, que as Igrejas do Oriente poderiam ficar obrigadas apenas pelos concílios nos quais tivessem participado. Mais: não teriam que reconhecer o primado pontifício para lá da forma que este possuía no primeiro milénio, ou seja, desprovido do absolutismo romano do século XI, causa da divisão entre a Igreja do Oriente e a do Ocidente. Precisamente neste sentido, em 1982, afirma publicamente por escrito: «No que diz respeito à doutrina do primado, Roma não deve exigir do Oriente mais do que aquilo que se formulou e praticou no primeiro milénio». [‘Teoria de los princípios teológicos: materiales para una teologia fundamental’, Herder, Barcelona, 1986] Ah! se ele o tivesse dito ao patriarca ecuménico Bartolomeu I durante a sua visita a Istambul, em 2006! Bem pelo contrário, volta a defender, de forma amavelmente dissimulada – obviamente, sem êxito algum – o ideal medieval de uma Igreja papal que, pelo menos intelectualmente, domina o mundo à custa do seu monopólio da verdade, o qual, à luz do Vaticano I, implica o submetimento do cristianismo oriental ao primado da potestade do Papa e ao seu magistério infalível (sempre rejeitados pelo patriarca ecuménico Bartolomeu I). Ratzinger podia ter evoluído, mas não quis. Porquê?
Hans Küng
[‘Verdad Controvertida - Memorias’, Hans Küng, Ed. Trotta, 2009, p 187-189]