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Abertura do concílio ecuménico Vaticano II |
Por um laicado adulto
As últimas décadas foram caracterizadas pela passagem dum catolicismo clerical a uma Igreja dos leigos. Pode-se dizer termos assistido a uma protestantização do catolicismo, ao mesmo tempo que se valorizava o laicado, ao arrepio da tendência clericalizante de Trento.
O concílio Vaticano II foi a síntese dos movimentos renovadores do século XX. Uma nova identidade laical surgiu - leigos que deixaram de se ver como cristãos de segunda - ainda que se mantivesse uma diferença entre a teologia dos textos e a realidade dos factos. A partir de 1966, promoveram-se conselhos pastorais de leigos, instauraram-se ministérios laicais (Ministeria quaedam, 1972), fomentou-se o acesso dos leigos à teologia e recomendaram-se formas de cooperação entre os leigos e os ministros. Começou também o pedido de uma democratização da Igreja, superando o velho binómio ‘clérigos que mandam e leigos que obedecem’. [A encíclica "Vehementer nos" (1907) de Pío X: "O dever do rebanho é cumprir com submissão as ordens dos pastores".] Tinha de se passar de uma Igreja como uma sociedade desigual a uma outra comunitária com participação activa dos leigos. Mais de quarenta anos depois, o processo permanece em aberto e inacabado.
Houve uma reestruturação dos movimentos laicais, anteriormente configurados à volta da Acção Católica. Reclamava-se uma maior autonomia dos movimentos laicais e uma participação mais activa destes na sociedade. Esta nova dinâmica gerou tensões entre a hierarquia e os movimentos laicais que exigiam maior autonomia. Fragilizaram-se as associações laicais e muitos padres seculares refugiaram-se em espaços sociopolíticos onde tinham a liberdade que não encontravam nos espaços eclesiásticos. Esta situação transformou a igreja dos anos sessenta num alfobre para os partidos e associações políticas europeias. Pelo contrário, na América, os movimentos laicais conservaram a sua dinâmica e encontraram um apoio suplementar na hierarquia. Na América Latina pôde-se falar de uma Igreja laical: surgiram as Comunidades de Base e proliferaram os leigos que assumiram competências reservadas aos sacerdotes e que desempenharam um papel activo na luta pela justiça. É vasta a lista de leigos mártires, nenhum deles canonizado, e que foram assassinados por forças paramilitares pertencentes a governos que se diziam cristãos. O laicado foi o protagonista fundamental do dinamismo dessas igrejas. Foram eles os que enfrentaram o duplo desafio das perseguições políticas e da dinâmica proselitista dos grupos evangélicos. Infelizmente, este protagonismo não foi acompanhado por um reconhecimento eclesial digno. Olhou-se para estes leigos mais como uma força supletiva da escassez de padres (Immensae caritatis, 1973), do que como uma alternativa rumo a um novo modelo de igreja. Mesmo assim, é inegável que os últimos decénios valorizaram os leigos.
Na Europa, os novos movimentos laicais (Cursos de Cristandade, Focolari, Comunidade de Santo Egídio, Opus Dei, Caminho Neo-Catecumenal, Comunhão e Libertação, etc.) seguiram um rumo mais clássico e encontraram grande apoio por parte da hierarquia. Estes grupos constituem uma autêntica internacional laical dentro da igreja católica, deixando para trás as anteriores ordens e congregações.
Como característica destes grupos, temos o facto de serem entidades coesas e de forte traço identitário, tendentes ao isolamento e com uma consciência de superioridade face aos outros cristãos, com uma hierarquia forte e uma grande dose de doutrinação interna. A ausência de crítica interna (auto-crítica), a perda de autonomia pessoal a favor da do movimento, a subordinação assimétrica e as acusações de manipulação das consciências são a contrapartida à sua manifesta capacidade da arregimentação. Oficialmente, proclamam a sua estrita submissão às directivas hierárquicas e possuem uma orientação teológica conservadora. A verdade é que conservam uma grande autonomia nas dioceses e já chegaram a ter apreciáveis tensões com os bispos e outras instâncias diocesanas. Os seculares, mais integrados na sociedade democrática e com posturas mais abertas, têm dificuldade em se integrarem em instituições eclesiais e em movimentos laicais conservadores. A opção maioritária dos progressistas foi para as ONG’s, as quais desempenham um papel relevante no compromisso social dos cristãos.
Paralelamente à ascensão dos leigos é clara a decadência do clero. Na década de setenta começa a crise de vocações sacerdotais e de vida religiosa. Ambas as vocações ainda se mantêm no Terceiro Mundo, mas afundam-se nos países prósperos das sociedades secularizadas. Tal como ocorreu aquando da Revolução Francesa, são inúmeras as causas para essa perda de vocações. A prosperidade material torna desnecessário o recurso à carreira clerical como instrumento de promoção educativa e social, tal como havia acontecido aquando da segunda guerra mundial. Por outro lado, a nova cultura associada à sociedade de consumo, com uma componente individualista e hedonista, dificulta a continência e o celibato, agudizando os problemas da solidão e do isolamento do clero. O simbolismo do monge como pessoa ascética, sacrificada e distanciada do mundo tão pouco condiz com aquele código cultural. A figura do sacerdote perde respeito e reconhecimento social.
No protestantismo houve, igualmente, uma impugnação da identidade sagrada e cultual do pastor e uma forte contestação do seu papel tradicional. Impugnava-se a dedicação total às tarefas ministeriais, valorizando, mais, outras actividades seculares. A especialização pós-moderna começava a sentir-se nos eclesiásticos, os quais deixam de ser ministros «a tempo inteiro» e passam a enriquecer, noutros campos, a sua vida privada. A década de setenta e oitenta esteve marcada por uma hemorragia de ministros, tanto no catolicismo como no protestantismo, o que, inicialmente, fora amortizado pela abundância de clero. Os problemas só vieram a surgir nesta época por causa da avançada idade do clero existente, pela multiplicidade de tarefas que têm de desempenhar em sociedades modernas complexas e pela existência de estruturas clericais que ainda subsistem (sobretudo no catolicismo) e que dificultam a sua substituição por leigos.
Existem, também, causas católicas endógenas que favoreceram a crise. O Vaticano II promoveu os leigos e revalorizou o ministério episcopal. Em ambos os casos, os presbíteros foram os perdedores. Os leigos reafirmaram a sua identidade própria, conquistaram autonomia e assumiram ministérios e funções antes desempenhadas pelos clérigos. Os bispos foram vistos como aqueles que, de facto, possuíam a plenitude do sacerdócio, relegando os presbíteros para a categoria de ‘sacerdotes de segunda’. Velhos direitos e tradições velavam pela autonomia diocesana dos presbíteros, tais como a ‘paróquia de direito’ ou o capítulo catedralício. Com o Concílio esses direitos foram relegados a favor do controlo episcopal, donde a perturbação inicial e o protesto dos presbíteros, cujas competências diminuíram no âmbito hierárquico e laical. A partir dos anos sessenta, tentou-se amortizar esta nova assimetria, criada pelo Concílio, com a criação dos ‘conselhos presbiterais’ em cada diocese, os quais serviam as funções de colégio presbiteral em torno do seu bispo. Eles tiveram pouco efeito já que tinham apenas carácter consultivo, mas, também, devido ao centralismo, tanto a nível papal, como episcopal, que se implantou. De facto, o bispo converteu-se, dentro da sua diocese, num monarca, tal como o Papa na Igreja, neste caso mais dependente da cúria e, em contrapartida, mais distante do clero diocesano.
Juan Antonio Estrada, ‘Historia del Cristianismo’, Vol IV, Ed. Trotta, pp. 452-454