teologia para leigos

19 de agosto de 2011

NO DIA EM QUE O EVANGELHO FOR APENAS UM LIVRO...

 
Nesse dia…


Quando eu achar que não consigo ser quem sou se não me puder encostar aos chefes das nações, aos grandes e aos seus seguranças, e tudo não for à prova de bala.

Quando eu pensar que devo ser recebido, seja onde for, pelas entidades dignitárias do lugar por uma questão de posição, sangue ou representação.

Quando eu sentir que a minha mensagem é tão importante como a minha roupagem ou a minha roupagem dever ser a minha mensagem, e desejar que uma porção do meu sangue seja preservada, mostrada e reverenciada como uma relíquia.

Quando eu viver duma alegria forçada e duma liberdade medida ou confundir amor com altruísmo e caridade com democracia.

Quando eu só me sentir com tudo «em cima» apenas quando me chamarem «luz do mundo» e eu perceber que de facto sou a luz do mundo e o mundo ao mesmo tempo.

Quando eu não for jamais capaz de perceber que a expressão «luz do mundo» aponta, não para a luz, mas para o mundo.

Quando quiser salgar sem deixar fugir o cristal, quando quiser salgar e continuar a lucrar com o salário do sal.

Quando eu achar que sem religiões o mundo teria sido pior e, sem ideologias, melhor.

Quando quiser tudo pensar, até os intervalos disso mesmo, e ter um discurso sublime, faça eu o que fizer dentro de portas.

Quando eu não quiser distinguir entre respeito e reverência e me der jeito servir-me dessa indistinção.

Quando eu achar que tenho uma mensagem para o mundo ou quando eu me sentir «de peito cheio» por escrever ou discursar para o mundo cuidando que não faço parte dele.

Quando em mim, pé-ante-pé, a virtude se for tornando dever, questão de consciência ou missão, quando no bolso for sentindo entre os dedos o fino frio do aço da navalha.

Quando o meu viver se alimentar dum espírito diplomático, dum comportamento cavalheiresco ou duma simpatia genérica e gosmosa.

Quando a palavra profecia se misturar, confundir ou reduzir a adivinhação, brilho ou fascínio.

Quando a pele for apenas mais um dos cinco órgãos dos sentidos, o corpo uma bandeira ou um isco e as mãos a perseguição da pose exacta.

Quando der conta que as minhas unhas crescem e eu for capaz de o enxergar, medir, pesar e registar.

Quando, ainda que inconscientemente, alinhar na manipulação das plateias e delas me servir para fortalecer o meu ego ou uma ideologia qualquer.

Quando eu me convencer que, sem líderes à maneira, as coisas não avançam, quando for incapaz de distinguir Deus dum ícone e, este, dum palhaço, por mais flores brancas que leve ao redor.

Quando me tratarem por Vossa Reverência Santíssima, acenarem muitos lenços brancos e eu nem pestanejar ou por Sumo Pontífice e eu pôr-me a olhar as nuvens ou por Sua Santidade Fulano de tal, me vestirem todo de branco, me enfiarem um barrete e eu agradecer com a cabeça, quando simplesmente me citarem em público como Sua Excelência sem que eu me suje.

Quando me fardarem com roupas de bobo, albardas taurinas doiradas com lantejoulas, quando me quiserem ridicularizar com purpurinas, mitras e solidéus de arlequim e eu assentir numa anuência de égua dócil e cristã.

Quando as multidões se me tornarem imprescindíveis (seja lá para o que for - ao meu serviço ou ao serviço duma estratégia maior), quando a Fé se servir do marketing e exigir muito dinheiro para ser e aspergi-la.

Quando não for capaz de distinguir uma candeia dum holofote, a erva fresca dum resort, a água do poço dum Don Perignon, um menino duma play-station, a sombra duma carvalha da dum dossel, nem nunca ter feito a experiência do frio, da fome, do desconforto e do abandono inesperados e injustos.

Quando o Evangelho for, apenas, um Livro. De poesia e coisa e tal, e não o incrível grito de que entre vós não seja assim.

Quando, diante do sofrimento, a minha palavra for apenas ‘discernimento, meu irmão, discernimento’, quando em tudo souber guardar uma distância de mercurocromo.

Quando julgar que serei sempre capaz de separar os cabritos das ovelhas, de ser exímio o suficiente para arrancar o joio sem ferir de morte o trigo, de não precisar de me meter a calcular para saber se serei o suficientemente forte para derrotar o inimigo, quando tudo para mim for «sem espinhas».

Quando não for capaz de ir pelo mundo fora sem um guia da american-express, a palavra dum político ou a dum papa qualquer que, por mim, distinga o bem do bom e o mal do mau.

Quando, para mim, me for indiferente comer com talheres de prata, beber por cálices de oiro, limpar-me a guardanapos de linho imaculado e dar uma esmola a um pobre, como quem paga um jantar de 250 euros.

Quando fizer doações terrenas muito elevadas a pensar nos juros celestiais que possa ganhar, quando quiser bater recordes de matrimónio, de clausura, de santidade anoréctica ou outras, quando a minha mente for pequenina e viscosa como bílis, ainda que brilhe como colesterolose.

Quando um filho deixar de ser preocupação, um vizinho atenção e a verruga superprotecção, quando o meu cão viver acima de cão e a conta bancária só for cefaleia, gota de ácido úrico ou joanete.

Quando eu presumir que há sagrado e que também há profano e que o que importa é haver diálogo entre eles em territórios bem demarcados.

Quando a palavra igual-fratria-comunhão secar e optar por gravar, no betão, essa utopia.

Quando não for capaz de me calar e até o meu silêncio for veemente narração, ruído e otite.

Quando achar que o mundo está perdido e eu tenho a receita para ele, comigo ou com os da minha seita, quando a palavra proximidade não for mais do que uma placa de trânsito ou marmorite de cemitério.

Nesse dia, vistam-me as vestes, sentem-me no cadeirão, peguem-me aos ombros, venham todos ao beija-mão real, depois empalhem-me, pintem-me a oiro, exponham-me bem alto e venerem-me como se eu fosse o salvador que Deus ao mundo deitou.