teologia para leigos

15 de agosto de 2011

MATEUS 15ss - AS FRONTEIRAS DO REINO 2/2

Evangelho de Domingo
Mt 15:21-28

2/2


Jesus está fora da ... Igreja!
 

«entre a sementeira e a colheita»
[Olegário G. de Cardedal]

… a fruta «tocada»!



Por mais insignificante que seja, sempre que inauguramos um projecto de vida instilamos nele a marca duma instituição usurpadora, discriminatória, e dum poder opressivo. Por mais insignificante que seja…

Na Comunidade de Antioquia (situada ao Norte, na província da Síria, onde, após as perseguições por parte dos judeus, se refugiaram os ‘discípulos’ de Jesus, e a que se refere o relato do Evangelho Mateus 15:21-28) existia uma tensão entre os cristãos ‘helenizantes’ (não oriundos da Fé Judaica) e os cristãos ‘judeizantes’ (judeus convertidos a Jesus). Este relato deve ter sido fixado por volta do ano 80, ou seja, APENAS 50 anos depois da condenação à morte de Jesus, em Jerusalém. Era uma Igreja de «cristãos» muito jovem, mas já com uma diversidade sui generis!

Nesta Comunidade há uns quantos que irritam outros tantos: os helenizantes são ‘insuportáveis’ aos olhos dos judeizantes, por exemplo, pela sua liberdade face aos ‘mandamentos da Lei de Moisés’. Eles introduziam uma boa dose de incómodo… A partir do seu ponto de vista, ‘questionavam a liturgia, ‘criavam’ instabilidade, ‘exigiam’ novidade teológica e abertura sociológica.

Esta é «a questão central» do Evangelho que acabamos de ler!

Verdadeiramente, só existem duas questões a que deveríamos procurar responder, na Liturgia deste 20º Domingo (Tempo Comum -A), a partir da nossa experiência comunitária de hoje, ACTUAL.

1ª Quem tentou introduzir perturbação na nossa Comunidade? Que ‘questões’ foram introduzidas? Como reagimos nós?

2ª Como é que Jesus reagiria (à luz do Evangelho lido)?

A partilha da Palavra deveria andar à volta disto.
Depois, deveríamos «fazer Memória» do nosso irmão Jesus, à volta dum Pão que não é propriedade privada só de alguns… Deveríamos pedir perdão e louvar a Deus-Pai Misericordioso o ter acolhido Jesus no Seu seio, após a Sua condenação à morte.
O Domingo estaria, assim, lançado… E nós ficaríamos «curados».






Comentário pessoal a Mateus 15:21-28
(tentativa de resposta ao Guião de 14:VIII:2011)


os desprezados alargam as fronteiras do Reino


O Reino é para todos,
mas em primeiro lugar… para os ‘ímpios’!



Cenário e Exercícios


1.«Jesus partiu dali» (v.21) - Jesus ultrapassa os limites ‘permitidos’ pela condição de judeu piedoso – percorre a terra dos ‘sem religião’: Sídon e Tiro, Canã, terra de «pagãos», terra de pré-israelitas da Síria ocidental, situada na Fenícia, no norte, muito acima das fronteiras da Galileia. [Na Comunidade de Antioquia havia tensão, rotura entre ‘cristãos helénicos’ e ‘cristãos-judeus’. Cf. Act 11:19-24.]
Primeiro Exercício: tentemos fazer o levantamento de quem a nossa Comunidade está distante ou a quem a Comunidade ‘voltou as costas’ ou quem, no seu evoluir, ela deixou ‘para trás’?


2.Jesus não está só: estão, com Ele, os discípulos; uma mulher ‘cananeia’ também está com Ele (v.22 -«que viera dali»).
Segundo Exercício: tentar lembrar quem há pouco se abeirou da nossa Comunidade e qual a razão porque o fez (que o próprio o diga em voz alta à assembleia).


3.A reacção das 3 personagens deste cenário. A ‘cananeia’ implora 3 vezes. Insiste duas. Os discípulos sentem-se incomodados, mas não a rejeitam. Que pedem os discípulos? Que Jesus «despache o caso» com celeridade – que faça depressa o milagre… Que use seus poderes mágicos, ‘religiosos’, como se fosse um curandeiro auto-suficiente. Qual é a reacção dos discípulos diante de cada uma das insistências da mulher? (1º) incomodados; (2º) silêncio/impotentes… Jesus ‘responde’ à mulher: (1º) com silêncio (v.23) – Jesus lembra-se [Livro dos Juízes 4:9.14b] de que é Deus quem age, é Deus quem verdadeiramente realiza ‘milagres’ e que isso pressupõe Fé, coisa que os ‘discípulos’ parecem estar a esquecer. Por isso, Jesus faz uma pausa, faz silêncio. (2º) com o Anúncio da sua Mensagem: «o Reino é anunciado aos pobres e aos cativos de Israel (‘às ovelhas perdidas’, ou seja, aos expulsos do Templo, aos excluídos pelo ‘sistema teocrático’ da Religião Judaica). Em Mateus 10:6 diz-se: «Ide, primeiramente, às ovelhas perdidas da casa de Israel». Porquê este anúncio? Era a ‘doutrina oficial’ que qualquer judeu sabia de cor. (cf. Levítico 21:18 e 2Sm 5:8; leia Mateus 21:14 e veja quem são os que entram no Templo após a ‘razia’ que Jesus ali faz – precisamente, os ‘impuros’, os ‘excluídos’, que são «gente com defeito»). Com esta resposta, aparentemente Jesus parece fazer a ‘vontadinha’ aos Seus ‘discípulos’ (discípulos presumidos de ‘judeus de esquerda’, corajosos, diferentes dos outros judeus-não-cristãos que ficaram para trás - em Jerusalém ou 'dispersos' - agarrados à letra da Lei de Moisés). Jesus recita, mais uma vez ainda, ‘a doutrina do Catecismo’ (v.26): «Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorros». Os ‘discípulos’ devem ter-se sentido ‘confirmados’ nas suas ‘razões’ contra os ‘helenizantes’. Lá no íntimo, devem ter dito: «Aqui na Comunidade de Antioquia, nós os Filhos de Abraão, os cristãos-judeus, em primeiro lugar… Os outros, os cachorros’, depois!». E esfregavam as mãos de contentes!
Terceiro Exercício: que se diga em voz alta se alguém se acha preterido na Comunidade. E porquê? (apenas para que, colectivamente, se saiba – sem agressões…)


4.Parece mas não é verdade: Jesus não rejeita a cananeia. Em silêncio acolhe-a e, em silêncio, prepara uma segunda oportunidade. A quem, com o Seu silêncio, verdadeiramente, Jesus ‘dá uma 2ª oportunidade’? À mulher ou aos discípulos? Jesus, na verdade, aguarda pela reacção dos discípulos (v:23b). Só reage depois deles… Jesus testa os discípulos!!! Jesus serve-se da mulher para colocar uma questão aos discípulos: Jesus quer que sejam os discípulos a responder… a uma mulher que questiona. Quer que eles sejam capazes de ‘verbalizar essa experiência diferente do Reino’ que estão a fazer «em Antioquia», na Comunidade. [Aqui, uma vez mais, os cananeus vão ser instrumento para «pôr à prova» a fidelidade de judeus israelitas; agora, testados diante da Pessoa de Jesus Ressuscitado, vivo, presente na Comunidade; cf. Jz 2:22] Jesus hesita e pensa dar uma 2ª oportunidade aos discípulos. Só aos discípulos? Não: a Ele próprio, também; Jesus também cresce diante dos desafios! O «silêncio» de Jesus não reflecte «frieza» de coração, mas perfeita consciência da gravidade do que está a «exigir» à Fé daqueles cristãos (da Igreja de Antioquia).
Quarto Exercício: que se proporcione tempo de meditação pessoal sobre as chances que a Comunidade deu a cada um no seu caminhar.


5. Quem é que, usualmente, usa a expressão «cachorros»? É o judeu piedoso, o judeu escrupuloso, o fariseu, a Thora! [Salmo 26:5: «Detesto a reunião dos cachorros, dos malvados, dos malfeitores; não tomo assento com os ímpios»; Sl 141:4-5.-9-10: «que o óleo do pecador nunca me perfume a cabeça»; Sl 139:19-22: «Ó Deus, faz com que os ímpios desapareçam; Não hei-de eu, Senhor, odiar os que te odeiam?»]
Afinal de contas, neste cenário teatral, quem é que «a cananeia» representa? Ela simboliza uma facção da Comunidade de Antioquia: os «cristãos vindos do helenismo» que nunca foram circuncisados, etc. [cf. Act 11]. A mulher cananeia simboliza os odiados pela fé judaica, os não oriundos do judaismo, «gente com defeito».
Neste relato, tais expressões [«cachorros», «malvados», «ímpios»] são imputadas aos ‘discípulos’ de Jesus!!!, ou seja, à outra facção da Comunidade de Antioquia.
Quinto Exercício: que todos pensem se há «grupinhos» na Comunidade. Mais nada: fiquem uns tempos a pensar… se cada um acha que também contribui para que haja «grupinhos de preferíveis»!!! A Comunidade deverá ser «um grupo de amigos»?


6. O relato vai desvendando o desfecho final – Jesus está a «dar demasiado terreno» à facção dos de fora, dos «cristãos-helenizantes»… Face à atitude de Jesus, os ‘discípulos’ («cristãos-judeus») percebem que podem vir a perder terreno… O drama dos ‘discípulos’ é este: Jesus pode tornar-se num amargo ‘desafio’, pode pôr a nú as suas/nossas fraquezas.
Sexto Exercício: meditemos, em silêncio, sobre os «pecadilhos» da nossa Comunidade em matéria de trato com ‘os de fora’ (no sentido de tomar consciência de como somos, efectivamente).


7. O ‘tormento’, que andava às costas da mulher cananeia (por simpatia para com a ‘filha’), na verdade, era o mesmo que andava na cabeça dos discípulos! Os ‘discípulos’ judaizantes da comunidade primitiva de Antioquia andavam também, deveras, incomodados com os helenizantes: eles colocavam questões teológico-pastorais terríveis… como se fossem «gritos que os perseguiam» (será que se pode «comer de todas as carnes»? será que as liturgias não andam mais ao sabor de gostos ritualistas, sacralistas e liturgistas e longe da profecia?) Quem divide a Comunidade são ‘os de fora’: eles são identificados como ‘demónios’. O certo é que ninguém divide nada sozinho…
Sétimo Exercício: nossa Comunidade já sofreu alguma rotura? Como foi isso? Houve ‘corte de relações’, ‘ódios de morte’? etc. (que cada um pense e medite em silêncio).


8. Como explicar a exclamação ‘exagerada’ de Jesus no v. 28? - «Ó mulher!». Como ‘chave’ do drama em acto, a exclamação de Jesus simboliza o desvendar da Sua opção pessoal: Jesus coloca-se do lado d’os de fora, ali revelada pela boca de ‘uma mulher’ e, ainda por cima, como se não bastasse, mulher ‘cananeia’ [cf. Jz 1-5, Débora e o rei Sísera]. A proclamação de uma Fé incrível de que o Amor de Deus é para todos (e não só para os católicos) e de que, para sermos salvos, nos basta «uma migalhinha» desse Amor, derrota qualquer um. Quem não exclamaria!
Oitavo Exercício: meditar nesta mensagem - «a salvação (sobretudo, da Igreja) vem de fora»; Jesus coloca-se do lado de «gente com defeito».


9.Uma «fé grande», HOJE, é sinónimo de quê? De horizontes livres, largos, de capacidade de denúncia: na Comunidade, Deus não é «propriedade privada», não é só do ‘padre’ ou de alguns. O «projecto de felicidade» de Deus é para a Terra inteira – a Fé tem as medidas do Universo… Os limites da Fé são o Céu e o impossível! O Céu é o limite! O futuro do «projecto de Jesus» - por isso, Ele exclama! - tem a ver com a compreensão acerca do ‘futuro e identidade’ por parte dos discípulos: trata-se de ficarem como ‘um resto de Israel’, a «Igreja-dos-Doze» (igreja de judeo-cristãos em Jerusalém), correndo o risco de desaparecerem sob o Império Romano ou, pelo contrário, de «cortarem as amarras» do judaísmo rabínico (libertarem-se da Thora) e ousarem a “aventura Jesus”, sem Regra, sem ‘manual’ (Catecismos), sem Templo (de pedras), sem objectos sacralizados, sem casta sacerdotal, sem discriminações ou limites de qualquer espécie (temporais e outros) e viver já na(a) ressurreição. Jesus sabia bem em que consistia Jerusalém: o esgotamento duma extraordinária caminhada! [‘Vocabulário de Teologia Bíblica’, X. Léon-Dufour, p.467-475] Mas sentia que deveria iniciar-se, agora, uma outra radicalmente nova, muito arriscada, «sem rede» alguma. Ninguém tem o direito de querer ser dono do mistério que está no fim da sementeira: a colheita. Jesus viu na Fé da cananeia o rasgão mais do que necessário para projectar a Esperança. E, então, Jesus limita-se a ‘confirmar’ essa perspectiva de leitura, sob a forma de uma exclamação: «Ó!» Nem Jesus se preocupou com a colheita: apostou tudo no fruto, precisamente naquilo que «está entre a sementeira e a colheita». [Olegário G. de Cardedal] É, igualmente, curiosa esta Fé de Jesus: a fé do/no fruto, Fé no «fruto tocado» pelo grito da esperança, pela mancha também, Fé no/do incompleto, Fé comestível, Fé de Comunidade. Quantas vezes, nas nossas Comunidades, queremos a todo o transe, garantir 'os padrões' da colheita final, o 'resultado'? Neste relato, Jesus nem Deus quis ser... Recusou-se o «discurso de clausura», não quis ter «a última palavra» - ficou-se pelo espanto, pela exclamação. A «última palavra» sairia do caminhar da Comunidade (de Antioquia). Acreditamos verdadeiramente nisto?

Ter ‘Fé Grande’ é acreditar que os desprezados, os esquecidos da História, alargam as fronteiras do Reino… São eles que nos ensinam o Reino, nos «educam na Fé», vivem já a colheita da ressurreição. Afinal de contas, ‘é a Religião que interpreta a Revelação ou é a Revelação que interpela a Religião?’ [K. Rahner]


10. «a filha» «curada» - a Igreja («a filha») de Jesus «ficou curada»… Liberta do demónio do sectarismo «que a atormentava»! A Igreja ficou «curada» da mania de ser rejeitada (pelo mundo secularizado) & de ser «dona da verdade» (do Evangelho, de Jesus), etc. (vide: a nossa Comunidade, o Vaticano e a Cúria). Converteu-se à sua mais genuína missão: perdoar, curar, libertar, acolher.


11.Para ficarmos nós, também, curados, que nos falta fazer? Olhar para o umbigo (os «grupinhos» de dentro da Comunidade)? Olhar para Altares e Ícones? Organizar Procissões? Peregrinações? Que nos falta fazer?  Fazer é fazere não, apenas, ‘dizer coisas a Deus’.
Nono Exercício: dar exemplos concretos do que é urgente fazer (no Mundo, fora da nossa Comunidade) no Plano da  libertação, da cura, e do Anúncio de Boas Notícias. O Reino é para todos, mas, em primeiro lugar, para os que estão do lado de fora de tudo... É aí que iremos, a 'tocar' o Ressuscitado!, mortos de espanto. Pois «está vivo», «está no meio de nós» e deixa-se tocar. [João 20:27; Actos 2:24.32]

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