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O Pontificado de João Paulo II
&
a Globalização
O pontificado de João Paulo II [1978-2005] marcou uma nova fase do desenvolvimento do catolicismo, no âmbito do processo actual da globalização. Não se trata apenas de uma nova época cronológica, mas de uma mudança de carácter e de orientação. Os grandes desafios e oportunidades do final da ‘guerra fria’ e o começo duma era planetária, foram assumidos por João Paulo II, aos quais procurou responder com uma renovada influência da Igreja Católica na sociedade e com uma reestruturação interna num contexto de globalização.
A análise do último pontificado ajuda a clarificar a resposta do catolicismo aos novos desafios do terceiro milénio. No que diz respeito ao papel mundial do Papado, João Paulo II foi um papa popular, convocou grandes massas e manipulou com mestria a cultura dos meios de comunicação social, através de mais de cem viagens internacionais, de mais de uma dúzia de encíclicas e inúmeros documentos. Foi um papa viajante e transbordante, com uma enorme força física e moral, capaz de tomar posições contra a corrente e com convicções claras. Daí o respeito que produziu em inúmeras pessoas, crentes ou não crentes. O papel de Roma como centro do catolicismo tinha de adquirir uma dimensão nova. O novo estilo de pontificado combina pluralidade e relativismo (próprios da pós-modernidade) com o reforço da ortodoxia e da identidade colectiva, que é o que mais preocupa às correntes tradicionalistas. Buscou uma circunscrição clara da especificidade católica, no contexto ecuménico duma sociedade planetária, de aceitação da pluralidade ao nível mundial e o fortalecimento da unidade no âmbito interno do catolicismo.
JP II na Polónia, com Lech Walesa |
Internacionalmente, este pontificado desempenhou um papel importante na queda do comunismo na Europa, mediou o conflito entre a Argentina e o Chile (1978), pronunciou-se contra a Guerra do Golfo (1991), do Kosovo (1999) e do Afeganistão (2001), denunciou a invasão do Iraque (2003), defendeu o Povo Palestiniano apesar de reconhecer o Estado de Israel (1994). Daí, a sua popularidade como agente da paz, o que lhe valeu ser proposto para Prémio Nobel. Politicamente, a sua postura foi clara. Não apoiou os cristãos comprometidos com governos de esquerda ou de influência comunista, como aconteceu na Nicarágua em 1983 e foi condescendente com ditaduras de direita, como a de Pinochet (1987) ou a da Argentina, com Videla (1982), recusando condenar explicitamente estes regimes. Exerceu actividade política na Polónia e reconheceu, em seguida, o Estado croata católico (1991). A política internacional do Vaticano nunca foi neutral, tendo sido mais condescendente com a direita capitalista do que com os governos socialistas. Porém mostrou-se com autonomia própria e com capacidade crítica face às grandes potências.
Nos fora internacionais alinhou ao lado de regimes autoritários, incluindo os islâmicos e comunistas, para opor-se ao controlo da natalidade, às medidas profilácticas contra a Sida, às pretensões dos homossexuais e a mudanças no modelo tradicional da família. A sua política de alianças foi marcada por uma clara identificação com a teologia e moral católicas, contudo aliou-se a governos, os mais antagónicos entre si possível, desde que defendessem, em pontos concretos, políticas favoráveis ao Vaticano. Nos fora internacionais, sempre defendeu a moral tradicional. A sua atitude restritiva em matéria moral influenciou também as questões jurídicas. Foi durante o seu pontificado que o número de convenções das Nações Unidas que não foram ratificados pelo Vaticano mais subiu, o mesmo acontecendo com muitos acordos sobre os direitos humanos. O papel internacional do Vaticano cresceu na segunda metade do século XX e o Papado alcançou uma enorme influência internacional, conferindo ao catolicismo uma capacidade de resposta a nível mundial que faltou a outras confissões cristãs.
Cúria romana |
Contudo, criticou-se a abstracção da sua doutrina social, o tom vago das suas denúncias dos governos ocidentais e dos fora internacionais. Os escândalos financeiros, como o do Instituto das Obras Religiosas, com Marcinkus (1981) e o do Banco Ambrosiano, com Calvi (1982), fragilizaram o seu pontificado. Na Nova Constituição Política do Estado do Vaticano (2001) manteve a concentração dos poderes judicial, legislativo e executivo na mesma figura, sem separar o Pontífice do Chefe de Estado. O Vaticano, ao nível constitucional, é um dos últimos governos absolutistas do mundo, sem separação de poderes, e sem constituição democrática.
Roberto Calvi e Banco Ambrosiano |
Somou muitos críticos ao seu pontificado, acusando, este, de ser uma forma de «autoritarismo democrático». Segundo a opinião de U. Beck, isso consubstancia-se numa liderança baseada na comunicação social e no apoio das maiorias; numa capacidade carismática e no controlo tecnológico das massas; numa modernização de estruturas institucionais e na diminuição da participação dos indivíduos; na exaltação da pessoa e na perda administrativa da autonomia. João Paulo II impregnou o catolicismo com a sua personalidade, mas o apoio popular à sua pessoa, que irradiou bem para lá dos católicos, não foi acompanhado de uma identificação com o seu programa religioso e moral. À luz do Vaticano, é controversa a sua actuação, sobretudo pela sua visão pessoal da Igreja. O Catecismo Universal (1992) e o novo Código do Direito Canónico (1983) sintetizam a sua concepção teológica nesta matéria.
Caminho Neo-Catecumenal |
Mas, temos que analisar as linhas mestras do seu pontificado à luz da sua origem e pertença. A Igreja polaca não conheceu a pos-modernidade, nem se preparou para a globalização. A unidade era uma condição da sua sobrevivência. Ela sempre colocou o acento tónico na autoridade, na disciplina e na homogeneidade doutrinal como forma de se defender do acossar governamental. A questão foi querer transferir essas linhas de actuação para a igreja universal situada num outro contexto histórico.
A postura assumida, filha de abertura controlada e de governo autoritário, travou o diálogo com as outras confissões religiosas. Gestos ecuménicos, tais como os encontros de Assis ou o diálogo com os ortodoxos e protestantes definharam por causa de documentos muito à defensiva, por causa de atritos com o Conselho Ecuménico das Igrejas e por causa de problemas com os Patriarcados Orientais. O ecumenismo não avançou e o Papado continua a ser o grande impedimento para a união dos cristãos, como o reconheceram Paulo VI (1967) e João Paulo II (Card. J Ratzinger, 1985). (cf. Apêndice Documental)
[‘Historia del cristianismo’, Vol. IV, Trotta, pp.470-473]
Juan Antonio Estrada
Apêndice documental
«O Papa é ‘indubitavelmente o obstáculo maior no caminho do ecumenismo’» (Paulo VI, ASS 59 [1967], 497)
«Teve uma grande repercussão ecuménica a posição de Karl Rahner e H. Fries: “Para lá disso, deveria implantar-se um princípio de fé realista: nenhuma igreja particular pode decidir nem recusar como contrário à fé qualquer terminologia que outra igreja professe como dogma obrigatório. Além do mais, (…) o que numa igreja particular é confissão expressa e positiva não pode impor-se como dogma obrigatório a outra igreja particular, mas que deve relegar-se para um consenso futuro». (‘La unión de las iglesias’, Tesis II, Herder, Barcelona, 1987, p. 38)
«Dito de outro modo: Roma não deve exigir do Oriente uma doutrina do primado distinta da que foi vivida e formulada no primeiro milénio. […] Quanto a esta questão, a união poderia conseguir-se assim: por um lado, o Oriente desistindo de considerar heresia a evolução ocidental do segundo milénio e aceitando como correcta e ortodoxa a modelação que a igreja católica foi adquirindo ao longo dessa evolução. Por outro, o Ocidente deveria reconhecer como ortodoxa e correcta a igreja do Oriente, sob a forma que quis para si.» (Cardeal J. Ratzinger, ‘Teoria de los principios teológicos’, Herder, Barcelona, 1985, pp.238-239)