«Aconteça o que acontecer, estamos aqui»
[Mateus 2:1-2.11]
«Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. E perguntaram: «Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente (…) e, entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-no; e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra.»
Basílica de S. Pedro_Roma |
Os «magos» não são Reis: são pagãos orientais (mal vistos pelos judeus; não crentes em Yahvé), sensíveis naturalmente a uma certa espiritualidade. Buscam – são itinerantes (anti-Templo)[1]. Não são “sábios, nem poderosos” [Powell], recusam apoderarem-se de Deus, recusam-se a comprar Deus (Nm 22:7.37). Vivem duma certa sabedoria de vida (o fantástico, o conhecimento a partir das estrelas - a astrologia -, a predição). Confira Números 22:24, em que o rei moabita Balac chama o adivinho (‘mago’) Balaão para amaldiçoar os israelitas. No fim duma luta agónica, o mago Balaão contraria o desejo do rei e acaba por predizer a derrota de Moab: ou seja, para o mago, a bênção de Deus recai, não sobre os moabitas (guerreiros, ancestralmente, inimigos dos israelitas), mas sobre os israelitas, transumantes. Os ‘magos’, regra geral (há excepções na literatura romana antiga), a partir da sua ‘sabedoria natural’ e da sua leveza itinerante, anunciam a derrota de reis iníquos latifundiários. [W. Carter]
Os magos fazem uma dupla experiência:
1. vão para lá da crença (persa) nas “estrelas” (vão para lá dum certo “budismo epicurista”[2], duma certa ‘religião naturalista’),
2. e intuem uma certa revelação intra-histórica de Deus;
Não se assustam diante das formas instituídas (tidas como opressoras) de poder político e de poder religioso (cf. Roma e Jerusalém: Herodes vs. sumo-sacerdote e escribas). A reacção negativa que se ouve em Jerusalém aquando da inquirição dos magos (Mt 2:3 - «Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes perturbou-se e toda a Jerusalém com ele.»;) antecipa um fim trágico, uma morte violenta (instigada também por ambos os poderes, político e religioso; confronte Mt 2 com Mt 27:20.25; “ouro”, sinal da realeza deste Menino; “incenso”, sinal da divindade do Menino; “mirra”: premonição de fim violento, trágico; perfume para embalsamar o seu cadáver…).
Os Magos, que dalguma forma são já anti-ídolos/anti-deuses, professam a sua fé numa figura que é anti-rei: sem exército e sem fetiches.
Conjuntamente com o poder político, a religião oficial – Jerusalém e a sua corte de “funcionários do sagrado” – apodrecida por dentro, começa a tremer!
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«A alegre máquina das oferendas»
Peguemos, apenas, no óbolo de S. Pedro, isto é, o conjunto das oferendas endereçadas ao Papa por fiéis das igrejas particulares, institutos de vida consagrada, sociedades de vida apostólica, fundações e privados: em 2010, totalizava «apenas» 67 milhões de dólares, com uma redução de 20% relativamente aos 82,5 milhões de 2009, afastando-se, assim, mais ainda, do recorde dos 100 milhões obtidos em 2006. (…)
Certamente que o andamento das finanças é uma das maiores preocupações no Vaticano. A alegre máquina das oferendas já não fabrica as receitas numa única vez, [por oposição ao tempo em que] durante todo o ano se podia apostar na generosidade dos fiéis. E sem dinheiro não se pode senão renunciar ao próprio domínio. Hoje só se esquecem estas obsessões na vigília das festividades consagradas quando, como se dum presépio vivo se tratasse, chegam à Praça de S. Pedro óbolos e verbas em dinheiro, bem como generosas gratificações de todo o mundo.
No Natal e na Páscoa é uma autêntica procissão. Frades franciscanos com pastas e envelopes de cartas a transbordar de notas, managers que trazem candelabros de prata ou gratificações consideráveis, lobistas, empreendedores, abastados aristocratas e jornalistas. Em torno do Papa, anima-se a humanidade matizada das oferendas, que vê na pessoa do pontífice a referência principal, a figura catalisadora. […]
O próprio pontífice não se poupa a esforços de modo a garantir um fluxo contínuo de dinheiro nas caixas. Seja com campanhas que envolvam todo o mundo católico, como a recolha no Ano Santo, o óbolo de São Pedro ou a destinação de uma parte simbólica dos impostos, que em Itália é de 8 por mil. Seja com iniciativas pessoais e momentos privados.
Todos aqueles que chegam às audiências, os poucos privilegiados que conseguem possuir o chamado «bilhete beija-mão», deixam o óbolo em troca de beijar o anel e da foto de família. No bilhete está indicado o número de pessoas que podem entrar e a data da audiência que ocorre às quartas-feiras na Sala Paulo VI, na Praça de S. Pedro, ou então no segundo andar do Palácio Apostólico. Tudo reservado aos escassos generosos eleitos que podem gozar de um encontro privado com o Papa. Aliás, - como se diz? - «ao Vosso gentil coração».
Funcionários do sagrado_Basílica de S. Pedro |
É difícil calcular as médias estatísticas, porque se trata de dados que não são tornados públicos, tal como grande parte dos orçamentos das entidades que contribuem para as finanças da Igreja. Mas, num só dia, das indiscrições recolhidas e dos documentos à disposição, pode-se determinar que com as audiências consegue-se recolher quantias desde os 40 000 aos 150 000 euros.
Os colaboradores de Bento XVI ocupam-se das contas. As listas são compiladas, em grande parte, no computador com anotações ainda escritas à mão. A estes documentos contabilísticos anexam-se os maços de notas e cheques. Prontos a ser lavados para o IOR [Instituto das Obras da Religião], o cofre dos cardeais, onde o Papa possui vários depósitos a ele vinculados a títulos diferentes, com poder de delegação para monsenhor Georg[3] para transferências e créditos. Trata-se daquilo que, geralmente, é denominado como «depósito do Papa», um fundo pessoal e secreto sobre o qual convergem diversas quantias, dos lucros do IOR ao óbolo de S. Pedro, o qual o pontífice destina à beneficência.
Estamos em condições de ver o prospecto contabilístico do dia 1 de Abril de 2006:
50 000 euros recebidos, 41 689 em dinheiro, 6625 em cheques, o resto em divisas estrangeiras.
Se formos depois examinar a contagem das oferendas entre audiências públicas, privadas e doações, percebe-se como são os próprios sacerdotes e as dioceses a trazer o maior número de óbolos numa corrente de generosidade que vai da periferia até ao coração de São Pedro. Naqueles dias, entre os benfeitores, encontramos os frades menores da província seráfica da Úmbria, a Obra diocesana dos peregrinos de Lugano, o mosteiro alemão Kloster Mallersdorf, o santuário Madonna della Fontana e alguns indivíduos como Javier Echevarría, que é o prelado da Opus Dei, e o então presidente do IOR (Instituto das Obras da Religião) Ângelo Caloia com 5000 euros em dinheiro.
Cada óbolo esconde uma história, uma personagem que deve ser descrita. Graças às cartas que chegaram até nós, podemos por exemplo reconstruir as doações de Caloia, gerente da alta finança milanesa, que passou em 1989 do banco Mediocredito Central à direcção do IOR, a instituição que Marcinkus deixou, sob a ameaça de prisão, pela derrocada financeira do Banco Ambrosiano. Caloia será o último dos mais fiéis laicos escolhido por Wojtyla a deixar o Vaticano, três anos depois da «revolução gentil» lançada pelo Papa alemão. Nos primeiros meses do novo pontificado, Caloia espera talvez ainda uma confirmação, depois de vinte anos passados no topo da instituição de crédito. Procura, assim, valorizar a própria actividade bancária. Divulga, na Secretaria de Estado e nos sagrados palácios, os resultados obtidos pelo IOR, capaz de recolher 5 mil milhões de euros entre os próprios clientes. E mostra também particular generosidade. Passam alguns dias, e, a 23 de Abril de 2006, manda uma posterior oferta choruda. Desta feita é de 50 000 euros, de acordo com o que se lê na afectuosa carta que endereça ao Papa: «all.50.000,00R/24-abril/2006». O estilo escolhido é particularmente obsequioso. Caloia define a quantia como um «modesto sinal». De 50 000 euros. (…)
Bento XVI_Sede Apostólica |
Voltando aos «esmoladores» e ao prospecto de 1 de Abril, existe também quem mereça o prémio da invencibilidade por tenacidade. De facto, 30% das oferendas registadas nesse dia foram entregues por uma freira de rara influência entre os religiosos: a poderosíssima abadessa das Brigidinas, Tekla Famiglietti que, vinda de Sturno, uma aldeia da Campània, tornou-se embaixadora dos papas e superiora das freiras presentes em todo o mundo.
São quatro os depósitos distintos sem indicações sobre quem terá transferido para a irmã aquela quantia. Nem há necessidade de sabê-lo. A discrição é uma marca característica desta madre superiora, estimadíssima por Wojtyla e pelo seu secretário pessoal, dom Stanislaw Dziwisz, pelas iniciativas das Brigidinas em Cuba, na Polónia e em países na altura comunistas. Sobre elas se contam verdades e lendas: «Diz-se que um dos quatro números», revela hoje o núncio Pupi d’Angeri, excêntrico diplomata amigo de [Fidel] Castro e Arafat, embaixador do Belize em Itália, «na memória do telefone da escrivaninha de João Paulo II era precisamente o da irmã Tekla».
É também ela que Andreotti aponta como um «general do corpo armado», tão importante que, nos anos oitenta, lhe fará transferir quantias de dinheiro da conta «fundação cardeal Francis Spellman» que o sete vezes presidente do Conselho abrira no IOR. E a abadessa é da casa no banco do Papa, onde Pietro Orlandi trabalhou durante dezoito anos, depois de a sua irmã Emanuela ter desaparecido em 1983, um caso que permanece ainda por resolver: «Quando madre Tekla vinha ao guiché», recorda Orlandi durante um encontro nosso, «trazia enormes quantias de dinheiro e dava gorjetas consistentes sem olhar nos olhos».
Gianluigi Nuzzi, «SUA SANTIDADE – as cartas secretas de Bento XVI. Como o Vaticano vendeu a alma.» Bertrand Editora_2012, pp. 92-97.
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«Aconteça o que acontecer, estamos aqui», e seremos monges da miséria
[Mateus 2:1-2.11]
Nem a clausura monástica isola: «A clausura delimita um espaço de acolhimento, parece-se com um coração aberto, ferido pelo sofrimento deste mundo» (‘Aime’, p. 72).
Sabemos que lugar o compromisso com os pobres ocupou na vida de Christophe depois do seu encontro com Emaús e o Abbé Pierre. Para ele, essa relação com os pobres permanece verdadeira mesmo no interior do mosteiro: «Creio profundamente numa proximidade misteriosa entre o monge e o delinquente, o prisioneiro, os nossos amigos da Arche, os torturados. Penso que tenho de receber dos mais pobres a permissão de ser monge, monge da miséria» (ibid.)
“Christophe Lebreton – monge mártir em Tibéhirine e mestre espiritual para os nossos dias”, por Dom Henri Teissier, arcebispo emérito de Argel. Consolata Editora (Fátima), Tradução de Aventino Oliveira. ISBN 978-972-8265-45-8.
[cf. o filme Des hommes et des Dieux de Xavier Beauvois]
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[1]Cf. «Nos templos não se passa nada», in http://asaladecima.blogspot.pt/2011/02/normal-0-21-false-false-false-pt-x-none.html
[2] Duma certa forma de religião filosófica ataráxica, duma procura duma certa paz à custa do afastamento das tensões e das lutas sociais e históricas (por oposição à «religião histórica» de Israel), privilegiando o contacto com a natureza romântica, consoladora, retemperadora, idílica (cf. os hodiernos ‘resorts’… e as propostas turísticas actuais).
[3] Georg Gänswein, presbítero e teólogo alemão, um dos dois secretários particulares do Papa Bento XVI, prior da catedral de Friburgo antes de se mudar para Roma (para a cátedra de Direito Canónico na Pontifícia Universidade da Santa Cruz). Antes de ser escolhido por Bento XVI para seu secretário particular, servira, na Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger.