Há 50 anos - 11:OUT:1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II
QUE ACONTECEU AO CONCÍLIO?
«Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis que os chefes das nações as tiranizam e que os grandes as oprimem. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso escravo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a todos.»
[Mateus 20: 25-28]
«A convocação do Concílio e o desenvolvimento da grande assembleia conciliar provocaram um interesse muito amplo e profundo (…). O voltar-se do impulso conciliar sobre si próprio implicava uma ampla desilusão, a qual desperdiçaria um excepcional movimento de esperança e de disponibilidade, uma autêntica “ocasião histórica”.» [G. Alberigo]
A RECEPÇÃO DO CONCÍLIO NA PÓS-MODERNIDADE
Durante o Concílio [Ecuménico Vaticano II], em nome da tradição, a Cúria romana opôs-se às inovações conciliares. Mais do que as necessárias inovações e adaptações que a nova situação histórica, social e eclesial exigia, os opositores sublinhavam a necessidade da preservação da tradição, na linha do Syllabus. Os conservadores sempre possuíram um faro apurado para detectar os perigos que possam pôr em causa o «status quo» eclesial, bem como foram exímios em prognosticar, acertadamente diga-se, que, com o Concílio, se inaugurava um período de incertezas que poria em causa as certezas antigas. O pessimismo anti-modernista do Syllabus, que tinha sido apeado pelo optimismo da Constituição «Gaudium et Spes», voltou, porém, a ressurgir na década de setenta e impôs-se, claramente, nos anos oitenta.
No pós-Concílio, a ideia de criar um organismo independente da Cúria para que cuidasse de levar para diante as reformas conciliares não foi ponderado: encarregou-se a Cúria dessa tarefa. Assim se favoreceu uma interpretação minimalista dos textos conciliares, procurando mais a continuidade com a tradição do que a inovação. As próprias comissões encarregadas de levar à prática o Concílio eram formadas por pessoas ‘de confiança’, de provada ortodoxia e de fidelidade institucional indiscutível, porém, por causa da idade e da mentalidade, eram sócio-culturalmente alheias à cultura pós-moderna emergente, eram alheias à sensibilidade democrática da sociedade e até à raiz comunitária e laical da Igreja. Portanto, não foi possível repensar a identidade cristã a partir da cultura secular, numa linha indutiva assumida pela Gaudium et Spes e potenciada pelos movimentos pós-conciliares apostólicos. Tendeu-se a defender a tradição e a impô-la a toda a Igreja.
A necessidade de reformas ficou bloqueada pelo medo da rotura com a tradição anterior. Os objectivos a curto e médio prazo eram controlar o processo pós-conciliar, já que as inovações conciliares eram impossíveis de ser inviabilizadas, as quais, a partir da década de setenta, começavam já a fazer-se sentir. O preço a pagar por este processo recaiu sobre os objectivos a longo prazo: nomeadamente, conseguir uma Igreja credível e eficaz capaz de dialogar com a sociedade; re-evangelizar a nova cultura a fim de superar o distanciamento que o anti-modernismo gerara; e conseguir uma transformação eclesial que possibilitasse a aguardada unidade de todas as igrejas cristãs.
Não há dúvida que, na sequência do Concílio, aconteceu uma crise na Igreja, ainda que não sejam unânimes as avaliações das causas e dos seus significados. Alguns autores sublinham que todos os grandes concílios que marcaram a vida da Igreja provocaram crises pós-conciliares, tal como ocorreu no concílio de Trento[1]. Além do mais, a crise já se perfilava mesmo antes do concílio, tal como mostra a “Humani Generis” de Pio XII, contra a nova teologia e que acabou em tensões conciliares. Após os anos sessenta (século XX), adveio uma grande mutação social e cultural que ainda aumentou mais a instabilidade. Havia cada vez mais teólogos e bispos preocupados em defender a herança conciliar, ao mesmo tempo que rejeitavam uma leitura minimalista do Vaticano II, e que denunciavam uma involução no que diz respeito à letra e ao espírito conciliares[2].
Paralelamente a esta corrente teológica, havia outra de sinal contrário, na qual ressurgia a «minoria» tradicionalista do Concílio, à qual se juntaram teólogos que haviam desempenhado um papel renovador no Vaticano II. Estes valorizavam, negativamente, a recepção pós-conciliar, que consideravam um processo destrutivo para a Igreja, criticavam o optimismo da visão conciliar do mundo e pediam uma volta-atrás numa linha de maior continuidade com a eclesiologia pré-conciliar[3]. Na década de setenta, esta linha crítica da teologia renovadora foi apoiada por importantes cardeais tais como Ratzinger, de Lubac e von Balthasar e tiveram influência em Paulo VI, cada vez mais alarmado com o percurso pós-conciliar[4].
Esta linha impôs-se na Comissão Teológica Internacional, provocando a demissão de Karl Rahner, que defendia o valor positivo do pluralismo teológico e propunha mudanças por ser muito difícil compreender os velhos dogmas, isto, por oposição àqueles que sublinhavam o carácter vinculativo do conjunto dos enunciados normativos[5]. Trata-se de duas correntes contrárias, se não mesmo opostas, que valorizam diferentemente o novo contexto pluralista e as suas inevitáveis consequências relativizadoras, contra o paradigma anterior que sublinhava a homogeneidade das teologias e a unidade da fé, ao mesmo tempo que defendia a ilegitimidade do pluralismo.
Ao impor-se, esta última corrente, à custa do pluralismo da Comissão Teológica Internacional e da sua representatividade, reduziram-se, cada vez mais, as possibilidades de uma teologia renovadora e criativa, já que a teologia precisa de liberdade para sondar novos caminhos. Donde o empobrecimento da teologia católica nos últimos vinte e cinco anos, a falta duma geração que herdasse e substituísse os «gigantes» que foram os promotores da renovação conciliar, bem como a crescente inquietação de um sector minoritário de teólogos que culminaria na “Declaração de Colónia” (1989), assinada por cento e sessenta e três teólogos, que criticavam o controlo romano sobre o pensamento teológico e que viria a ser apoiada por muitos teólogos de outros países. (…)
Ao invés da involução posterior de boa parte dos eclesiásticos, a comunidade dos crentes foi muito mais receptiva à mudança de imagem que o Concílio Vaticano II possibilitou. O período pós-conciliar inaugurou um tempo de reformas, inovações e buscas, num contexto de desarticulação do tecido social do cristianismo tradicional, o qual se agudizou por causa do carácter cada vez mais secularizado da sociedade, por causa do estilo de vida profana e por causa da crescente indiferença religiosa. Desapareceu uma ideia única de Igreja que fosse aceite por todos; ao mesmo tempo, a viragem involucionista ─ aquilo a que Karl Rahner chamou retirada para os quartéis de inverno e outros definiram como restauração conservadora[6], ─ não só paralisou as reformas conciliares que procuravam um novo diálogo entre a sociedade secular e a Igreja, como deu origem a um dobrar-se sobre si própria, regressivo. Optou-se por uma via impositiva e autoritária como forma de recuperar a coesão perdida, à custa dos grupos dissidentes, especialmente dos teólogos que, com base nos textos conciliares, arguiam contra a interpretação minimalista. (…)
Qualquer desacordo com a linha oficial, inclusivamente sobre questões de política eclesial que não tivessem que ver com o dogma ou a revelação, eram vistas como infidelidade e falta de amor à igreja, sem sequer se colocar a hipótese de saber se essa atitude crítica poderia ou não ser expressão de uma preocupação sincera pela situação em que se encontrava a igreja. Estes qualificativos («desafectação eclesial», «dissidência», «falta de amor à Igreja») podiam ser usados contra quem quer que assentisse seja contra que decisão da hierarquia fosse, sendo suficientes para lhe instaurar um processo doutrinal ou canónico. O voto de obediência dos religiosos foi usado para obviar a processos jurídicos, nos quais ─ como seria óbvio ─ o acusado poderia defender-se. Os superiores religiosos colaboraram nas medidas disciplinares e, com a hierarquia, como moeda de troca de garantias processuais. O pretenso diálogo com o mundo, que a “Gaudium et Spes” propugnava, não se traduziu numa abertura (dentro da Igreja) para com os que pensavam de forma diferente. A velha concepção hierarcológica voltou a ressurgir, apesar da teoria oficial da ‘Igreja como comunhão’. [Nota do Editor: São muito mais frequentes do que se possa imaginar os "comportamentos esquizofrénicos" dos presbíteros, dos bispos e dos Papas. Apesar de terem "a teoria" toda bem 'arrumada no sótão', no que diz respeito às relações quotidianas com os leigos e as comunidades, vivem vidas duplas: tanto tomam iniciativas "de comunhão", democráticas (ex.: Assembleias deliberativas), como subitamente têm acessos de insegurança e reservam - apenas para si - as decisões finais, transformando aquelas "assembleias deliberativas" em meras "assembleias consultivas". Diante deste comportamento concreto, os leigos sentem-se usados, sentem que não são considerados adultos na Fé o bastante, e não admira que fiquem pouco disponíveis para 'encenações de comunhão eclesial' deste tipo... Jesus tinha razão: palavras sublimes e ensaios de teologia "profundos", textos brilhantes, "palavras caras", planos pastorais luminosos pouco importam. O importante está em "fazer" ou "deixar de fazer" aquilo que se "pensa com a cabeça", o importante está em pôr no terreno aquilo em que "se acredita com o coração" - Mateus 25:45]
Ora, a sacralização das estruturas opõe-se à profanidade democrática da sociedade. Na medida em que já não é mais possível o velho regime da cristandade, procurar-se-á, como alternativa, uma igreja sacralizada que sobreviveria numa sociedade profana e que permitiria uma colaboração privilegiada com o Estado. Ao mesmo tempo que se sublinharia que a constituição da Igreja e a origem dos ministérios remetem, em última instância, para uma inspiração divina (facto que ninguém contesta ou nega), de seguida defender-se-ia o status quo institucional e ministerial, recusando qualquer reforma ou crítica. Esta estratégia é uma espécie de sacralização ideológica da organização, precisamente, aquilo que fez com que alguns eclesiásticos afirmassem que aqueles que criticam a Igreja fazem-no porque não a amam, esquecendo a larga tradição de santos e profetas críticos, bem como o postulado teológico de que a Igreja carece de reformas sempre (Ecclesia semper reformanda).
A alergia anti-institucional pós-moderna foi contrabalançada com o medo à democracia por parte da hierarquia.(…)
Juan Antonio Estrada, sj
“El Cristianismo en una sociedad laica”
Desclée De Brouwer, Bilbao, 22006
[pp. 13]
[1] J.W. O’Malley, “Historical Consciousness and Vatican II’s Aggiornamento”: ThSt 32 (1971), 573-601; “Developments and two great Reformations: toward a historical Assesment of Vatican II”: ThSt 44 (1983), 373-406; F. Wulf, “Bilanz nach 20 Jahren. Hat das Konzil eine Zielsetzung erreich?”: GuL 57 (1984), 278.
[2] Esta é a opinião de Y. Congar, Le concile du Vatican II, Paris, 1984, 62-70; 100-101. Também cfr., H. Pottmeyer, “Ist die Nachkonzilszeit zu Ende?”: StdZ 203 (1985), 219-30; H. Denis, Église qu’as tu-fait de ton Concile?, Paris, 1985, 197-216 ; M. Winter, Wath ever happened to Vatican II ?, Londres, 1985, 7-19.
[3] Em 1975, Joseph Ratzinger afirmou “que ainda não havia começado a era da correcta aceitação do Vaticano II”: Teoría de los princípios teológicos, Barcelona, 1986, 449. Posteriormente, reafirma que “os últimos vinte anos foram claramente desfavoráveis para a Igreja católica”: J. Ratzinger-V. Messori, Informe sobre la fe, Madrid, 1985, 35. Na sua opinião, passou-se da auto-crítica à auto-destruição da igreja (pág. 36) e não esconde a necessidade duma mudança: “Se por ‘restauração’ entendemos a busca dum novo equilíbrio após os exageros duma abertura indiscriminada ao mundo, após as interpretações demasiado positivas de um mundo agnóstico e ateu, pois bem, então uma ‘restauração’ entendida neste sentido (isto é, um equilíbrio renovado das orientações e dos valores no interior da totalidade católica) seria totalmente desejável e, até, já está em marcha na Igreja. Neste sentido pode dizer-se que se encerrou a primeira fase do pós-concílio” (pág. 44). Também, H. de Lubac, Entretien autour du Vatican II, Paris, 1985, 117-23; L’Église dans la crise actuelle, Paris, 1969. Menozzi oferece uma lista de autores favoráveis ao Concílio e que, logo de seguida, foram muito críticos com o desenrolar pós-conciliar, pois viam nele secularização e perda da autoridade da Igreja (Maritain, Danielou, de Lubac, von Balthasar, etc.) cfr., “El anticoncilio (1966-1984)”, in La reception del Vaticano II, Madrid, 1987, 387-391; A.M. Greely, “The Failure of Vatican II after Twenty Years”: América 146 (1982), 80-89; 454-55.
[4] J. Grootaers, De Vatican II à Jean Paul II, Paris, 1981, 88-112. Routhier diz que a mudança de uma fase liberal, aberta à criatividade e às experimentações, para uma outra mais integral e restritiva dá-se entre 1969 e 1972. “Podemos avançar com a hipótese de que quatro anos após o fim do Concílio, o destino já estava traçado. Incapaz de suscitar uma nova fisionomia para o catolicismo, o Vaticano II não conseguia alcançar todos os seus frutos (…). Dentro dum novo clima marcado pelo medo, o estilo que pouco a pouco se imporá é, seguramente, mais o do voltar-se sobre si próprio que o da abertura e da expansão” (G. Routhier, “A 40 anni dal Concilio Vaticano II”: Sc Catt 133 (2005), 34; 19-52).
[5] Foi esta a posição da Comissão Teológica Internacional no seu documento “Unidade da fé e pluralismo teológico” (1972), redigida por uma equipa de teólogos sob a direcção de J. Ratzinger, e com o apoio de von Balthasar e de Philips. Uma postura divergente havia sido exprimida por K. Rahner, “O pluralismo em teologia e a unidade confessional na Igreja”: Concilium 46 (1969), 427-48. Já antes, por ocasião da primeira sessão do Concílio, Rahner havia defendido a pluralidade da teologia. Cfr., “Problèmes théologiques urgents”: IDOC International 13 (1/12/1969), 45-62.
[6] P. Imhof, La fe en tiempo de invierno. Diálogo con Karl Rahner en los últimos años de su vida, Bilbao, 1989,; G. Zizola, La restaurazione del papa Wojtyla, Baria, 1985; J. M. González Ruiz, “El Vaticano II: reforma y restauración”, en El Concilio Vaticano II viente años después, Madrid, 1985, 47-64.