«Creio que o cristianismo ocidental desenvolveu em si mesmo toda uma tradição, a que eu chamaria uma espécie de ateísmo, “um ateísmo suspenso”, no sentido em que o cristianismo chega a manter a fé em suspenso (estou a pensar no «Geläut der Stille», o «carrilhão do silêncio», de Martin Heidegger), em que o cristianismo chega a estabelecer uma distanciação face a Deus e face a qualquer tipo de comportamento que o pudesse levar muito a sério. Esta tradição sugere um ateísmo latente no cristianismo (salvo no Oriente cristão). Como se o cristianismo, concretamente, fosse incapaz de suportar uma presença ou sequer uma afirmação excessiva de Deus ou, mais ainda, como se tivesse necessidade de uma certa dose de ateísmo para poder suportar-se a si mesmo enquanto fé em Deus. Como se o ateísmo lhe fosse mais que necessário para expressar correctamente a sua fé em Deus, alertando contra o seu excesso. Como se «Etsi Deus non daretur» fosse a coisa mais natural. Pensemos, antes de mais, na passagem bíblica: “(Quando estiveres doente) ora ao Senhor, oferece incenso e oferendas generosas à medida das tuas posses. Depois, chama o médico, pois te será útil.” [Sir 38:9.11-12] Ou seja, muito pragmaticamente, encomenda-te ao teu anjo da guarda, mas não te esqueças de ir ao médico, tá?! E o autor sagrado, como que para não escandalizar o eventual leitor devoto, acrescenta: “Porque ele também [o médico] foi criado pelo Senhor”...».
Adolphe Gesché
(«Etsi Deus non daretur»: como se Deus não existisse)
«AI DE VÓS…!»
Distopias evangélicas
As utopias apontam para um futuro idílico universalmente desejável. Nos seus antípodas, o neologismo distopia anuncia um horizonte apocalíptico do qual apetece fugir.
1. INTRODUÇÃO
Utopia e distopia são conceitos relativos – diante da mesma expectativa social, indicam perspectivas divergentes.
A luta utópica de algumas ONG’s, a fim de conseguir medicamentos livres de patentes para países em vias de desenvolvimento, desenha um cenário distópico para as empresas farmacêuticas que reivindicam os direitos de propriedade intelectual para amortizar os seus investimentos em investigação. No século passado, a utopia da conservação da selva tropical amazónica defendida por Chico Mendes constituiu uma clara distopia para os interesses depredadores dos fazendeiros brasileiros que o assassinaram.
Tradicionalmente, a mensagem evangélica alheou-se acriticamente da utopia. A Boa Notícia, apresentada sob as roupagens edulcorantes duma sociedade paradisíaca, foi comummente recebida e aceite como ideologia apetecível por todos. No entanto, basta ter em atenção o destino trágico de Jesus e dos mártires cristãos de todos os tempos para concluir, sem ambiguidades, que o horizonte do reino de Deus é essencialmente distópico. Ao longo da história, os guardiões do status quo sempre viram com maus olhos qualquer tentativa de construir uma sociedade mais justa, mais fraterna e igualitária.
Jesus, profeta distópico
Jesus foi condenado e executado por ser distópico: as suas palavras e acções foram, pelos seus contemporâneos, entendidas como uma ameaça real para o sistema social, político e religioso dominante. O anúncio de um Reino de Deus, em que publicanos e prostitutas precederiam os sacerdotes e os anciãos do povo (cf. Mt 21:23-32); um Reino em que pobres, aleijados e coxos ocupariam os lugares de honra desvalorizados pelos convidados da primeira hora ─ o povo judeu ─ (cf. Lc 14:15-24); um Reino em que a adoração em espírito e em verdade suplantaria o culto do Templo de Jerusalém (cf. Jo 4:19-24) punha em perigo os pilares sagrados da nação judaica.
Jesus não foi um activista político possuidor dum plano revolucionário de reformas sociais. A sua mensagem e a sua acção estavam em continuidade com a tradição profética israelita. Na sua experiência religiosa foi-se revelando o rosto de um Deus distópico intimamente preocupado com a sorte dos ‘mais pequenos’. Uma relação privilegiada com o Abba do povo, o que o levou a proclamar o advento dum reino no qual a santidade de Deus surgia vinculada ao destino dos empobrecidos:
«Jesus faz a experiência de um Deus diferente. É o Abba do povo. Interessa-lhe a vida do pobre (Mt 6:9-13): nela, joga-se a realidade da sua paternidade histórica. Decidira reinar já, mudando a situação dos marginalizados.»[1]
A decisão de Caifás
Ainda que tragicamente expedito a tomar decisões, o sumo-sacerdote Caifás foi muito lúcido na análise das possíveis consequências da mensagem de Jesus: «Não percebeis que é preferível que morra um só homem pelo povo do que a nação [judaica] ser destruída?» (Jo 11:50)
A afirmação da primazia da pessoa sobre a Lei divina, a solidariedade contaminante com «os impuros», a crítica da religiosidade farisaica ou a inclusão dos pagãos nas promessas da Aliança, fizeram do galileu um profeta subversivo. A sua própria utopia sócio-religiosa questionava pela raiz a ordem judaica baseada na exclusividade da Promessa e na exclusão de todos aqueles e aquelas que pudessem manchar a pretensa santidade do Povo Eleito.
‘Ais’ distópicos
O evangelista Lucas estava muito consciente do conflito latente na proclamação da boa nova do Reino de Deus. Por isso, não hesitou em acrescentar uma «mal-aventurança» a cada «bem-aventurança do Sermão da Planície:
«Ditosos os pobres / Ai de vós, os ricos!»
«Ditosos os que têm fome / Ai de vós, os que estais saciados!»
«Ditosos os que chorais / Ai de vós, os que agora riem!» [Lc 6:20-26]
As mesmas distopias que acrescentam tensão ao «bucólico» Magnificat mariano (Lc 1:46-55). A utopia de um Deus misericordioso que enaltece os humildes e enche de bens os famintos rapidamente fica ameaçada pelas nuvens distópicas que anunciam tempestade para os poderosos e ricos: «derrubou dos seus tronos os poderosos […] e, aos ricos, despediu-os de mãos vazias».
Porquê esta estreita ligação entre promessa aos desfavorecidos e ameaça aos privilegiados?
A situação dos pobres e dos famintos é incompatível com a manutenção da situação dos de melhor estatuto social e económico?
Não estará porventura, o Evangelho, a estabelecer uma relação de causa-efeito conflituosa e gratuita?
2. MATRIZ DISTÓPICA: OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS
«Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos» (cf. Mt 20:16) – esta estranha profecia é a matriz nutritiva que alimenta o carácter distópico da Boa Notícia evangélica.
O anúncio do reino de Deus é bi-direccional. Por um lado, promete uma melhoria de vida para os pobres e sofredores e, por outro, «ameaça» a situação de privilégio dos satisfeitos. Uma dupla direcção que não persegue uma mera mudança de lugares: os pobres passam a ocupar o cadeirão dos ricos e os ricos sentam-se no chão dos pobres. Não.
Muito menos se reduz a um acto de caridade, de modo a que os que mais têm se vêm convidados a ajudar os mais necessitados.
Pobres e ricos estão convocados a caminhar rumo a um lugar inédito no qual a sorte de ambos será alterada.
A distopia evangélica não procura restabelecer um ponto de equilíbrio dum sistema desequilibrado. Não se trata de pôr mais riqueza no prato dos pobres a fim de equilibrar uma balança que sempre pendeu mais para o lado dos que mais têm. Não defende que os menos favorecidos venham a gozar dos privilégios do mundo rico, identificando, assim, Reino de Deus com sociedade de bem-estar.
O que a antítese primeiros-últimos propõe é deslocar o fiel da balança, manejar para que a medida resultante seja favorável aos últimos. Propõe uma viragem coperniciana que desloque o centro de gravidade do sistema social, arrastando, consigo, os seus planetas associados: económicos, relacionais, políticos, culturais, etc., de modo que toda a constelação orbite em torno das necessidades e prioridades dos mais desfavorecidos.
Que os últimos sejam os primeiros e que os primeiros sejam os últimos significa assumir que os empobrecidos marquem o ritmo do nosso progresso. Implica que aceitemos que os primeiros terão que ir atrás de coxos, estropiados e cegos. Obriga a abrandar a nossa marcha, renunciando ao sprint para o qual nos treinamos nesta sociedade de êxito, de modo a que todos e todas cheguemos juntos à meta.
Obriga a pôr de quarentena os sucessos convertidos em dogmas inquestionáveis do nosso modelo de desenvolvimento. Reclama, por último, estarmos dispostos a renunciar a não poucas doses de riqueza que, com unhas e dentes, defendemos como se direitos inquestionáveis.
O Reino de Deus não se reduz a pequenos ajustes reformadores: vai mais além. Pretende refundar a ordem social. Propõe, nas palavras de Ignacio Ellacuría, «inverter a história»:
«O que falta fazer é imenso. Só utópica (distópica, diríamos nós) e esperançosamente se pode acreditar que é possível, com todos os pobres e oprimidos do mundo, ter coragem para reverter a história, subverter a história e lançá-la noutra direcção.»[2]
Para lá da moral. Injustiça estrutural
As utopias / distopias evangélicas situam-se para lá do âmbito moral, não procuram premiar os pobres virtuosos e castigar os ricos invejosos. Denunciam uma situação que é prévia a qualquer acção: a mera existência de riqueza num contexto de pobreza generalizada é uma situação escandalosa que exige ser alterada. Como dirá Jon Sobrino:
«Mesmo que por hipótese a coexistência de ricos e pobres não fosse devida à injustiça, tal facto exprime um monumental descalabro e um fracasso fundamental da família humana.»[3]
Segundo os dados do último relatório para o Desenvolvimento Humano da ONU, uma criança que nasça na Noruega tem uma esperança de vida de 81,1 anos. Se nasce na República Democrática do Congo, a sua expectativa reduz-se para 48,4 anos.[4] Trata-se do pecado “original-originante” que deve ser redimido.
Os exegetas neo-testamentários coincidem ao afirmar que os termos hebraicos e gregos utilizados, nas bem-aventuranças de Lucas ou de Mateus, para falar de pobres, famintos e infelizes referem-se a situações estruturais e não a desgraças pontuais. Os pobres (ptojoi) são aqueles que têm que mendigar para sobreviver: suas vidas dependem de outros. “Famélicos” seria a melhor tradução do termo grego (peinontes) que se refere a famintos – trata-se de uma fome profunda e prolongada. E pranto não se identifica com uma pena passageira, mas com sofrimento profundo fruto duma marginalização permanente.
Diante destas situações de indigência estrutural, os ricos, os satisfeitos e os felizes são aqueles que possuem grandes quantidades de bens materiais, são os que estão fartos e plenamente satisfeitos, são os privilegiados que ignoram o sofrimento alheio.[5] As situações estruturais pobreza e riqueza, fome e saciedade, sofrimento e auto-satisfacção são chamadas a reverter-se (utópica ou distopicamente, segundo os destinatários).
Para lá do direito
As distopias evangélicas também rebentam com o horizonte ético-jurídico dos Direitos Humanos. Ao enraizarem-se nas condições materiais que negam a possibilidade real dos mais débeis do planeta a ter direitos básicos, as distopias evangélicas anulam a retórica idealista que, a partir do norte satisfeito, começa já a reivindicar direitos fundamentais de “quinta geração”, enquanto que três quartas partes da população mundial nem sequer acedeu a direitos civis e sociais de primeira geração.
Como investir energias a exigir que o acesso à internet seja considerado um direito humano, quando 25.000 crianças morrem diariamente, porque ninguém respeita o seu direito básico a alimentarem-se. As prioridades dos mais desfavorecidos obriga a estabelecer hierarquias e, assim, exigem que se renuncie voluntária e temporariamente a direitos inquestionáveis, do ponto de vista formal.
Quando o rei David ordena a Urias, o hitita, que descanse em casa após a batalha, este fica-se a dormir às portas do palácio e justifica a sua acção nestes termos:
«A Arca de Deus habita numa tenda, assim como Israel e Judá. Joab, meu chefe, e seus servos dormem ao relento, e eu teria coragem de entrar na minha casa para comer e beber e dormir com a minha mulher? Pela tua vida, pela tua própria vida, não farei tal coisa!» [2 Sm 11:8-11]
Urias tem todo o direito do mundo em ir descansar a casa, mas renuncia a isso: banquetear-se, enquanto os oficiais dormem ao relento?
Nos seus últimos dias de vida, Madre Teresa de Calcutá pediu para ser atendida com os mesmos meios que eram postos à disposição dos pobres a quem ela se dedicou a vida toda:
«Se os pobres não podem aceder ao luxo dos tratamentos, não há razão para que eu disponha deles. Deixem-me morrer como aqueles a quem sirvo, pobres no meio de pobres.»
Madre Teresa tinha possibilidades e direito a ser atendida pelos melhores cardiologistas da Índia, mas… «banquetear-se enquanto os oficiais dormem ao relento?»
Universalidade a partir dos últimos
As distopias evangélicas não negam a universalidade da mensagem evangélica. Jesus anuncia a boa notícia a pobres e estropiados, bem como ao publicano Zaqueu (Lc 19:1-10). A sua preferência pelos últimos não é excludente, tal como demonstra a sua relação de proximidade com os poderosos: come com fariseus notáveis (Lc 14:1) e com pecadores (Mc 2:15ss; Lc 15:2). Não há dúvida que, tal como refere Rafael Aguirre Monasterio, ainda que o Reino de Deus seja para todos, apenas para os pobres é que ele é boa notícia (Lc 4:18; 6:20; 7:22); os ricos vão recebê-lo como má notícia (Lc 6:24-26; Mc 10:17-27).
«Diante de Jesus e o Reino, certamente que todos estamos necessitados de conversão, mas nem todos os interesses e nem todas as situações são afectadas da mesma maneira.
«Às vezes, isto é difícil de ser entendido e não poucas vezes se procuram interpretações moldáveis. Mas, já o próprio Jesus estava bem consciente do carácter escandaloso do anúncio que fazia do reino: «… a boa notícia é anunciada aos pobres; e feliz aquele que não se escandaliza comigo.»[6] (Lc 7:22s; Mt 11:9s)
José Laguna
Teólogo e músico
in Cuadernos Cristianisme i Justicia, nº 181, Novembro de 2012.
[1] Carlos Bravo, «Jesus de Nazareth» em I. Ellacuría y J. Sobrino, Mysterium Liberationis. Conceptos fundamentales de la teologia de la liberación I, Madrid, Trotta, 1994.
[2] Ignacio Ellacuría, «El desafio de las mayorías pobres», Estudios Centroamericanos, 493-494 (1989), p. 1078.
[3] Jon Sobrino, «Jesus y la justicia. Reflexiones para Occidente», en AA.VV., El seguimiento de Jesus, Fundación Santa Maria, Madrid, 2004, p. 206.
[5] Cf. Gustavo Gutiérrez, «Pobres y opción fundamental», en Ellacuría y Sobrino, Mysterium Liberationis…, o.c., p. 311-312.
[6] Rafael Aguirre Monasterio, Reino, Parusia y Decepción, Madrid, Fundación Santa Maria, 1984, p. 19.