O Senhor disse:«Já que são tão orgulhosas as mulheres de Sião: andam com a cabeça emproada, lançam olhares desavergonhados, caminham com passo afectado, fazem soar as argolas dos seus pés», o Senhor tornará calvas as suas cabeças, o Senhor desnudá-las-á. Naquele dia, o Senhor lhes tirará todos os seus adornos: os anéis, os colares, as lúnulas, os brincos, as braceletes e os véus, os lenços da cabeça, as argolas dos pés e os cintos, os frascos de perfumes e os muletos, os anéis dos dedos e argolas do nariz, os vestidos de festa, os mantos, os xailes e as bolsas, os espelhos e as musselinas, os turbantes e as mantilhas.
Então, em lugar de perfume haverá mau cheiro; em vez de cinto, uma corda; em vez de cabelos entrançados, a calvície; em vez de vestidos sumptuosos, um saco; em vez da beleza, a vergonha. Os teus homens cairão mortos à espada, e os teus soldados tombarão no combate, hão-de entristecer-se e gemer as tuas portas; e, desolada, sentar-te-ás por terra. [Isaías 3:16-26]
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Como o luxo resiste à crise em Portugal
O desafio chegou à Amorim & Irmãos no Verão de 2010.
Um mergulhador francês descobrira 168 garrafas de champanhe Juglar e Veuve Clicquot do início do século XIX, nos destroços de um navio naufragado no mar Báltico. Bastou retirar a rolha à primeira para se perceber que a temperatura e a pressão da água tinham mantido todas as propriedades do vinho, incluindo o gás. Para continuar a preservá-las, bastava substituir as rolhas. E nenhum outro fornecedor garantia aos técnicos da Veuve Clicquot (do grupo Louis Vuitton) o mesmo nível de qualidade da Amorim, com quem trabalhavam há vários anos.
Foi preciso criar rolhas de raiz ─ as medidas dos gargalos eram diferentes das actuais. E até a engarrafadora manual saiu do museu da empresa, porque facilitava o encaixe nas garrafas antigas. Todos os passos foram acompanhados de perto: o gestor do produto Ernesto Pereira levou o material para França e assistiu no local à colocação das rolhas para evitar que se danificasse o achado.
“O segmento de luxo deverá representar entre 5 e 7% da produção da corticeira”, diz à SÁBADO Carlos Jesus, director de marketing da holding de Américo Amorim. Além dos vinhos, a empresa fornece componentes à Ferretti, líder em iates de luxo, e à Bentley, fabricante de automóveis; produz revestimentos para jactos privados e protótipos da Mercedez como o F700; e já enviou cortiça para sapatos Christian Louboutin, Stella McCartney e Dior. Em 2010, a Dalmore Trinitas, uma das melhores marcas de whisky do mundo, encomendou três rolhas para selar três garrafas de uma edição limitadíssima de 1964. A empresa acompanhou o processo durante seis meses e, mais uma vez, o gestor deste projecto deslocou-se propositadamente à Escócia para entregar a encomenda.
As garrafas foram postas à venda por 125 mil euros: duas venderam-se em menos de 24 horas. Não adianta querer saber mais: um contrato de sigilo impede a Amorim de divulgar o valor cobrado, bem como todos os detalhas técnicos.
Esta é uma exigência comum das marcas de luxo. O joalheiro José Carlos Santos também assinou um acordo de 16 cápsulas com um dos maiores produtores franceses de jóias. “Obriga-me a silêncio absoluto sobre os nomes das marcas e proíbe-me de reproduzir as peças que faço para eles”, diz à SÁBADO.
Mas a primeira encomenda feita ao empresário de Azurém (um anel de ouro, brilhantes e pérolas) não correu bem. Foi chamado à sede da empresa, em Paris. Lá , com fotografias do anel ampliadas ao microscópio, o gerente, o joalheiro, o polidor, o cravador de pedras e o fundidor mostraram-lhe várias imperfeições e erros invisíveis a olho nu. Todos os métodos de trabalho da José Carlos & Filhas tiveram de ser revistos ─ passaram um ano a fazer testes sem receber um cêntimo mas nunca mais houve reclamações.
A produção constante para as maiores marcas de joalharia obrigou José Carlos Santos a alguns investimentos: comprou microscópios potentes e foi a França contratar uma pessoa só para escolher pedras preciosas e controlar a qualidade do trabalho. “Quando me vêem chegar dizem-me, a brincar, que vem lá a troika”, conta Jaime Emílio, responsável pelo acompanhamento da produção na empresa. A exigência compensa: a José Carlos & Filhas exporta 80% para marcas de topo.
Na Curtumes Fabrícios, em Seia, as preocupações são semelhantes. Quem entra na antiga sala de reuniões nem vê as paredes: o espaço está coberto com amostras das peles produzidas nos últimos dois anos. Todas menos uma ─ a pele de borrego tingida de azul em exclusivo para a marca francesa Lancel, que ninguém pode ver. “Está fechada numa gaveta. Assinámos um contrato a garantir que não a mostrávamos”, diz à SÁBADO o administrador João Pedro Santos.
Desde 2007 já 19 companhias tiveram amostras da Fabrícios em cima da mesa dos seus estilistas: a Tom Ford, Givenchy e a Kenzo nunca as chegaram a usar, ao contrário da Louboutin, a marca conhecida pelos sapatos de sola vermelha[1], que aqui comprou peles para oito modelos de carteiras diferentes. Entre todos os interessados, João Pedro não esquece o caso de uma senhora que pediu informações sobre várias peles e acabou a marcar uma reunião para as 8h 30m da manhã do dia seguinte, na sede da Hermès, em Paris.
Karl Lagerfeld foi um dos primeiros estilistas mundiais a fazer encomendas à Fabrícios ─ prefere cores berrantes, como o rosa-choque. Mas nenhuma marca é tão exigente como a Lancel. “Deu-nos um caderno de encargos com duas páginas para testarmos as peles”, adianta José Pedro Santos. Um dos testes consiste em colocar um peso sobre um pedaço de pele e raspá-lo várias vezes para confirmar que não tinge a peça. Quando as peles ficam prontas, um inspector da Lancel desloca-se à fábrica e passa três ou quatro dias a verificar cada lote antes de a encomenda ser enviada para os países onde se faz o produto final ─ sobretudo Argélia, Tunísia e Turquia.
Só 5% das peles que chegam à Fabrícios têm qualidade suficiente para este segmento. E até o tamanho das cabras é importante: um animal com 1,20 metros tem os poros mais dilatado do que um mais pequeno. Numa das encomendas da Lancel, que pesa 20% da facturação anual, isso foi um problema: as carteiras fizeram tanto sucesso que a marca encomendou sete mil metros quadrados de pele ─ a dimensão dos poros teve que ser reproduzida em laboratório, com produtos químicos.
As peles produzidas para marcas de luxo demoram três vezes mais a estar prontas, mas rendem mais ─ estas empresas pagam 50% acima do mercado. De qualquer forma, uma mala vendida por 700 euros, não terá custado à marca mais de 60 euros. Nem tudo é lucro. “Uma marca que faz o lançamento de um novo perfume pode investir 70 a 100% da facturação prevista desse perfume”, explica Mónica Seabra Mendes, docente do Programa Executivo da Católica na área do Luxo.
Inês Branco, da Empresa Têxtil Nortenha, nem sempre sabe o preço final dos pólos e das T-shirts que fabrica para a Thomas Pink, do grupo Louis Vuitton, e para o criador norte-americano Adam Kimmel. Recentemente, cruzou-se por acaso com um vestido da Jonathan Saunders numa loja on-line ─ custava mais de 500 euros, mas tinha saído de Vila Nova de Famalicão por apenas 65 euros.
Manter satisfeitos os responsáveis pelas compras é um dos truques de Inês. “O nosso contacto na Levi’s mudou-se para a Thomas Pink, em Inglaterra, e pediu-nos para produzirmos para eles, e dali passou para a Reiss, que já vestiu Kate Middleton e Michelle Obama.”
Sempre que um cliente consulta a Têxtil Nortenha, Inês contacta os diferentes fornecedores à procura de malhas adequadas. Um dos parceiros a quem recorre frequentemente é a Luís Azevedo & Filhos, de Guimarães que já colocou malhas em colecções das casas Dior, Balenciaga, Prada e Yves Saint Laurent. A participação na Première Vision, a mais importante feira de têxteis para vestuário, é fundamental para impressionar o mercado.
A administradora Sílvia Azevedo reserva sempre um stand de 20 metros quadrados para expor as novidades ─ três dias custam-lhe 13 mi euros, mas o investimento compensa. Foi numa das feiras que um responsável da Balenciaga a abordou. O representante da marca espanhola perguntou-lhe se era possível alterar a cor e o padrão de um devoré preto ─ malha simples com padrões de transparências conseguidas através de enzimas. A Azevedo produziu a malha em rosa-vermelho.
Portugal não é caso único. Mais de 70% dos produtos de luxo são feitos na Europa; o sector já representa 2,6% do PIB da região e vai continuar a crescer ─ mais de 7% ao ano. É, aliás, um dos poucos que resiste à crise.
A fábrica La Perla em Valadares é a única unidade europeia fora de Itália. Há 22 anos que a marca de lingerie de luxo se instalou perto de Vila Nova de Gaia. E se nos primeiros tempos a casa-mãe não permitia a confecção do artigo completo, agora confia alguns dos trabalhos mais complexos às costureiras portuguesas. As quase 200 máquinas de costura utilizadas não são de última geração. Não é importante: “25 a 50% das peças são feitas à mão”, explica à SÁBADO António Pimentel, director da fábrica. A complexidade dos artigos é tão grande que mesmo os básicos demoram quatro ou cinco vezes mais a produzir do que os equivalentes de gama média. Em Portugal são produzidos todos os anos 250 modelos diferentes, num total de meio milhão de peças ─ a mais cara custa 1.700 euros.
Os materiais escolhidos pela marca (algodões extra-finos, sedas de chantilly e malhas de caxemira) são tão delicados que obrigam a cuidados especiais. Os vidros da fábrica têm protecção contra raios ultra-violetas, as mesas de trabalho são polidas para não haver arestas, e nalguns casos as costureiras retiram todos os anéis e põem creme nas mãos várias vezes por dia para não danificarem as peças. Mais: a fábrica contrata modelos todas as semanas para garantir que os materiais não picam ou provocam comichão e que os aros dos sutiãs não magoam.
Mas nem sempre trabalhar para marcas de luxo significa um prazo maior. “Queremos as peças mais cedo para terem mais tempo para fazerem a verificação da qualidade”, explica Jorge Frade, director da Unidade de Cunhos e Cortantes da Autoeuropa, responsável por produzir moldes para peças de carros (como pára-choques) para marcas como Bentley, Porsche ou Lamborghini. “Num projecto normal fazemos um molde de cada vez, de forma sequencial. Nestes, temos que fazer dois ou três moldes em simultâneo”, diz.
Estes carros precisam de peças feitas à medida e a única garantia de que ficam exactamente iguais é serem feitas com o mesmo molde. As fugas de informação são outra preocupação. “Na nossa unidade, apenas quatro pessoas têm acesso aos dados desta peça [uma calha de água para a Bentley]”, aponta Jorge Frade. “Se fosse uma peça normal seriam 10 a 15 pessoas. Não está escrito no contrato, mas nós assumimos como importante”. Quando a SÁBADO lhe pede mais detalhes sobre o automóvel, responde: “É um modelo que ainda vai sair e ficamos por aqui.” Nem mais uma palavra.
Revista SÁBADO, 21-27 de Junho de 2012.
Por Rita Garcia e Patrícia Silva Alves