Há 50 anos - 11:OUT:1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II
A CONTRA-REFORMA (LITÚRGICA) CONTINUA
A 4 de Dezembro de 1963 assinou-se e publicou-se o primeiro documento da Concílio Vaticano II, a Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a reforma litúrgica. A sua comemoração, mais do que ocasião para lançar foguetes, afigura-se-nos como um momento de preocupação.
De facto, existe hoje em muita gente a convicção de que o ensinamento da constituição conciliar sobre a liturgia do Vaticano II foi explorado apenas em uma ínfima parte, ficando a maioria por desenvolver. […]
Muitos pensam que a nova situação social e eclesial (passaram já 40 anos![1]) exigiria adaptações, ou seja, uma recepção viva. Porém, é muito evidente que Roma, realizando uma recepção ao pé-da-letra e por vezes contra a letra, trava a renovação eclesial e não quer enfrentar os processos pendentes. Podem ser dados inúmeros exemplos. […]
A reforma da reforma e seus motivos
No pólo oposto, existem outros que se lamentam da pirosice da liturgia renovada e se excitam com a «mística» da liturgia pré-conciliar. Estes desejam voltar à «antiga» liturgia: algumas nações apropriam-se da permissão excepcional concedida à Fraternidade de S. Pedro para usar o rito tridentino.
Os esforços restauracionistas da liturgia significam um «regresso» geral ao tempo anterior ao Concílio, ou, como alguns protagonistas desta corrente o designam, uma «reforma da reforma». Os traços deste restauracionismo começaram a permear os documentos litúrgicos oficiais. […]
Um dos sinais distintivos da «reforma da reforma» é a rejeição da modernidade enquanto aplicável à liturgia. Este rejeição funda-se na convicção de que a cultura e a arte modernas, por natureza essencialmente profanas e secularizadas, são incapazes de transmitir a transcendência e de simbolizar o sagrado. Por isso, procuram-se, no campo da liturgia, figuras expressivas do transcendente que provenham do passado.
O restauracionismo litúrgico é igualmente movido pela sensação de que é necessário corrigir certas tendências que caminham para o herético, as quais desde o Concílio que se vêm infiltrando na Igreja através de novas práticas litúrgicas. […] De entre as várias preocupações que são referidas, podemos enumerar três exemplos principais: o decréscimo da fé na presença real; a desvalorização da identidade presbiteral; e a perda da dimensão escatológica.
Os defensores do restauracionismo[2] estão fortemente empenhados em sublinhar que a presença real e a correspondente adoração das espécies eucarísticas têm vindo a ser substituídas pela participação na celebração como função primeira dos crentes.
Quanto ao papel presbiteral, procura-se, entre os restauracionistas, desvalorizar o sacerdócio dos crentes[3] e sublinha-se o papel do presbítero que actua em nome de Cristo cabeça. […]
Quanto ao não se dar, na celebração, espaço apropriado à dimensão escatológica, ou seja, à relação com a liturgia celeste, critica-se que só se acentua a realidade da comunidade celebrante aqui e agora e a ligação da celebração aos problemas do mundo.
Modelo de celebração e modelo de Igreja
A Constituição deixou claro que a liturgia é a mais importante auto-representação, bem como a realização central da vida da Igreja. Certamente, não é a única. Porém, é a fonte donde emana toda a força e o cume para onde tende a actividade da Igreja (nº10). […]
Há que reconhecer que não há nenhuma decisão tão directamente cheia de consequências para a vida espiritual das comunidades eclesiais como a reforma da celebração. Eclesiologia e liturgia são inseparáveis.
Na verdade, mesmo que sejam passados 40 anos da aprovação da constituição Sacrosanctum Concilium, só aos poucos é que se tomou consciência de que essa constituição só poderá ser compreendida tendo como pano de fundo a renovação eclesiológica. Na Constituição sobre a liturgia está o núcleo da Constituição sobre a Igreja que, no ano seguinte, seria aprovada. Donde resulta que, pelo facto de a liturgia e a Igreja estarem vinculadas entre si, a reforma litúrgica acarreta necessariamente a reforma e a renovação completa da Igreja toda.
O princípio atrás referido vale também para o movimento tradicionalista. Quem quer a chamada ‘missa tridentina’ tem também uma clara imagem do tipo de Igreja que quer: igreja ordenada uniformemente de cima a baixo, o clérigo como vir Dei, o santo homem de Deus, sem o qual o leigo apenas pode obter alguma participação na graça que os sacramentos transmitem, graça que o clero administra. […]
Neste movimento, reconhece-se, de modo dramático, a ligação insolúvel entre liturgia e eclesiologia: quem rejeite globalmente a reforma litúrgica não pode estar de acordo com a reforma eclesial no seu todo e, consequentemente, tem de rejeitar todo o Vaticano II.[4]
Significado eclesial da reforma litúrgica
Compreende-se assim como a renovação da liturgia fica afectada se a eclesiologia do Concílio for lamentavelmente interpretada de forma unilateral por alguns representantes concretos da Cúria romana, que a vêm através duns óculos a que chamam ‘comunhão hierárquica’.
Para alguns analistas da actual crise intra-eclesial, uma das questões-chave para a compreender está na reforma litúrgica: ao constituir-se no centro da renovação da Igreja, a reforma litúrgica contribuiu para o crescimento da consciência do «ser sujeito» de todos os baptizados, isto é, contribuiu para uma concepção totalmente transformada da Igreja e da comunidade. E isso mete muito medo aos que detêm o poder espiritual.
Perante todas as tentativas de travagem, há que dizer com muita clareza que não se pode falar de projecto de evangelização, nem sequer pretender ter aí algum êxito, enquanto a liturgia renovada não corresponder a um sujeito eclesial renovado. […]
Mais. Uma reforma litúrgica que olhe a comunidade como sujeito da acção litúrgica não é concebível sem uma reforma concomitante das estruturas eclesiais e comunitárias.
Em suma, a reforma litúrgica terá alcançado o seu fim e o seu sentido essencial se se converter no núcleo de uma reforma permanente da Igreja e da comunidade. Quarenta anos depois do Concílio não é possível garantir que essa meta se tenha alcançado. […]
O Concílio encarregou a Igreja da reforma litúrgica, e, apesar das dificuldades imprevisíveis, entendeu-a como uma tarefa permanente e nunca concluída. Se a Igreja quer ser fiel ao Concílio, as reformas litúrgicas realizadas até agora terão de ser consideradas apenas como prólogo.
Não podemos ignorar que, precisamente, em Roma essa fidelidade não é levada à prática. Peter Hünermann[5], professor de Teologia Dogmática e de História dos Dogmas na Universidade de Tubinga, director da última edição de Denzinger, escrevia há alguns anos atrás:
«Não conheço nenhum paralelo histórico para semelhante suspensão das conclusões de um Concílio legítimo».[6]
Daqui se conclui que o processo de recepção do Concílio Vaticano II não só não foi finalizado como continua pendente. […]
Digamo-lo com todas as letras: aquilo que com a «reforma da reforma» está em jogo é se ainda permanece válida, para os nossos tempos e para o futuro, a orientação peculiar do Concílio Vaticano II, quer sobre a Igreja no mundo de hoje, quer sobre a pessoa humana como crente em Deus e celebrante diante de Deus.
Porque se reformou a liturgia?
Constatou-se que, quer a celebração da Igreja, quer a pessoa humana, estão submetidas a condicionalismos históricos e, por isso, precisam de ser sempre repensadas. A liturgia, seja ela antiga, medieval ou barroca, está vinculada à história. Não podemos dizer que o homem da era industrial, da era técnica e das estruturas sociologicamente condicionadas por essa era, seja incapaz de actos litúrgicos[7]. A questão está em saber como têm de ser celebrados os sagrados mistérios para que o homem de agora possa encontrar-se, neles, com a sua verdade hodierna. […]
Decisiva é a tensão entre a história salvífica de Deus e, por outro lado, a humanidade e as condições históricas nas quais o ser humano está imerso. Só assim a Igreja poderá partilhar as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias da humanidade de hoje, tal como diz a Gaudium et Spes. […]
A tentativa, por parte do Concílio, de resolver esta questão consistiu em reconhecer que a vida celebrativa exige uma renovação fundamental, a qual não pode acontecer sem que antes se olhe para a pessoa humana. Isto não tem nada que ver com a fidelidade esterilizante à letra do rito.[8] A fidelidade às tradições rituais e aos textos originais não chega. É necessária uma tradução [da vida celebrativa] para dentro do mundo vital dos seres humanos, da forma a mais viva possível, de modo a que os próprios seres humanos se possam reconhecer nela, bem como nela se possam reflectir os aspectos específicos da vida que eles vivem.
Assim se define a finalidade que a reforma litúrgica terá e também a missão permanente da Igreja: pôr em relação, de modo sempre renovado, a riqueza da fé com as experiências humanas e o mundo em que vivem.
Portanto, a reforma da liturgia, tal como a concebe o Concílio, postula uma renovação mais ampla, a qual exige um repensar geral da identidade da Igreja e da sua relação com o mundo. Repensar a Igreja e a sua relação com o mundo deve inscrever-se num amplo processo de adaptação das instituições eclesiásticas às exigências do tempo presente. […]
De como se amordaça a recepção criativa do Vaticano II
Graças à publicação de variadas fontes da história do Concílio, tais como as notas estenografadas do (…).
Joaquin Perea
Joaquin Perea [Barakaldo, 1932], presbítero diocesano de Bilbao, foi formador no Seminário de Derio e professor de Teologia Fundamental e de Eclesiologia nesse centro e na Faculdade de Teologia da Universidade de Deusto. Posteriormente, foi director do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao.
Este Artig-[9] foi escrito pelo 40º aniversário da publicação da Constituição conciliar sobre a reforma litúrgica.
FONTE: (traduzido de) «Clamor contra el Gueto – textos sobre la crisis de la Iglesia », Trotta, 12012, pp. 130-135.
LINKS:
«KIKOS» na PRAÇA CIBELES – O EVANGELHO DE ARGUELLO
«O CRISTIANISMO COMO ESPECTÁCULO» – JOSÉ ALVILARES
A MÚSICA NA «LITURGIA DO ESPECTÁCULO» - J.M.J., MADRID 2011
BENTO XVI AMIGO DOS NEOCATECUMENAIS, ET AL. – 3 CASOS DE ESTUDO
[1] Este Artigo foi editado em 2003.
[2] Veja-se a fixação por gestos grandiosos (p. ex., a colocação, na torre da catedral de Madrid, da custódia gigante, com a hóstia; a ‘via crucis’ ao longo da avenida, preferencialmente em latim; a cerimónia pública de “envio em missão”, na Praça Cibeles, de centenas de jovens ‘kikos’ para converter a China, no dia seguinte à clausura das JMJ…) que ocorreram durante os dias das Jornadas Mundiais da Juventude em Madrid, 2011. [N. do E. deste blog]
[3] Segundo a expressão do Concílio, ‘o sacerdócio comum dos fiéis’. Ou seja, todos os cristãos participam do único sacerdócio de Cristo. (LG 10,1) [N. do E. deste blog].
[6] P. Hünermann, «Droht eine dritte Modernismuskrise?»: HK 43 (1989), pp. 43s.
[7] Como também não se pode dizer que o Homem da era pós-moderna esteja desprovido de capacidades simbólicas ou rituais, ou que esteja vazio de densidade existencial e que a sua sociedade seja carente de símbolos, gestos e rituais, pelo que a Igreja deverá ser, de novo, a municiadora dessa simbólica outrora evacuada…. [N. do E. deste blog]
[8] Conheço mais do que um caso de padres que ‘se passaram’ por questões relativas a: mobilidade da mesa-eucarística, tipo de farinha para confeccionar o pão-eucarístico, e por aí adiante. [N. do E. deste blog]