«A IGREJA CORRE O RISCO DE SE CONVERTER NUMA SUB-CULTURA» [arcebispo Albert Rouet]
Lamentavelmente, na Igreja católica portuguesa, quanto à «actualização» da experiência do movimento iniciado por Jesus de Nazaré, a cultura teológica cristã, sobretudo a metodologia pastoral, são muito deficitárias, quando não divergentes da de Jesus. O dinamismo profético e radical do Evangelho, bem como a sua “pegada existencial” são praticamente ignorados / secundarizados por parte de leigos, padres e bispos.
Podemos resumir a duas, as formas concretas de os leigos serem igreja católica em Portugal:
.uma, massiva e pública, pontual, datada, feita de ajuntamentos de multidões (movimentos laicais, festivais, procissões, santuários), geograficamente não vinculada ao mapa paroquial;
.uma outra, que se centra à volta da simbólica e da liturgia (nos templos), partindo depois para o louvor a Deus segundo uma mística do transcendente a partir do mistério inominável (ligada à paróquia ou a capelanias).
Sem relevância (inexistente?), poderá existir uma terceira (provavelmente, ultra-minoritária: LOC, JOC, outros?), que parte da atenção à revelação de Deus na História através das suas contradições / tensões, procurando ler o acontecer (o revelar) da Salvação de Deus-Pai oferecida ao seu Povo na Face do Servo de Yahvé (4º Cântico do Servo: Is 52:13-15).
Há muito que venho insistindo nisto: em Portugal, predominam as paróquias e, nelas, não há comunidades. Há, sim, «gente que vai à missa» para cantar e para ouvir o Padre. Por «comunidade» entendo uma experiência existencial de «acolhimento integral» de cada um (palavra, incluída), de «partilha de destino» (“carregarmo-nos uns aos outros” – Jon Sobrino, sj) e de «celebração do perdão» (na linha da última Ceia de Jesus com os seus amigos).
A questão prática é: que metodologia para o fazer? No concreto, como o fazer? Acerca deste ponto, vários autores já foram editados nesta página Web, «A SALA DE CIMA» (p. ex., Marcel Legaut - 06:IX:2011; José Comblin, Leonardo Boff, Segundo Galileia - 9:IX:2012; Xabier Pikaza – 7:X:2012, etc.). Segue-se o ex-arcebispo de Poitiers, Albert Rouet.
A questão de fundo é: quais são os “materiais de construção”? por quais começar? como os dispor? que orientações globais? que prioridades?
Aquilo que vemos é que, uns refugiam-se na «liturgia» (um esquema pré-fabricado, onde o rebanho "mergulha a cara" no canto e lê aquilo que lhe foi predestinado ler ou ouvir ler). Outros defendem-se com «conferências» e conferencistas-super star, outros reduzem tudo a «espaços de oração» (monacais) em que todos aceitam dissolver-se num silêncio mudo, sacral e individual, em que o conceito de Povo de Deus é substituído pelo ‘indivíduo/a consciência a sós com Deus’.
Os modelos «comunidade local» (Albert Rouet), «comunidade humanista de base» (11:X:2011, Aloysius Pieris, sj), as «pequenas comunidades» do futuro (06:IX:2011, Marcel Legaut) ou «comunidades eclesiais de base - CEB» (América Latina) são a via, o caminho que a sociedade do nosso tempo nos obriga a adoptar. Esses modelos têm todos, como metodologia, o seguinte (e por esta ordem):
1º Atenção à realidade histórica - Que está a acontecer? Como interpretar? Qual o sentido histórico disso? Quais as causas pessoais e políticas? Quais as consequências pessoais e sociais? Que questões éticas se levantam? De que lado nos situarmos?
[Um Deus que sela um pacto contra os tiranos! é um desafio à Igreja: «Tomar o controlo dos pobres - assistencialismo - ou unir-se a eles na luta pela emancipação»?] Ex 1-2; Dt 26:5-10; Dt 4:37-39
2º Atenção ao “próximo” - Que está a acontecer na realidade em que me insiro? Que se passa com os mais desfavorecidos, com os mais frágeis, com os excluídos do sistema? Que posso fazer? De quem me faço “próximo”?
[“Próximo” é aquele de quem me abeiro e carrego comigo e não aquele que se abeira de mim e a quem dou a esmola: Lucas 10:33] Mc 7:24-37; 8:1-10
[“Próximo” é aquele de quem me abeiro e carrego comigo e não aquele que se abeira de mim e a quem dou a esmola: Lucas 10:33] Mc 7:24-37; 8:1-10
3º Como o exemplo de Jesus pode ser um modelo de Novidade Radical, uma Boa-Notícia? (“Memória do Ev-angelio de Jesus”; alargar e radicalizar um horizonte de humanidade-salvífica) Jo 4:29.42; Lc 24:33-35
4º Como abrir o meu coração e confessar? CLICAR AQUI Como pedir perdão, perdoar e ser perdoado para ser salvo? Como reforçar o meu compromisso de profeta do Reino?
(não há Oração individual, nem Confissão Auricular, nem Perdão Individual sem comunidade de comunhão baptismal) Lc 7:36-50
(não há Oração individual, nem Confissão Auricular, nem Perdão Individual sem comunidade de comunhão baptismal) Lc 7:36-50
Este desafio ─ construir «comunidades de base» ─ permanece urgente
(com aquela urgência das coisas perdidas: dracma, filho, ovelha…).
Urge regressar a Jesus de Nazaré, ao seu 'evangelho' e Bem-aventuranças, e aos primeiros passos pós-pascais da Igreja nos Actos dos Apóstolos.
(com aquela urgência das coisas perdidas: dracma, filho, ovelha…).
Urge regressar a Jesus de Nazaré, ao seu 'evangelho' e Bem-aventuranças, e aos primeiros passos pós-pascais da Igreja nos Actos dos Apóstolos.
[pb]
O arcebispo de Poitiers, Albert Rouet, é uma das figuras mais livres do episcopado francês. O seu livro J’aimerais vous dire (“Gostaria de vos dizer”) é um best-seller neste tipo de livros. Vendeu mais de 30.000 exemplares e recebeu o prémio 2010 dos leitores de «La Procure » (a maior livraria católica em França). Trata-se de um livro de entrevistas através das quais lança um olhar muito crítico sobre a Igreja católica. Em Fevereiro de 2011, ao completar setenta e cinco anos, tal como está previsto, apresentou a sua demissão. Em menos de duas semanas, facto absolutamente inédito, ela foi aceite por Roma.
Le Monde [LM] – A Igreja católica tem vindo a ser, desde há meses, sacudida pela revelação dos escândalos de pedofilia em vários países europeus. Surpreendeu-o?
Albert Rouet [AR] – Antes de mais, uma precisão: para que haja pedofilia não necessárias duas condições: uma perversão profunda e poder. O que quer dizer que todo o sistema que seja fechado, idealizado, sacralizado é um perigo. Na medida em que uma instituição – a Igreja, incluída – se constitua sobre um direito privado e se pense como instituição poderosa, então são possíveis as derivas financeiras ou sexuais. É o que esta crise [a «crise pedófila] revela e isso deve fazer-nos regressar ao Evangelho: a debilidade de Cristo é constitutiva da forma de ser Igreja.
Em França, a Igreja já não tem esse tipo de poder e por isso estamos frente a faltas individuais, graves e condenáveis, mas não diante de uma questão sistémica [estruturante].
Le Monde – Estas revelações acontecem depois de várias crises que puseram à prova o pontificado de Bento XVI. O que é que aflige assim tanto a Igreja?
Albert Rouet – Desde há já algum tempo que a Igreja está sob tempestades internas e externas. Temos um Papa que é mais um ‘teórico’ que um historiador. Como professor que foi, continua a pensar, que, quando um problema está bem equacionado, está meio resolvido. Mas, na vida, nada é assim: na vida temos que enfrentar a complexidade, a resistência do real. Nas nossas dioceses, isso é muito claro: fazemos o que podemos. A Igreja tem dificuldade em situar-se num mundo agitado como o de hoje. E esse é o núcleo do problema.
Duas coisas me preocupam na actual situação da Igreja. Nela existe uma espécie de congelamento da palavra. Portanto, qualquer tipo de questionamento da exegese ou da moral são condenados como blasfemos. Colocar questões é algo que, lamentavelmente, já não acontece e isso é uma pena. Por outro lado, reina na Igreja uma atmosfera de desconfiança doentia. A instituição tem pela frente o centralismo romano que assenta sobretudo numa rede de denúncias. Certas correntes passam a vida a denunciar as tomadas de posição de certo bispo, elaborando relatórios, denunciando este e aquele, tomando notas contra outros. E, com a internet, este fenómeno ainda se amplifica mais.
Por outro lado, há na Igreja uma evolução paralela à da sociedade. A sociedade reforça-se com mais segurança e mais leis; a Igreja, com mais identidade, mais decretos, mais regulamentos. Protegemo-nos, enclausuramo-nos! Somos o exemplo de um mundo fechado, o que é desastroso!
Em geral, a Igreja é um bom exemplo da sociedade, mas, no seu interior, são especialmente fortes as pressões relativas à identidade. Há toda uma corrente que não reflexiona, mas que assume uma identidade de tipo reivindicativo. A seguir à publicação, na imprensa, das caricaturas sobre a pedofilia na Igreja, recebi reacções dignas dos integristas islâmicos aquando das caricaturas de Maomé. Ao ofendermos, perdemos autoridade.
Le Monde – O presidente da Conferência Episcopal, monsenhor André Vingt-Trois, repetiu em Lurdes, a 26 de Março: a Igreja francesa está marcada pela crise de vocações, pelo decréscimo da transmissão da fé, pela dissolução da presença cristã na sociedade. Como vive, o sr. Arcebispo, esta situação?
Albert Rouet – Procuro ter bem em conta que estamos no fim duma era. Passámos de um cristianismo de costumes a um cristianismo de convicções. O cristianismo sobreviveu graças ao facto de se ter convencido de possuir o monopólio da gestão do sagrado e das celebrações. Com a chegada de novas religiões e com a secularização das pessoas, já ninguém recorre a essa ideia de sagrado.
Mas, será possível continuarmos a dizer que a borboleta é «mais» ou «menos» parecida à crisálida? Não, não é. É por isso que eu não raciocino em termos de ‘degenerescência’ ou ‘abandono’: estamos num processo de mutação. Precisamos de calcular a amplitude de tal mutação. Repare: na minha diocese, há setenta anos, tínhamos 800 padres. Hoje, temos 200, mas contamos com 45 diáconos e 10.000 pessoas envolvidas nas 320 comunidades locais que, há 15 anos, começamos a criar. E isto é o que importa. Temos que acabar com a pastoral do tipo ‘rede ferroviária nacional’… Temos que encerrar algumas linhas e abrir outras. Sempre que nos aproximamos das pessoas, da sua maneira de viver, dos seus horários, a participação eclesial aumenta e aumenta também a formação catequética. A Igreja tem essa capacidade de adaptação.
Le Monde – Mas de que forma?
Albert Rouet – Já não podemos dispor de gente suficiente para uma rede territorial de 36.000 paróquias. Então, das duas uma: ou consideramos isto uma desgraça da qual nos teremos de livrar custe o que custar e re-sacralizamos o ‘padre’, ou inventamos um modelo outro.
A pobreza [de meios] da Igreja é uma provocação para que abramos novas portas. A Igreja deve apoiar-se nos seus clérigos ou nos seus baptizados? Eu penso que a Igreja deveria confiar nos seus leigos e deixar de funcionar na base da divisão territorial medieval. Esta é uma mudança vital. Um desafio.
Le Monde ─ E esse desafio pressupõe a abertura da ordenação sacerdotal aos homens casados?
Albert Rouet ─ Sim e não! Não, na medida em que eu até poderia amanhã ordenar dez homens casados ─ que bem os conheço ─, mas isso não é o que mais falta faz. Por exemplo, eu não lhes poderia pagar o salário. Ou seja, tinham de ter os seus empregos e só estariam disponíveis aos fins-de-semana para os sacramentos. Eis como se regressaria à velha imagem do padre vinculado apenas ao culto. Seria uma falsa modernidade.
Mas, se alterarmos a maneira de exercer o ministério e se a sua função na comunidade for outra, então sim, podemos considerar a ordenação de homens casados. O padre não deve continuar a ser o ‘patrão’ da paróquia. Deve apoiar os baptizados para que se convertam em ‘baptizados adultos na fé’, deve formá-los e evitar que se dobrem sobre si próprios.
Seria o padre quem deveria lembrar-lhes que eles são cristãos para os outros e não para si mesmos. Então, o padre presidiria à eucaristia como um gesto de fraternidade. Se os leigos permanecem infantis na fé (na menoridade), credibilidade alguma terá a Igreja. A Igreja tem de falar de adulto para adulto.
Le Monde ─ O senhor considera que a palavra da Igreja já não se adapta ao mundo. Porquê?
Albert Rouet ─ Com a secularização formou-se uma espécie de «bolha espiritual» dentro da qual as palavras flutuam, começando pela palavra «espiritual», que praticamente embrulha qualquer tipo de produto ou mercadoria… Portanto, é importante fornecer aos cristãos os meios indispensáveis para que eles saibam identificar e expressar os elementos da fé. Não se trata de repetir uma doutrina oficial, mas de permitir-lhes expressarem livremente a sua própria adesão à fé.
Às vezes, é a nossa maneira de falar que não funciona. Impõe-se descer da montanha e vir até à planície e fazê-lo com humildade. Para isso, requer-se um grande trabalho de formação, na medida em que a fé se converteu em algo de que nunca se fala entre os cristãos.
Le Monde ─ Qual é a sua maior preocupação para com a Igreja?
Albert Rouet ─ O perigo é real. A Igreja corre o risco de se converter numa sub-cultura. A minha geração estava muito agarrada à ideia da inculturação, de imersão na sociedade. Hoje em dia, o risco é que os cristãos simplesmente se fechem e se endureçam, porque têm a impressão de estarem frente a um mundo de incompreensão. Mas não é acusando a sociedade como causadora de todos os males que iluminamos as pessoas. Pelo contrário, faz falta uma imensa misericórdia diante deste mundo, onde milhões de pessoas morrem de fome. Não nos compete suavizar este mundo. Compete-nos tornarmo-nos mais amáveis.
Le Monde, 3 de Abril de 2010 [ENTREVISTA]
Por Stéphanie Le Bars
LINKS :
OS «PEQUENOS GRUPOS», O FUTURO DA IGREJA – J A PAGOLA
AS PEQUENAS COMUNIDADES – MARCEL LÉGAUT
ASSEMBLEIAS DOMINICAIS SEM PADRES – BERNARD SESBOUÉ
O DEUS DE JESUS DE NAZARÉ – PAULO BATEIRA
SOCIEDADE DE BEM-ESTAR E FÉ – J A PAGOLA
CRISTÃO, SEGUIDOR OU ADEPTO? – J A PAGOLA
LEIGO E PADRE: DOIS SACERDÓCIOS? – J M CASTILLO
CRISTÃO: O QUE É? – J M CASTILLO