teologia para leigos

24 de dezembro de 2012

NATAL_4 - DEUS E O DINHEIRO

Consta que Stanley Ho[1] [1921-] propôs-se obter um Doutoramento Honoris Causa, a troco de uma boa oferta de dinheiro … à Universidade Católica em Lisboa.



Os fundos-abutres investem em países quase em falência e não aceitam perdoar as dívidas

«[…] Basta ver quem são os clientes dos hotéis no centro financeiro de Madrid: são os representantes de empresas de capital de risco como a Oak Hill e a Corsair Capital. Aguardam para atacar: segundo o jornal Expansion, estes especuladores só querem comprar hipotecas com mais de 70% de desconto. E, diz um banqueiro espanhol à Reuters, estão nos hotéis por uma razão: “Querem ter a certeza de que são os primeiros a quem vamos ligar quando os bens dos bancos [com problemas] forem vendidos.” Para já ainda não fizeram grandes negócios – os preços não baixaram tanto como desejavam.» (revista Sábado, 21-27 Junho 2012, p. 62)





«Não preciso do teu dinheiro generoso… Muito obrigado!», disse Jesus





Mamon, palavra de origem aramaica, que provavelmente significa “aquilo em que se pode confiar” e que se aplica especialmente ao dinheiro/Capital. Ao contrapor-se a Deus, em Lc 16:13 e Mt 6:24, essa palavra adquire um carácter quase pessoal, de maneira que pode ser interpretada como o anti-deus ou o ídolo supremo: “Ninguém pode servir a dois senhores, pois ou odiará um deles e amará o outro ou estimará um deles e menosprezará o outro. Ninguém pode servir a Deus e a Mamon.”

A partir daqui e tendo em conta a totalidade da mensagem da Jesus (…), podemos estabelecer alguns princípios teológicos fundamentais.

1 - O contrário de Deus não é um desejo subjectivo, mas uma estrutura objectiva, construída e absolutizada pelos homens: Mamon (o Capital, na sua forma opressora). O mal não é o mundo em si nem as coisas da criação finita, como poderia supor algum dualismo gnóstico, que condena a matéria, o sexo. (…) [o mal é] uma realidade trans-subjectiva fabricada pelos homens como estrutura objectivada em forma de sistema de dominação económica: Mamon. O mal brota da má vontade (da inveja, do juízo e do desejo de domínio), e objectiva-se e concretiza-se de modo que pode vir a incorporar, e já incorporou!, uma realidade idolátrica, externa: é Mamon. O mal é algo que o homem constrói para de imediato ficar escravizado por ele (idolatria). O mal não é uma criação positiva de Deus, mas também não é algo vazio, abstracto: é algo que os próprios homens constroem com a intenção de o dominar, mas de tal modo que acabam por ser dominados por ele. […]

3 – Mamon é um ídolo enganador que consegue camuflar-se, oculto sob roupagens de piedade e de liberdade. O Evangelho sabe que o próprio Templo de Jerusalém foi «feito por mãos humanas» (kheiropoiêton: Mc 14:58) e, portanto, vinculado ao dinheiro (cf. Mc 11:15-19), pois «onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração» (cf. Mt 6:21). […] A descoberta do carácter anti-divino de Mamon tem características de revelação: não se alcança com discursos conceptuais ou teorias cósmicas plasmadas na linguagem de «talião», mas apenas onde o verdadeiro Deus se haja revelado como poder de gratuitidade e princípio de amor que confira fundamento amoroso à existência humana. Foi assim que Jesus o vislumbrou identificando o Diabo (activo nas Tentações: cf, Mt 4 e Lc 4) com Mamon.







4 – Mamon é um deus forte, que permite construir muitas coisas (como a Torre de Babel). As palavras de Jesus, ditas no seu tempo, tornam-se hoje em dia muito claras, já que o capitalismo no Ocidente racionalizou a economia convertendo-a em princípio e motor das relações sociais, e dessa forma criou a indústria, produziu muitos bens e, de alguma forma, conquistou todo o mundo. Ora, este Mamon do grande capitalismo, que está estreitamente relacionado com o império militar e que domina sobre a totalidade dos seres humanos, no fundo é o anti-deus, tal como o entende o Apocalipse quando o interpreta como a Grande Prostituta e deusa deste mundo (Ap 17-18). Deus e Mamon assemelham-se e assemelhando-se opõem-se. Deus é criador, é Vida que se dá a si mesma; Mamon, por outro lado, foi criado pelos homens (aproveita-se deles, devora-os como faz o Dragão do Ap. 12). Deus é princípio de liberdade. Mamon, por outro lado, possui-nos (tal como o Diabo) e converte-nos em escravos ao forçar-nos a entrar esquemas de mérito e lucro, de ganância e julgamento, nos quais vale mais quem mais tem, ainda que, ao cabo e ao resto, todos acabem escravos do sistema.» [X. Pikaza]

Mc 10:17-22 - O homem rico (Mt 19,16-22; Lc 10,25-28; 18,18-23) - Quando se punha a caminho [de Jerusalém], alguém correu para Ele e ajoelhou-se, perguntando: «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» Jesus disse: «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão um só: Deus. Sabes os mandamentos: Não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso testemunho, não defraudes, honra teu pai e tua mãe.» Ele respondeu: «Mestre, tenho cumprido tudo isso desde a minha juventude.» Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele e disse: «Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» Mas, ao ouvir tais palavras, ficou de semblante anuviado e retirou-se pesaroso, pois tinha muitos bens.

Esta passagem permite-nos ver melhor as relações de Jesus com a riqueza. Jesus vai a caminho de Jerusalém (a caminho da morte) e sai-lhe ao caminho um homem: «era muito rico». (…) Era um bom judeu, um homem da Lei, mas alguém que queria mais e por isso buscou Jesus. Não sofre de angústia pessoais, nem tinha dificuldades familiares. Sente-se feliz, mas quer atingir a vida eterna. Jesus responde-lhe dizendo-lhe que seja um bom judeu e que viva segundo os mandamentos que conduzem à vida eterna (cf. Ex 20:12-16). O homem responde-lhe que os cumpre já, de maneira que podemos concluir que ele é um irrepreensível cumpridor da Lei, tal como Paulo dizia de si próprio (Fl 3:6).

Porém, o Evangelho ergue-se acima da Lei quando acrescenta: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele e disse…» (Mc 10:21). A partir daqui, toda a cena se constrói como um cruzamento de olhares. O que Jesus vai dizer (vende tudo e segue-me) só se pode exigir a partir do amor. Para lá das leis que toda a vida até agora cumpriu, Jesus oferece ao homem rico o olhar amante que o tornará capaz de situar-se ao nível da gratuitidade do Reino.

Jesus não lhe exige que cumpra leis novas, nem o acusa de nada. Simplesmente, ama-o, segundo um gesto que é emblemático de todo o Evangelho, convidando-o com o seu olhar a deixar tudo e a segui-lo. Entre Jesus e o homem estabelece-se uma comunicação prenhe de promessas. Tudo indica que eles se vão entender, na medida que existe um princípio de cordialidade entre ambos. Só assim se entende que Jesus possa ter acrescentado: «Apenas te falta uma coisa: vai e vende o que tens…».

No coração da perfeição moral, Jesus detecta uma carência que se expressa como falta de gratuitidade. Por isso, insiste: «Vende o que tens». E assim surge o tema central do relato: este homem «tem» coisas, este homem tem-nas para si, este homem está a correr o risco de que elas o tenham e o possuam. Por isso, Jesus pede-lhe que as venda, não simplesmente para as vender, mas que sejam dadas aos pobres, em gesto de amor generoso.


Os bens dos pobres. Para lá duma economia comunitária.

Podemos vender bens a fim de negociar com eles e fazer lucro. Jesus não pede isso, Jesus não quer um comerciante ao serviço do Reino.[2] Podem vender-se bens para serem ofertados a uma comunidade religiosa ou social, isto é, à Igreja ou a uma organização, tal como o pede a regra essénica de Qümran (cf. 1QS 1,11-13) e também como supõem muitas regras cristãs de vida religiosa. Nem isso quer Jesus: não quer que os seus discípulos passem da posse individual (ou posse de família pequena) à posse grupal. Nem quer que esses bens sirvam para enriquecer uma Igreja com donativos que podem ser utilizados para manter as suas obras religiosas, já que, dessa forma, os seus discípulos continuariam perseguindo o cheiro do dinheiro e do poder do grupo.

Jesus, pelo contrário, quer que o homem dê os seus bens aos pobres, isto é, aos de fora do seu grupo, sem esperar compensações, por puro amor gratuito. «E terás um tesouro nos céus…», isto é, onde ninguém é possuidor de nada, onde tudo é oferecido e tudo é partilhado, segundo o plano dum Deus que tudo tem e nada possui. Esta é a demonstração de Deus: a gratuitidade completa. […]

Certamente, este homem pensa que Jesus lhe irá pedir os seus bens (ou parte deles) para o serviço da sua obra do Reino, mas Jesus responde-lhe que não quer nada, nem para ele, nem para a sua Igreja: Jesus não necessita dos bens deste rico para edificar a sua comunidade; não quer construir a sua Igreja sobre os donativos dos poderosos. 


Donativos para o templo de Jerusalém - «Alguns chefes de família fizeram donativos para os trabalhos. O governador doou ao tesouro mil dracmas de ouro, cinquenta taças e quinhentas e trinta túnicas sacerdotais. E vários chefes de família doaram ao tesouro para os trabalhos vinte mil dracmas de ouro e duas mil e duzentas minas de prata. O resto do povo doou vinte mil dáricos de ouro, duas mil minas de prata e sessenta e sete túnicas sacerdotais. Os sacerdotes, os levitas, os cantores, os porteiros, as pessoas do povo, os natineus e todos os filhos de Israel estabeleceram-se nas suas respectivas cidades.» [Ne 7:69-72]


Por isso diz que «dê aos pobres». Só depois pode acrescentar «vem e segue-me». Não lhe pede coisas de dinheiro nem lhe oferece ideias ou planos de oração nem o convida a realizar sacrifícios ou gestos religiosos, não lhe promete nenhum tipo de bens materiais, mas algo infinitamente superior: Segue-me! O rico pode até ter oferecido a Jesus algum dinheiro, mas Jesus não precisa de dinheiro: quere-lo a ele e diz-lhe “Segue-me”. É como se acrescentasse: ‘Não quero os teus bens, quero-te a ti! Não me fazem falta as tuas riquezas! Preciso de ti como pessoa! «Mas ele, entristecido com estas palavras, suspirando fundo, foi-se embora. Era muito rico…». Jesus fracassou, não conseguiu «converter» o homem rico. Olhou com amor, mas o amor não foi suficiente para que superasse o seu desejo de segurança económica.

«Vista deste ponto, esta cena (Mc 10:17-22) é uma espécie de romance exemplar que nos ancora no tempo de Jesus e que lança luz sobre o caminho de certas igrejas, as quais, muitas vezes ao contrário de Jesus, pedem dinheiro às pessoas que, longe de ser para os pobres (cristãos ou não), é para as suas instituições de tipo social ou sacral.»


Xabier Pikaza