teologia para leigos

20 de dezembro de 2011

FÁBULAS E ARGUMENTÁRIO NEO-LIBERAIS

«O projecto de reforço sistemático do poder económico e político das classes dominantes não assenta apenas em políticas e práticas, mas também na produção de supostas verdades que vão permeando o senso comum e assegurando a aquiescência dos dominados. Apesar das suas inconsistências intrínsecas, da sua falta de correspondência com a realidade e do facto de terem sido desmentidas noutros contextos, muitas dessas ideias continuam vivas e operantes no Portugal contemporâneo.»



Os neo-liberais - perversidade cínica...



As sete vidas
do argumentário neo-liberal


«Os gastos do Estado estrangulam a economia e a sua redução é necessária para o crescimento económico.

Não se deve taxar mais os ricos, pois deixariam de produzir riqueza e todos ficariam a perder.

Não se pode taxar mais os rendimentos do capital, senão este fugirá para outros países.

A raiz do problema está nos privilégios excessivos dos trabalhadores em geral, ou de alguns grupos de trabalhadores.

Ainda assim, estamos todos no mesmo barco − e não há alternativa às políticas em curso.[…]

Estes são alguns dos elementos mais centrais do argumentário neo-liberal, recuperados vezes sem conta nos mais diversos contextos. Trata-se, por outras palavras, da dimensão discursiva do neo-liberalismo − um projecto global que remonta à década de 1970 e que visa reforçar sistematicamente o poder económico e político das classes dominantes através da erosão dos salários directos e indirectos, da fragilização da capacidade política dos trabalhadores e da mercadorização de um conjunto crescente de domínios sociais.

É um projecto que tem de ser considerado particularmente bem sucedido nos seus próprios termos: da década de 1980 para cá, a parcela dos rendimentos apropriada pelos percentis superiores da distribuição do rendimento tem crescido de forma imparável na generalidade das sociedades capitalistas avançadas, em paralelo com (e graças à) implementação de um conjunto de medidas que têm assegurado a precarização dos vínculos laborais, a privatização de sectores anteriormente sob controlo público, desregulamentação da actividade económica e, de uma forma geral, a progressiva eliminação dos mecanismos limitadores da desigualdade[1].[…]

O poder performativo do discurso neo-liberal não advém da sua superioridade em termos de validade interna ou de adequação à realidade, mas da sua capacidade de moldar a visão do mundo dos grupos dominados de modo a que estes encarem como inevitáveis (ou até desejáveis) as transformações sociais e políticas que reforçam as relações de desigualdade e de dominação a que estão sujeitos.

Assim, e de uma forma geral, o argumentário neo-liberal é constituído por um conjunto de proposições, de maior ou menor sofisticação, que têm em comum o facto de postularem a impossibilidade ou a indesejabilidade das opções políticas progressistas, a inevitabilidade das transformações sociais conducentes a ganhos para as classes dominantes e a rejeição (senão mesmo a erradicação) das subjectividades colectivas dos dominados.[…]


Fábulas fiscais

No argumentário neo-liberal, as opções em matéria de política fiscal têm um lugar muito importante (…). O desencorajamento da adopção de políticas fiscais mais progressivas e progressistas é habitualmente feito, na linha do que já foi indicado, através de dois tipos de argumentos: o da indesejabilidade e o da impossibilidade.

O primeiro, a indesejabilidade, assenta no postulado segundo o qual a riqueza e o rendimento, à imagem de uma bebida vertida sobre uma pirâmide de copos, «escorreriam para baixo» (trickle down) através da procura associada ao consumo e ao investimento dos mais ricos. (…) Em Portugal, não precisamos de recuar muito no tempo para recordar afirmações explicitamente nesta linha, proferidas sem grande pudor: «deixe lá o rico comprar o iate, não lhe tire o dinheiro antes de ele comprar o iate, porque aí tira postos de trabalho àqueles que construíram o iate», afirmava Manuela Ferreira Leite em 2009[2]. Claro que, em termos rigorosos, a questão dos multiplicadores de rendimento e emprego associados à despesa dos diversos escalões de rendimento depende, de forma inversa, da respectiva propensão para a poupança (sendo que, na maior parte dos contextos, é entre os escalões mais pobres que a despesa está associada a um maior efeito multiplicador). A preferência neo-liberal pelos impostos indirectos (pretensamente mais justos) esconde, assim uma opção que, além de socialmente regressiva, é também mais contraccionista.

Por sua vez, o argumento da impossibilidade assenta principalmente no postulado segundo o qual os indivíduos suspenderão ou reduzirão a sua actividade se adicionalmente tributados, tendo como consequência que, aumentos da taxa marginal de imposto, implicarão uma redução da receita fiscal total. Esta ideia, graficamente representada através da chamada curva de Laffer, desaconselharia, por isso, o aumento da tributação sobre os mais ricos, sob pena de todos ficarem a perder. Sucede que essa possibilidade teórica tem muito pouca sustentação empírica: segundo o New Palgrave Dictionary of Economics, nos estudos empíricos realizados sobre esta matéria, o nível a partir do qual o aumento da taxa de imposto sobre o rendimento está associado a uma redução da receita é, em média, próximo dos 70% − bem acima do praticado em qualquer país.

Uma outra versão do argumento da impossibilidade é o que assenta na pretensa hiper-mobilidade do capital, segundo a qual a globalização dos fluxos financeiros teria como consequência que qualquer tentativa de tributar adicionalmente os rendimentos do capital fizesse com que este imediatamente rumasse a outras paragens, com consequências negativas para o investimento e o emprego. Este argumento, diversas vezes aduzido para justificar a muito assimétrica penalização dos rendimentos do trabalho face aos do capital no contexto da austeridade actual em Portugal, assenta numa falácia: a ideia de que todo o capital é igualmente desmaterializado. Se é verdade que o capital financeiro de carácter especulativo (cujos benefícios para as economias receptoras são particularmente discutíveis) é efectivamente hiper-móvel, o mesmo não sucede com a generalidade do capital produtivo: as grande empresas de distribuição portuguesas, por exemplo, por mais que comecem a aventurar-se em mercados exteriores, dependem do seu domínio do mercado nacional, do seu investimento imobilizado e da sua capacidade de influência em Portugal − e não se volatilizarão se adicionalmente tributadas…

Em matéria de política fiscal, o reverso da medalha da tributação é a despesa pública (…), a ineficácia da despesa pública na sustentação da procura e, por essa via, da actividade económica: tal como as famílias − dizem-nos −, o Estado deve gastar menos durante as recessões. A falácia de (…) que a redução da despesa pública permite libertar as forças vivas da economia, permanece como um zumbi, entre nós[3].


Dividir para iludir, numa política sem alternativas

«A sociedade não existe − apenas existem indivíduos e famílias.» A famosa frase de Margaret Thatcher é todo um programa: a erradicação das subjectividades colectivas acima das famílias e abaixo da nação.

Dividir os trabalhadores e as classes populares para ocultar e reforçar as relações de dominação é um aspecto fundamental da agenda e do argumentário neo-liberais e está hoje particularmente presente entre nós: desde a suposta diferença entre Portugal e a «laxista» Grécia à mistificação dos conflitos de interesse como sendo, na sua essência, geracionais, ou à promoção da culpabilização mútua entre funcionários públicos e trabalhadores do sector privado. A competitividade (…) é apresentada como dependendo exclusivamente dos salários; e daí a imputar a falta de competitividade aos privilégios excessivos de certos grupos de trabalhadores é apenas um passo.[…]

Entre pretensas inevitabilidades e impossibilidades, o neo-liberalismo nega a sua própria existência enquanto projecto político e social, alegando uma suposta gestão apolítica das sociedades e recusando o nexo directo entre as suas acções e o aumento da exploração e da desigualdade. Do discurso à prática, trata-se de um veneno poderoso. Porém, existem antídotos para ele − urge tomá-los em doses reforçadas.


Alexandre Abreu
Doutorando em Economia na School of Oriental and African Studies (SOAS) e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas.

[Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Dezembro 2011, p.2]


[1] George Irvin, Super Rich: The Rise of Inequality in Britain and the United States, Polity, Cambridge, 2008.
[2] Jornal i-on line, 29 de Julho de 2009. www1.ionline.pt/conteudo/15673manuela-ferreira-leite-não-aceita-perseguicao-social-dos-ricos
[3] John Quiggin, Zombie Economics: How Dead Ideas Still Walk Among Us, Princeton University Press, Princeton, 2010.