teologia para leigos

20 de dezembro de 2011

RAZÕES PARA A AUSTERIDADE - UMA CRUELDADE CIENTÍFICA

!Portugal caminha a passos largos para esta situação… Prestem bem atenção!





«Combinando a força do tempo e o peso do fatalismo, as crises longas banalizam, a pouco e pouco, o que geralmente é da ordem do inacreditável. É dessa forma que nos acostumamos a que investidores demitam governos ou que à amputação dos orçamentos públicos se siga a descida dos salários. Os dirigentes explicam que é para evitar o pior. Mas será que eles ainda controlam a máquina, quando surge o espectro de uma nova recessão mundial? Sob a pressão dos mercados financeiros e das correias de transmissão políticas, algumas empresas europeias começam a desconjuntar-se, como na Grécia. Ignorando as exortações a «corrigir os excessos do sistema» e a desembaraçar o (bom) capitalismo das (más) influências da finança, qualquer pessoa sente que há um ciclo que está a fechar-se.»






OS GREGOS COM A FACA NA GARGANTA


«Tu não sabes o que te espera amanhã quando acordares
Não há uma única pessoa, que tenhamos encontrado em Atenas, Salónica ou qualquer outro lado, que não tenha, num momento ou noutro, dito esta frase.
Na Grécia, a obsessão face ao dia seguinte é entendida como uma prisão que fecha cada um na incerteza de uma existência individual e colectiva ameaçada de destruição iminente. No entanto, este país que tem uma história atormentada, não está a passar a sua primeira provação. Os gregos vêem-se como um povo dotado de uma inteligência especial, de um carácter forte, sobretudo na adversidade. «Tivemos sempre períodos difíceis; safamo-nos sempre. Mas agora tiraram-nos a esperança», suspira a gerente de uma pequena empresa.

Ao mesmo tempo que os programas de austeridade se sucedem, há leis, decretos e circulares que põem em causa as normas sociais, económicas e administrativas do país.

A cada dia, tudo muda. O que ainda ontem era verdade, hoje já não o é, e amanhã não sabemos. Os administrados submetem-se a uma burocracia cada vez mais minuciosa, kafkiana, com regras incompreensíveis e sempre em alteração. «As pessoas querem agir em conformidade com a lei», explica uma empregada da Câmara de Cíclades às suas colegas. «Mas nós não sabemos o que lhes dizer, nós não temos os pormenores das medidas!» Um homem teve de pagar 200 euros e apresentar 13 documentos e o bilhete de identidade para conseguir a renovação da carta de condução. Alguns empregados do sector público opõem uma resistência passiva. «Cortam-lhes os salários, então eles não trabalham mais. Quando tu chamas a polícia para dares conta de algo que se está a passar, esta responde-te: “O problema é teu, desenrasca-te”», conta um engenheiro da marinha mercante na reforma, muito revoltado contra o governo. As tensões exacerbam-se. Regista-se um evidente aumento da violência intra-familiar, dos roubos e dos homicídios[1].

Por um lado, os salários diminuem (entre 35 e 40% em certos sectores); por outro, são constantemente criados novos impostos, por vezes, com efeitos retroactivos até ao início do ano civil, alguns retidos na fonte, outros não. Tal representa uma diminuição efectiva dos rendimentos, a qual muitas vezes ultrapassa os 50%. Entre as últimas taxas inventadas figuram, desde o Verão passado, um imposto de solidariedade (de 1% a 4% dos rendimentos anuais), uma taxa sobre o petróleo e o gás natural que os contribuintes têm de pagar e que acresce ao seu consumo de energia, a diminuição do primeiro escalão do imposto sobre os rendimentos que passou de 5000 para 2000 euros anuais, uma taxa fundiária de 0,50 a 20 euros por metro quadrado incluída na factura da electricidade e pagável em duas ou três vezes sob ameaça do corte de energia eléctrica e de multas.

No princípio de Novembro, nem os reformados, nem os assalariados (do público e do privado) sabiam o que iriam receber no final do mês. É corrente trabalhar sem ser pago. Nas empresas e nos serviços públicos em vias de «saneamento» foi aplicado um plano drástico de redução de efectivos. Até 2015, 120 mil assalariados com mais de 53 anos serão postos na «reserva». A ‘reserva’ é a antecâmara da reforma forçada dos funcionários públicos que tenham cumprido 33 anos de serviço: estes são enviados para casa e não recebem mais do que 60% do seu salário base. Dentro em breve, um grande número de funcionários públicos aposentados à força não terá mais do que um rendimento de miséria, tal como nos explicava um grupo de antigos maquinistas com 50 e mais anos. Reconvertidos, no quadro de um processo de mobilidade «voluntária»[2], em vigilantes de museus, eles anteriormente recebiam 1800 a 200 euros por mês, um salário relativamente confortável na Grécia: doravante o seu salário oscilará entre 1100 e 1300 euros e para os «reservistas» ficará limitado a 600 euros. E, mesmo assim, eles poderão perder esse salário caso tentem desenvencilhar-se tendo um outro emprego remunerado: tal é-lhes formalmente proibido − e as autoridades não hesitam, em aplicar a sanção.

A compressão dos salários criou uma «situação selvagem», como confidencia uma moradora de Salónica, que acrescenta: «Já não pago as minhas contas, reduzi as minhas compras, as lojas fecham, o desemprego aumenta»… Em Maio, a taxa oficial de desemprego − provavelmente, muito inferior à taxa real − era de 16,6% (e de 40% nos jovens), ou seja, dez pontos mais elevada do que em 2008.

Cataclísmica, a crise económica, social e política tem consequências alarmantes na saúde pública. Os orçamentos dos hospitais e dos centros de saúde públicos foram, em média, cortados em 40%. Mas a afluência às urgências aumenta e, simultaneamente, as taxas de não-recurso aos serviços médicos também aumentam. Muitas das pessoas entrevistadas contam que os medicamentos não são, ou em breve deixarão de ser, distribuídos. «O meu pai», indigna-se uma jornalista, «tem doença de Parkinson; os seus medicamentos custam 500 euros por mês. A farmácia comunicou-lhe que em breve não os poderá entregar porque a Segurança Social não os reembolsa». […]

Nenhum país resistiria a um choque destes. E a Grécia ainda menos do que os outros: não está preparada para enfrentar as consequências sociais e sanitárias da austeridade que lhe impõem, com uma «crueldade científica»[3], as elites transnacionais e nacionais. O país não teve o tempo nem os meios para desenvolver um sistema de protecção social bem conseguido e as redes existentes estão a ser rasgadas. […]

Críticos de si próprios e do seu país, ainda que orgulhosos, os gregos nunca foram ingénuos. Mas encontram-se despojados de meios.

Que modelo de sociedade é que uma população até agora «essencialmente incapaz de constituir uma comunidade política»[4], segundo a expressão de Cornelius Castoriadis, pode imaginar? […]

Depois de terem pensado que se tinham desembaraçado dos seus dirigentes[5], os gregos arriscam-se a deixar de saber contra quem se hão-de sublevar. «Não há inimigo», nota Lainas. «O governo é abstracto, é essa a sua força. FEEF! [6] O inimigo pode ser abstracto, mas a infelicidade é real. Eles roubam-te a vida. Eles privam-me de futuro.»

Noëlle Burgi

Investigadora do Centro Europeu de Sociologia e de Ciência Política Paris-Sorbonne, Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS).

[parte de Artigo publicado em Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Dezembro 2011, p.5]




[1]  «Os casos de violência intra-familiar triplicaram», I Simerini, Nicósia, 16:III:2011; «Aumento dos maus-tratos contra as crianças e do risco de pobreza infantil» http://www.tvxs.gr/, 15 de Abril 2011.
[2] Em vias de privatização, a companhia de caminhos-de-ferro organizou este processo no âmbito de um plano de redução dos efectivos.
[3] Expressão de Karl Polanyi, La Grande Transformation, Gallimard, Paris, 1983 [1944].
[4] Cornelius Castoriadis, «Nous sommes responsables de notre histoire», em Le Mouvement grec pour la démocratie directe, Lieux Communs, 2011.
[5] Após a Guerra da Independência (1821-1830), o Tratado de Londres impôs uma monarquia à Grécia. Otto von Wittelsbach, príncipe da Baviera, foi escolhido como primeiro rei (com o nome de Otto I) pelas grandes potências europeias (França, Rússia, Grã-Bretanha). Estas mantiveram-se como força de intervenção constante.
[6] FEEF - Fundo Europeu de Estabilidade Financeira.