teologia para leigos

22 de dezembro de 2011

CONTO DE NATAL

Conto de Natal para um tempo cravejado de medos…




A estrelinha lilás


Esta noite sonhei que começara a chover muito. O barco onde íamos meteu água e o céu lançava sobre as nossas cabeças faíscas agudas – um dos nossos amigos morreu e nós morríamos de medo.

De repente, um como nós ergueu-se, abriu os braços e gritou como um trovão: − Não temais! A tempestade acalmou, a maldade do mar desapareceu, o céu abriu-se de azul e sol e todos nos sentimos muito pequeninos diante de tamanho milagre. Ao canto da barcaça um velho de barbas brancas resmungou: Será ele?

Ao fim de alguns dias de viagem em cima das águas chegamos a uma terra igual a tantas outras. Dois homens esperavam-nos na praia.
Ei! Tu aí… Anda connosco. Depressa! Eram soldados e apontavam para o rapaz que tinha aberto os braços e gritado não temais. O rapaz, que devia ter perto de 18 anos de idade – cabelos compridos, barba muito preta, sedosa, rente à pele e olhos cheios de vida – foi metido numa prisão. Passou lá três dias de fome e três noites de frio, com um tronco bem amarrado às costas.

Ao fim de três dias e três noites foi levado à presença do Imperador que lhe disse: Ouvi dizer que não tens medo!? O rapaz abanou a cabeça que sim que sim. O Imperador repetiu três vezes com força: – A quem não tiver medo eu mando-o abrir os braços e amarro-o com cordas a um madeiro. Ouviste bem? O rapaz arregalou os olhos e voltou a abanar a cabeça três vezes. – Tirem-lhe o carrego! Agora ele vai ver do que a casa gasta para se fazer homem. Agora ele terá de aprender por si mesmo a ter tino, a ter respeitinho! Sobretudo, a temer o medo…

Agora vai! – concluiu o Imperador. E deu ordem aos soldados para o libertarem. O menino foi à vida, mas nem assim conseguiu sentir as pernas a tremer. Às vezes, punha duas velhas latas de azeitonas de borco e, por cima, tábuas podres a fazer de pranchas. Pinchava, pinchava, abanava-as, quase que era atirado ao chão, mas nunca as partira, nem sequer tinha conseguido arrepiar-se. Apesar da idade, parecia uma criança nascida para envergonhar os pais. Depois, subiu a uma torre muito alta, andou às voltas lá em cima, pôs-se em biquinhos de pés mesmo na pontinha mais alta do pináculo! Abriu os braços, baloiçou-se para a frente e para trás, mas as vertigens não apareceram. Apenas uma brisa suave no rosto! Ele, que sempre se sentira o maior do mundo, nesse dia, triste como a noite por não ser capaz de fabricar medo, decidiu desistir e partir para uma terra que fosse a sério, uma terra onde não tivesse que pensar muito para ter medo a sério. Gostava de desafiar perigos como quem brinca e, ali, naquela terra vulgar, nada… − era tudo uma seca, até para se ter medo:-(

Mas mal pôs o pé na areia da praia para de novo embarcar, surgiu uma multidão aos gritos: Eia! Escuta! Espera um pouco! O rapaz virou-se para trás. – Desde que chegaste aqui não nos cansamos de te espiar. Vimos tudo. Vimos tudo o que andaste a fazer. E até vimos que tu és destemido! Não fiques assim. Não desanimes. Não embarques. Afasta a tua tristeza. Volta para trás que nós damos-te um pouco do nosso medo – temos tanto para dar… e assim serás um poucochinho feliz junto de nós.

O rapaz disse: Vocês devem estar loucos! Vocês são capazes de me dar de presente um pedaço do vosso medo?!!! E assim, de graça, sem nada em troca?!!! Vocês só podem estar mesmo meio loucos de medo…!!! E decidiu ficar. Aquela gente parecia generosa. E, à medida que iam todos caminhando para a cidade, cada um punha-lhe às costas o seu próprio tronco de madeira, coisa que ele aceitou com a alegre leveza dum espírito destemido. Finalmente vou ser capaz de ser feliz nesta terra de medricas! E tudo à custa destes pobres patetas bondosos. Já começo a sentir um cheirinho a felicidade De facto – pensou o rapaz dos olhos faiscantes e barbas sedosas – as pessoas quando andam esmagadas de terror quase que encostam o queixo à biqueira dos sapatos. Mas ele, que era jovem e fortalhaças, caminhava de costas erguidas e até conseguia brincar com os mais pequenitos. Um dia, para espanto de muitos, viram-no com os troncos pesados às costas a saltar ao eixo com a canalha. E não é que ele os vencia a todos…

E assim, aos poucos e poucos, as pessoas daquela cidade começaram também a carregá-lo com seus troncos de estimação que tinham lá pelos cantos, em casa, reserva para quando sentissem raiva. Aos poucos, o rapaz de músculos fortes e rosto vincado, já carregava quase todos os troncos dos habitantes daquela cidade. Havia quem dissesse que quantos mais troncos lhe amarrassem às costas, mais feliz ele se sentia (o que muito me custa a crer… mas que ele há loucos, lá isso os há…).

Passou três anos ali, na cidade de medo. O ar era, agora, mais leve nas ruas e nas casas. Os pássaros cantavam mais e melhor, muitos fugiam das gaiolas e os patetas dos adultos achavam-lhe graça! Os homens assobiavam nos campos, dependuravam hortelã na orelha. As mulheres perfumavam a casa, escolhiam vestidos e voltavam a perder-se nas conversas!

Ao fim de três anos ou três milénios, os soldados – aqueles antipáticos que nem lhe haviam ofertado um só tronco sequer! – procuraram-no para lhe anunciar a notícia.
– O Imperador manda dizer:  Sei que és um medricas! Sei que andas carregado de medo, carregado dos medos de quase todos nós. Como prémio pela tua vontade em querer ser cidadão desta província a medo inteiro, mando que te seja oferecido um palácio de grades com vistas para a cidade! De lá poderás contemplar as belas vistas de todo o meu império de gente temorária que me saúda e me mede a medo o ano inteiro.




O rapaz deu pinchos de contente!
Indicaram-lhe o caminho – a via mais íngreme –, até que chegaram ao cimo dum monte alto. O rapaz subira aquela incrível encosta com uma perna às costas. (chegados aqui, temos que reconhecer que esta história é tão tola como o rapaz, porque com milhares de troncos às costas, o rapaz, apesar de ser um fortalhaças, seguramente já não conseguiria arranjar espaço para a sua perna… bom; adiante…) O rapaz subira, então, a encosta com as duas pernas às costas e os braços bem abertos! Ah, valente - assim é que é!

De facto, lá de cima, as vistas eram soberbas! A cidade parecia uma montagem de legos! Apetecia ser menino de novo, menino de condomínio aberto…

Lá em baixo, os palácios, as ágoras, os templos, as avenidas, os obeliscos, o rio como uma cobra, às vezes com rápidos, um tufo de verdura aqui, outro acolá. À esquerda, camelos em fila sobre o pente das dunas. À direita, a praia e, partindo dela como uma saia larga, um soberbo mar azul sem ondas e sem fim, um mar de nadar e chorar por mais de mansidão. O horizonte era tudo e tudo era horizonte e, daquele ponto alto e amplo, os olhos tinham a grandeza dum sonho de rei. Melhor: a grandeza dum sonho de Príncipe, dum Filho de Rei!

Era demais! O seu coração estourava de felicidade! Não era possível ser mais feliz! Ali, de facto, do alto do mundo, ainda era mais completamente impossível que alguém tivesse um pingo sequer de medo. Naquele momento, era o rapaz mais feliz sem nada ter feito para o merecer! Devia uma visita ao Grande Imperador por tanta bondade generosa… mesmo que com as costas ajoujadas de troncos maciços.

Saltou tanto, tanto, de felicidade, que se atirou aos soldados para os abraçar. Mas… não conseguiu, pois tinha os braços amarrados aos troncos por cordas – ele não podia defraudar a confiança que a multidão tinha depositado nele. Nunca iria deixar cair ao chão os troncos dos outros que tanto o incentivaram a ser um poucochinho feliz com eles.

Paciência. Não abraçara os soldados, mas, em vez disso, pensou: «Posso ensaiar uma brincadeira de roda para os reverenciar!». Tentando aumentar ainda mais a sua cota de medo, pensou: «Que tal se andasse à roda até ficar tonto?!» Desatou, então, a girar em círculos, a girar em círculos, a girar em círculos, em círculos, tão rápidos, tão velozes, tão velozes que… oh surpresa das surpresas!, começou a levantar voo… de braços abertos… como se fosse uma libelinha azul! Uma espécie de menino-helicóptero!!! J [muitos risos patetas…] carregado com os troncos sagrados do medo de todo o mundo.

E elevou-se … disparado pelos ares… tão alto, tão alto, tão alto…, que rapidamente se tornou apenas um pontinho bem lá no longínquo céu, tão longe e tão alto, que mais parecia uma estrelinha lilás no imenso universo do amor de Deus.

Cá em baixo, na Terra, uma tremenda ovação!


Tudo isto aconteceu há muitos anos, no tempo em que Jesus por cá andou.
Mas ainda hoje, em Nazaré, as mães, para entreterem os filhos na hora da sopa, chamam todos os meninos da aldeia, pedem-lhes para darem as mãos e fazerem um círculo. Depois contam-lhes a história do menino de medo que não tinha medo de nada, nem do Imperador!, e que mandara pelo ar todos os carregos! No fim da história, para alegria das mães, os meninos pedem mais sopa!, sem nunca deixarem de andar à roda de mãos dadas, braços bem abertos, com um raminho de amendoeira verde preso às costas por um alfinete.

Vocês acreditam que se vence o medo fazendo de conta que somos amigos… do medo? Acham mesmo? Também há quem diga que isso só resulta se dermos as mãos uns aos outros sem nunca desviar o olhar d’ aquele pontinho lilás, muito alto! que há no céu estrelado de todos os nossos sonhos.

E tu que achas? Quando fores dormir, experimenta. Vais ver que, com um raminho de amendoeira bem apertado na tua mão pequenina, consegues voar acima de todos os medos, mesmo que o teu peito aperte um poucochinho.



Bons sonhos… de NATAL!

 

[Ilustrações retiradas de ‘BÍBLIA INFANTIL’, Bethan James & Yorgos Sgouros, Ed. Babel, babel@babel.pt Av. António Augusto de Aguiar, 148 – 6º, 1069-019 Lisboa, T.: 21.3801.100 Fax: 21.3865.396]
Dez_2011
[Existe uma versão para os «mais crescidos», contra pedido por E-mail: paulobateira@gmail.com]