teologia para leigos

28 de dezembro de 2011

OS CÓDIGOS MORAIS SÃO IMPRESCINDÍVEIS AO PODER 1/2

Subitamente irrompeu, em Portugal, o ódio ao Utente do RSI! Anos atrás existia o ódio às ‘lojas dos 300’geridas por portugueses. Depois veio  o ódio ao pequeno comerciante chinês - estes foram/são a causa da crise de tudo! Agora é o próprio Governo de Direita que dispara contra as chamadas camadas sociais corporativistas anichadas (quais oportunistas) nas ‘zonas de conforto’ social

Em tão poucas semanas, Portugal virou uma destilaria de ódio!, de Códigos Morais de Pacotilha, armas para uso populista fáceis de manusear, marketing chantagista [ex.: 'vivemos TODOS - o país viveu acima das suas posses'; 'os subsídios do Estado precisam de ser merecidos e retribuídos à sociedade através de trabalho à comunidade'; 'não há almoços grátis'; 'o tempo dos empregos para toda uma vida, esse tempo morreu, não volta mais - temos que nos convencer disso'; etc.]. Assiste-se à «moralização da política» de um modo tão obsessivo e culpabilizante, que faz lembrar os tempos dos anos 50 em que a Moral Católica era o único ‘metro-padrão’ dos costumes e do pensamento, a catalogar e a segregar exclusão social. Na raiz de tudo, o temor, o medo vertido em Código Moral securizante.

Zé dos Talks

A narrativa moral psicologizante…

Vídeo_A génese da Crise económico-financeira

 


Em Dezembro passado, a convite da Associação Prado, participei na primeira edição dos Zé dos Talks[1], uma versão lusa dos FredTalks[2]. Fica a cima o vídeo peculiar da sessão (o som de início é mau, mas depois melhora).


Ricardo Paes Mamede
28 Março 2012

Mas, afinal, como/para quê se fabricam os Códigos Morais?

«Cada código moral constitui a expressão do modo como um grupo, que se assume como líder numa sociedade, entende conveniente para si próprio que a maioria se comporte; fica claro que a moral é uma forma de gestão por objectivos» [Oliver Thomson]


Igreja da SS. Trindade_Fátima [pavimento]

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1.A Génese da Moral

Em 1705, Bernard Mandeville, médico londrino de ascendência francesa, mas nascido e criado na Holanda, escreveu um poema notável intitulado «A Colmeia Rabugenta», subsequentemente republicado com o título «A Fábula das Abelhas». Nesta fábula, a colmeia prospera, feliz e poderosa, desde que as abelhas individuais sejam gananciosas, ambiciosas e corruptas mas, quando as abelhas se convertem a uma moralidade menos egoísta, o seu império começa a desabar. As abelhas…

Dentro de uma árvore oca e entradas
Com satisfação e sinceridade abençoadas

Mandeville não foi o primeiro nem seria o último filósofo a chamar a atenção para a diferença entre moral individual e nacional mas, provavelmente, ninguém usou de tal acutilância e simplicidade para sublinhar os objectivos alternativos dos sistemas morais concebidos pelo homem.

O século actual tem assistido a um afastamento gradual e mundial dos códigos das grandes religiões, não raro sem filosofias firmes ou bem definidas para as substituir. (…) Embora existam fundamentalistas, oriundos ma maioria das religiões, a defender a origem divina dos seus códigos, é correcto, na actualidade, dizer que uma vasta maioria reconhece esses códigos morais como sendo concebidos pelo homem: são normas de comportamento pensadas por grupos ou indivíduos, destinadas a tornar a existência mais agradável para a maioria da população.

Esta artificialidade implícita não significa que a moral seja algo não natural, nem que o Homem sem código moral seja necessariamente mau. Afinal, encontramos sinais de comportamento moral nos animais. (…) Hebb observou que «se um chimpanzé estiver a comer e vir outro chimpanzé a pedir comida, sente-se condicionado a prescindir de parte da sua, embora mostre sinais claros de raiva e irritação». (…) No tempo do homem primitivo, havia sinais incipientes de que cada sociedade desenvolvera o seu próprio código moral. Diz-nos Redfield: «Cada sociedade pré-civilizada apoiava-se em conceitos éticos não verbalizados, mas continuamente realizados.» (…)

Num comentário ao instinto do operário do século XX, Richard Hoggart salientou: «”Eu cá gosto de coisas justas” poderá ser um guia suficiente para o cosmos e poderá ser hipócrita mas, dito com sinceridade por um homem de meia-idade após uma vida difícil, pode representar um triunfo considerável sobre circunstâncias adversas.»

Estas são as características básicas do comportamento moral, aquilo a que G.K. Chesterton chamou «as certezas tolas da existência». Ou, nas palavras de Anthony Storr: «Pode depreender-se que, desde o princípio da vida, existe um impulso de realização pessoal, de busca de identidade própria, enquanto pessoa, e que esta é uma força tão poderosa quanto o próprio sexo.» (…)

Sherrongton observou que «a biologia apregoa o indivíduo por si próprio» mas o «altruísmo […] parece, até à data, o produto mais nobre da Natureza».

Todavia, filósofos e teólogos têm, por vezes, preferido uma visão pessimista do homem enquanto ser naturalmente imoral ou, na melhor das hipóteses, amoral. Santo Agostinho de Hipona foi pioneiro no conceito de pecado original (graças, talvez, a uma juventude bastante devassa) e Espinosa um dos muitos que seguiram uma orientação semelhante: «Se os homens nascessem livres não teriam, desde que permanecessem livres, concepção absolutamente nenhuma de bem e de mal». (…)

Em sociedades mais amplas, encontramos ainda toda uma série de subsistemas morais, códigos diferenciados para guerreiros, sacerdotes, mães e inúmeros pequenos grupos. Numa comunidade normal existe, não só, um conjunto principal de normas amplamente aceites para toda a nação, ou para um grupo de nações, como também códigos comerciais, códigos hospitalares, códigos escolares, códigos militares, códigos sindicais, códigos desportivos, até códigos criminais.

Do mesmo modo, parece óbvio o facto de os códigos morais não apenas variarem como, também, terem durações inerentes; a sua popularidade e credibilidade primeiro crescem e depois diminuem. Por vezes, até podem ser rejuvenescidos por pensamentos novos, podem desaparecer e depois regressar - têm uma espécie de ciclo de vida - e, enquanto se desvanecem, as pessoas vivem aquilo a que normalmente se chama ‘crise moral’. E.H. Carr descreve esta falta de orientação do seguinte modo: «Quando perdemos as fórmulas confortáveis que, até então, nos têm norteado entre as complexidades da existência, sentimo-nos afogar num mar de factos, até voltarmos a encontrar pé ou aprendermos a nadar.»


2.As Causas das Diferenças Morais

Já esclarecemos que diferentes tipos de pressões externas ajudam a forjar diferentes tipos de moral. Para citar alguns exemplos extremos, oriundos de zonas de ambiente hostil, o código moral da tribo Tugue na Índia considerava uma virtude o assassínio por estrangulamento de homens que não fossem Tugues (mas não de mulheres). (…) Na Alemanha pós-Depressão, foram vários os oficiais seniores das SS promovidos pela sua contribuição para o genocídio. É surpreendente que a violência tenha sido tantas vezes exaltada pelos códigos morais, mas, tal facto, poderá ser o resultado de pressões populares e de uma sociedade violenta, em que a esperança de vida é curta ou onde a própria vida tem menos valor do que outras considerações.

No seu todo, a História demonstra que as definições de hábitos bons e maus têm sido substancialmente díspares em situações diferentes, mas, em cada exemplo, a pressão sobre o indivíduo traduz-se na prossecução da ética do seu próprio povo, independentemente do modo como essa mesma ética possa ser comparada com outras morais aceites de forma mais generalizada. Diz-nos R.S. Peters que o «homem é um animal obediente a regras». Porém, as regras mudam consoante as pressões, ambições e ideias daqueles que as inventam e que têm de convencer os outros a obedecer-lhes, donde a máxima de Stevenson: «Moral é persuasão E a persuasão sai facilitada porque a maior parte das pessoas não quer pensar pela sua cabeça. Eis um comentário de Edward de Bono: «O objectivo é parar de pensar. Em suma, as pessoas detestam ter de pensar e tomar decisões, porque isso é mentalmente cansativo. Existe uma preferência fundamental por processos decisórios automáticos, baseados em padrões.» A liberdade de tomar decisões é um fardo doloroso, como foi salientado por Bergson, Jean-Paul Sartre e os existencialistas. Por conseguinte, os códigos de moral de pacotilha, que anulam esta dor, são deveras convenientes, desejáveis e úteis. Na fórmula de W.R. Whyte, «Valores bons são valores que permitem aos grupos interagirem, com benevolência, entre si e aos indivíduos uns com os outros.» Porém, e dado que os ambientes sociais se alteram, a natureza dos valores e da benevolência também se altera. A posição de Westermarck, «Os conceitos morais prendem-se com a indústria e a sociedade: o certo e o errado não são naturais, inatos nem intuitivos, apenas implantados por pressões sociais […]», pode ser comparada à análise de Karl Marx: «A fábrica braçal cria uma sociedade com um senhor feudal, a fábrica a vapor cria uma sociedade com um capitalista industrial.»

Por conseguinte, os códigos morais tendem a remeter para as sociedades onde crescem e, embora possa existir uma norma absoluta, as opiniões sobre o certo e o errado têm variado consideravelmente. São vários os factores reconhecíveis neste processo que vale a pena aflorar.

O primeiro prende-se com circunstâncias económicas, a disponibilidade de alimentos e outros meios de sustento. (…) Uma escassez induz partilha, racionamento cooperativo (o que faz da abstinência uma virtude), cultiva a moral da conservação e encoraja a distribuição equitativa, mesmo entre os elementos mais fracos de uma sociedade. Mas pode induzir o efeito contrário: pânico, açambarcamento, elitismo material. (…) Num certo tipo de código, a pobreza não é nenhuma desgraça, noutro já o é. No primeiro, a mendicidade até pode ser respeitável, no segundo é o prestígio que recompensa a riqueza e a ostentação. No primeiro, o altruísmo poderá ser recompensado no além, no segundo é considerado uma imbecilidade.

Por outro lado, uma superabundância relativa de bens materiais tende a fomentar o desperdício, a desencorajar a conservação, a menosprezar a partilha, a conferir, em contrapartida, respeitabilidade moral ao excesso de indulgência e a encorajar a desigualdade de distribuição e exploração. (…)

Sempre existiram contrastes, nesta matéria. O Romano da República orgulhava-se de comer com frugalidade, o Herói cómico da Roma Imperial, Trimalquião, obrigou-se a vomitar para comer mais. Maomé, Buda, Lao Tzu e Sócrates pregavam a temperança dos apetites. Na Renascença, na Restauração, na década «marota iniciada em 1890, nos alegres anos 20», do século XX, tais entidades teriam sido desmancha-prazeres, pelo menos nos estratos superiores da sociedade, onde o valor dado ao conforto material levou Loelia, Duquesa de Westminster, a afirmar: «Quem for visto num autocarro depois dos trinta anos de idade é um vencido da vida.»


O segundo maior factor causal, no que diz respeito à criação de atitudes morais, é a natureza do poder numa sociedade. Esta faz variar a moral se se trata de uma época cavaleiresca, se de infantaria com arco, com escudo e espada (esta, estimulando o igualitarismo grego, a disciplina rigorosa e o ethos de discrição, a diluição das barreiras, etc.), se de pirataria de alto mar (a valentia corsária selvagem). (…) Quem detém os cordões da bolsa utiliza-a para ajudar a instilar o tipo de ética passível de manter essa riqueza. Deste modo, o algodão fez da escravatura, na América, uma virtude e o petróleo fez da velocidade igualmente uma virtude. (…) Uma comunidade camponesa produz uma moral com ênfase na família nuclear enquanto unidade de produção, ao passo que uma economia baseada em oficinas domésticas salienta o papel da maternidade e da geração de crianças produtivas; o comércio tem produzido a moral burguesa da frugalidade; uma economia altamente tecnológica produz uma ética com a tónica na competitividade acentuada; uma economia orientada para o consumidor encoraja uma ética de indulgência dos sentidos que faça da vaidade pessoal uma virtude. (...)

A quarta área de pressão sobre o desenvolvimento da moral é a natureza do poder político. A monarquia tende a exigir obediência, reverência, lealdade, devoção cega e estratificação social da recompensa. Bismarck definiu as virtudes prussianas: «honra, lealdade, obediência e bravura, as quais moldam o exército, desde o corpo de oficiais até ao mais jovem recruta».

A quinta condicionante moral é o preconceito ou a tradição, os vestígios da moral das duas gerações anteriores legados à seguinte geração. Sentimentos raciais, superioridades de classe ou de outra ordem genética, orgulho na cor, na casta ou na crença, tendem a ser inculcadas desde tenra idade, pelo que são prontamente transmitidos de geração em geração. Veja-se os Protestantes do Ulster, os Sikhs de Bengala e os Xiitas palestinianos - todos herdaram gerações de paranóia.

Como já vimos, dado que cada código moral constitui a expressão do modo como um grupo, que se assume como líder numa sociedade, entende conveniente para si próprio que a maioria se comporte, fica claro que a moral é uma forma de gestão por objectivos. (…) Assim sendo, um código moral pode ser definido enquanto sistema de padrões éticos pelo qual determinada sociedade controla o comportamento dos seus indivíduos e os motiva para atingirem os seus objectivos. Trata-se de um processo de controlo psicológico de grupo que, geralmente, constitui um quadro de manipulação muito mais amplo, representado pelo código legal dessa mesma sociedade. Quem se rebele contra o código será considerado imoral (…)

A moral tem predilecção por absolutos, preferência por ‘pretos e brancos’ recusando os vários tons de cinzento. Esta predilecção decorre, naturalmente, da necessidade de maior clareza e simplicidade em normas intransigentes. Donde os numerosos «nãos» dos dez mandamentos serem a espinha dorsal da sua simplicidade e convicção.

(continua)

Oliver Thomson, História do Pecado, ed. Guerra e Paz, Out 2010 ISBN 978-989-8174-86-4 (excertos).