CAPÍTULO V
«Que fazer?»
Tony Judt, em UM TRATADO SOBRE OS NOSSOS ACTUAIS DESCONTENTAMENTOS [Ed. 70, Grupo Almedina, 32 euros, ISBN 978-972-44-1632-8] nas cerca de 25 das 219 páginas do seu livro, tenta explicar o que se está a passar para poder propor sugestões que ajudem a encontrar uma saída consistente para a situação política e económica do capitalismo ocidental.
1.Começa por reconhecer, nestas últimas décadas, o desaparecimento da actividade intelectual autónoma. «Infelizmente, os intelectuais contemporâneos têm revelado uma surpreendente falta de interesse informado na essência da política pública» (…) «Isso relegou para os especialistas políticos e os think tanks – junto dos quais raramente tem lugar a opinião não convencional – os debates sobre o modo como nos devemos governar.» «Até os intelectuais se curvaram à guerra do Iraque.» Ficamos, portanto, diante de questões que «são assuntos para especialistas» a ser abordados com uma «linguagem cada vez mais obscura». «A liturgia deve ser entoada numa língua misteriosa, só acessível aos iniciados. Para todos os demais, basta a fé.»
2.Donde a tentação da via do «apolítico» - «a ideia de que já que a política está tão degradada na nossa época, devíamos desistir dela.» (…) «O impulso moral é inatacável. Mas as repúblicas e as democracias só existem em virtude do empenho dos seus cidadãos na gestão dos assuntos públicos. Se os cidadãos activos ou preocupados abdicarem da política, estarão assim a abandonar a sua sociedade aos seus funcionários públicos mais medíocres e venais.» (…) «Quando na Alemanha Ocidental dos anos 60 os jovens radicais perderam todo o respeito pela República Federal e pelo Bundestag (parlamento), formaram «grupos de acção extraparlamentar»: precursores do terrorismo desorientado do Bando de Baader-Meinhoff.»
3.Tony Judt constata a supressão do debate de ideias [indispensável ler os 4 Artigos do dossiê «QUE SE APRENDE NAS UNIVERSIDADES?», Courrier International, Set 2010, edição em português, nº175, 3,5 euros; onde se mostra como a Educação e o Ensino Universitário (nos USA, na Europa e até na índia) foram forçados a estar ao serviço do «crescimento económico» e como se estupidificaram, quer alunos, quer investigadores universitários, que passaram a ‘seres humanos de espinha partida’ muito próximos dos autómatos, nos quais deixou de existir o «espaço potencial», aquela zona intermédia entre a pessoa e o exterior, precisamente aí onde a criança e o adulto experimentam a noção de diversidade, de curiosidade e de inventividade imprescindíveis para «a originalidade, a produtividade e o crescimento económico»]. Impressiona a arrepiante anomia dos pensadores-intelectuais e dos professores universitários diante de duas questões: (a) a de que “não há almoços grátis” (vide João César das Neves, Universidade Católica Portuguesa), de que tudo tem um ‘valor de mercado’, de que tudo foi subjugado à contabilidade e, pour cause, todos os seres humanos foram humilhados a ser apenas parte da matemática neo-liberal reinante. (b) a de que os Serviços Públicos também têm que ‘dar lucro’ (não podem dar prejuízo contabilístico, não podem ser despesa do Estado). O pensamento intelectual forjou um discurso acrítico assente nessa lógica económica que nos traz ao colo desde os anos 60 e em quem nós fomos entregando o voto ano após ano sem nos darmos conta de que ele se consolidava à custa da expansão e massificação dos media fortemente alicerçados na ‘imagem’ e no ‘show’; show do entretenimento televisivo desprovido de verdadeira ‘comunicação’ e da miserável passividade intelectual que agora nos está a custar caríssimo. [um padre meu amigo dizia-me há tempos: «se já há quem pense, para quê pensar?»]
4.Tony Judt apela a «uma nova narrativa moral?». Diz ele: «Portanto, o que fazer? Que espécie de enquadramento político ou moral pode a esquerda propor para explicar e justificar os seus objectivos? Já não existe espaço para a narrativa de base ao estilo antigo: a teoria abrangente de tudo. Nem nos podemos refugiar na religião. (…) Se uma política pública estivesse a ser justificada com base teológica» (…) «muita gente no Ocidente ficaria perplexa». Mas «para convencer outros de que algo é correcto ou errado, precisamos de uma linguagem de fins, e não de meios. Não temos de acreditar que os nossos objectivos estão prestes a ter sucesso. Mas precisamos de poder acreditar neles. O cepticismo político é a fonte de tantos dos nossos dilemas.» Perdemos, diz Tony Judt, as noções de «justo», de «razoável», de «aceitável», «a noção de prudência», de compromisso moral, que nos permita afirmar com convicção que «é preciso algum tipo de restrição mútua» se queremos levar a sério todos os nossos desejos. É que «os fins colectivos podem conter objectivos concorrentes».
5.No último parágrafo do capítulo V, Tony Judt afirma: «De todos os objectivos concorrentes e só em parte conciliáveis que possamos procurar, a redução da desigualdade deve ter prioridade. Em condições de desigualdade endémica, todos os outros objectivos desejáveis tornam-se difíceis de obter.» (…) «Neste sentido, o acesso desigual a recursos de toda a espécie – dos direitos à água – é o ponto de partida de qualquer crítica verdadeiramente progressista do mundo. Mas a desigualdade não é só um problema técnico. Ela ilustra e exacerba a perda de coesão social – a sensação de viver numa série de comunidades vedadas cujo objectivo principal é manter os outros (menos afortunados que nós) do lado de fora e limitar as nossas vantagens a nós e às nossas famílias: uma doença da época e a maior ameaça à saúde de qualquer democracia.» [ver: “Um só mundo – a ética da globalização”, Peter Singer, Gradiva]
«Se continuarmos grotescamente desiguais, perderemos toda a noção de fraternidade: e a fraternidade, apesar de toda a sua tolice como objectivo político, revela-se a condição necessária da própria política. Há muito que o inculcamento de um objectivo de vida comum e dependência mútua é considerado a cavilha de segurança de qualquer comunidade. Agir juntos com um propósito comum é origem de enorme satisfação em tudo, dos desportos amadores aos exércitos profissionais. Nesse aspecto, sempre soubemos que a desigualdade não é só moralmente inquietante: é ineficaz. (…)
«Uma população menos estratificada é também uma população mais bem instruída: melhorar as oportunidades dos que estão em baixo não reduz em nada as perspectivas dos que estão bem de vida. E populações mais bem instruídas não só levam vidas melhores, como se adaptam melhor e com menos custos a mudanças técnicas perturbadoras. Existem muitas indicações de que mesmo os que prosperam em sociedades desiguais seriam mais felizes se o fosso que os separa da maioria dos seus concidadãos se reduzisse de maneira significativa. Decerto viveriam mais seguros. Mas isso envolve mais do que o mero interesse próprio: viver na proximidade de pessoas cuja situação constitui uma censura ética permanente é fonte de desconforto até para os ricos.»
«As consequências corrosivas da inveja e do ressentimento…».
«O egoísmo é incómodo até para os egoístas.»
«Chegou a altura de inverter esta tendência.»
[pp. 152-177]