teologia para leigos

18 de abril de 2011

RESSURREIÇÃO REPENSADA [FAUS E QUEIRUGA] 5/6


5agora vemos como num espelho fosco…» [1Cor 13:12]


Taizé


 A Radicalidade do apelo ao compromisso

A liberdade e a criatividade têm de prolongar-se hoje na nova realidade político-social histórica, agora que se tornou central a preocupação político-social num mundo unificado até à globalização, ainda que dividido por barreiras inumanas. Sempre a experiência bíblica se preocupou intensamente com esta dimensão, ao ponto de a constituir no eixo da pregação profética. Sabia mesmo do perigo que é deixar-se cegar pelos privilégios da aliança com o poder e com o dinheiro: nessa altura, também havia profetas que «anunciam a paz quando alguém lhes dá de comer. Mas declaram guerra santa àquele que não lhes enche o estômago». [Miqueias 3:5]

Essa preocupação continua em Jesus de Nazaré que a rubricará com o próprio sangue; e os resultados da ‘terceira busca’ mostram até que ponto a sua preocupação e a sua actividade estavam imersas na circunstância económica, social e política do seu tempo.

Não se trata, pois, de algo estranho à mais genuína tradição cristã, mas duma reconfiguração num novo contexto. Felizmente, ainda que com algum atraso histórico, a teologia tomou conta da questão e, nas suas linhas fundamentais, graças sobretudo à teologia política, à teologia da esperança e à teologia da libertação, pode dizer-se que se conseguiu a clarificação fundamental. Não se trata de o repetir aqui, mas apenas de insinuar alguns aspectos em ligação com o exposto. Concretamente, dois aspectos: a radicalidade do apelo ao compromisso histórico e o carácter peculiar da esperança.


A radicalidade do chamamento ou apelo, em primeiro lugar. A emancipação das ciências sociais faz com que os diagnósticos de situação e as medidas técnicas – as mediações – por onde deveriam ir as soluções não sejam competência específica da teologia. Não é aí que reside o contributo da fé, pois esta pode e deve aprender das instâncias especializadas, cada a caso. É no horizonte dum sentido em que há-de enquadrar-se e no compromisso vital que há-de assumir, que se faz sentir o específico cristão. A primazia do pobre como referente, o espírito de serviço como atitude, a fraternidade real como meta surge com toda a evidência na vida de Jesus. A sua disponibilidade até à cruz mostra que o caminho estará sempre em aberto diante de uma generosidade sempre maior (que a maioria de nós nunca alcançará). Porém, isso, pelo menos, marca a direcção, assegurando que os passos dados nesse sentido nunca serão em vão.

Pode parecer idealismo, e de facto demasiadas vezes ficou-se pelo mero espiritualismo. Porém, ainda que reconheçamos todos os fracassos da história, não é possível negar que o apelo de Jesus, incarnado na sua vida concreta, mostrou-se sempre como um fermento inextinguível, que nem as piores épocas puderam encobrir. E a história mostra que muito do que de melhor neste terreno se foi produzindo, e se produz na consciência ocidental, tem nele a sua condição de possibilidade. Infelizmente, muitas vezes o seu influxo teve de realizar-se através do protesto contra o cristianismo. É tempo de o reconhecer com humildade, vendo na própria denúncia uma autêntica «profecia externa». [E. Schillebeeckx, Los hombres, relato de Dios, Salamanca 1994, 341-348] De facto, a renovação aludida não seria explicável sem esta chamada a partir de fora: Jürgen Moltmann nunca ocultou o impacto de E. Bloch sobre a sua teologia, e o impulso do socialismo marxista nunca foi negado pelos teólogos da libertação, apesar das distorcidas interpretações de que foi objecto.

Porque o “externo” do apelo não anula o “profético” dele: se se prestar a devida atenção, longe de afastar da essência cristã, o apelo externo leva o lado profético às suas raízes mais radicais. No plano do vivencial, o contacto com Jesus de Nazaré continua sendo fonte viva de generosidade e de entrega, como, apesar dos seus fracassos, mostra a “história da caridade cristã”, bem elaborada pela “espiritualidade da libertação”. [P. Casaldáliga & J M Vigil, Espiritualidade de la liberación, Santander 1992]

No que diz respeito à prática concreta, num mundo que nem sequer é capaz de cumprir o seu compromisso de entregar 0,7% da sua riqueza aos países pobres, não cansa recordar o contínuo escândalo que consiste o apelo de Jesus a dar «metade dos seus bens». [isto explica que, na mesmíssima praxis política, um cristianismo consequente acaba por ser um fermento crítico que nem sempre é bem aproveitado por um certo progressismo de «esquerda»: cf. as considerações de R. Diaz-Salazar, La izquierda y el cristianismo, Madrid 1998]




A radicalidade do apelo (ou chamamento) não garante assentimento imediato, mas revela-se como «uma força autenticamente crítica e produtiva, uma força libertadora». [E. Schillebeeckx, o.c. 205] De facto, S. Paulo explicitara-o de maneira radical. Para ele, longe de arrancar o crente da história, a fé na ressurreição entrega-o radicalmente a ela, até ao permanente perigo, até mesmo à beira da morte, até ao martírio violento (1 Cor 15:30-32)

E não só como consequência pessoal, testemunhada na sua vida, mas como princípio válido para toda a comunidade. Essa é a conclusão que, no fim de todo o seu raciocínio, retira: “Assim, meus irmãos, mantende-vos firmes e inabaláveis; aplicai-vos, cada vez mais, à obra do Senhor…” (v.58).


Pelo contrário, segundo S. Paulo, é a renúncia a essa fé (na ressurreição) – seja pela simples negação, seja pelo «entusiasmo» de se julgarem já ressuscitados ou através duma interpretação espiritualizante da imortalidade da alma apenas – que paralisa a acção e o compromisso: “Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos que amanhã morreremos” (v.32).

Andrés Torres Queiruga

[fotos pb: Comunidade Ecuménica de Taizé, 2008]