teologia para leigos

15 de abril de 2011

RESSURREIÇÃO REPENSADA [FAUS E QUEIRUGA] 4/6


4agora vemos como num espelho fosco…» [1Cor 13:12]


D. Helder Câmara_Brasil


Apesar da cruz

A ressurreição marca o específico da pisteodicea cristã [‘pistis’, fé]: reconhecendo a inevitabilidade do mal, que na morte culmina, acredita na sua superação definitiva graças ao poder de Deus, que até é capaz de quebrar o poder deste inimigo último ressuscitando os mortos. É o que (pressentido em todas as religiões) a fé cristã leu, de modo especialmente intenso, no destino de Jesus de Nazaré. Poderá aceitar-se ou não esta leitura, mas do que não poderá ser acusada é de contraditória ou incoerente.

Estamos perante algo que é muito importante face às perguntas da razão secularizada, pois permite medir em todo o seu alcance a importância da ressurreição.

Num âmbito mais geral, confere maior coerência e capacidade de convicção a um tema tão vivo e actual como o formulado pelo tema do ‘sentido da história’. Isso fora pressentido no já citado diálogo entre Walter Benjamin e Max Horkheimer e reafirmou-se nas teologias da praxe crítica: a ressurreição parece a única resposta possível ao destino das vítimas, que de outro modo se sumiriam para sempre no absurdo da sua derrota irreparável. Uma vez mais se confirma como a aproximação da experiência cristã à razão crítica, que pode a princípio causar perturbação, acaba por se manifestar como uma saída verdadeiramente fecunda.

Ora, tal facto aparece com mais claridade num plano imanentemente teológico. Antes de mais nada, podemos perceber em toda a sua fundura o «era necessárioedei - que Cristo padecesse» [Lc 24:26]. Sempre a consciência religiosa intuiu aí uma necessidade, algo de inevitável. Ora, num contexto mental em que tudo era atribuído directamente a Deus, tinha que ser interpretado assim julgando-o como inevitável, ou, porque Deus assim dispusera as coisas (podendo dispô-las de outro modo). Mas, um passo mais, e pôde-se descobrir uma necessidade mais íntima: a da contradição provocada na finitude da liberdade humana, pelo choque entre a bondade e os interesses da maldade. É o tema do Justo que sofre, presente já na Mesopotâmia [M. Garcia Cordero, Biblia y legado del Antiguo Oriente, Madrid 1977, 626-631], no próprio Platão [«se o Justo é assim, será fustigado, torturado, amarrado, queimar-lhe-ão os olhos e, logo após ter sofrido todo o tipo de males, será crucificado e, diante dele, perceber-se-á que não convém ser Justo, mas apenas parecê-lo», Politeia, livro II, 361e-362a], o que está vivo no Servo Sofredor [Isaías 42:1-9; 49:1-9a;50:4-11;52:13.53:12], figura aplicada a Cristo no Novo Testamento unida ao tema do profeta perseguido e assassinado [Mt 5:12;23:34].

A mediação «ponerológica» [‘ponerós’, mal] constitui o terceiro passo, aquele que retira as últimas consequências e põe em claro a inevitabilidade objectiva. Desse modo se deixa ver, em toda a sua grandeza, o amor divino. Deus não «planifica» ou «permite» a cruz, apenas a «suporta»: tal como Jesus, o Pai não deseja essa morte, mas «aguenta-a» como algo inevitável, acompanhando-O e apoiando-O com todo o seu amor para que não atraiçoe a sua missão. Deus não precisa da cruz para a salvação, mas quer a salvação apesar da cruz. 




 No que concerne ao problema do ‘mal’, isto é decisivo, porque assim se compreende em toda a sua seriedade que Deus é o Anti-mal: é aquele que está ao nosso lado de frente para o mal; e, por isso, é aquele que nos assegura a vitória definitiva. Sofre com Jesus na cruz, facto que «não pode» evitar, mas anuncia-nos, na ressurreição, a vitória, que, essa sim, Ele pode realizar, inclusivamente para lá dos limites da história.



«O ‘ter que sofrer’ messiânico de Jesus não é um ter-que imposto ‘a partir de Deus’. Através de Jesus, é imposto a Deus pelos homens. Porém, não dá xeque-mate a Deus, nem a Jesus. NÃO. E não em virtude da ressurreição em si, a qual seria nesse caso entendida como uma espécie de compensação para o fracasso histórico da mensagem e da praxis da vida de Jesus, mas porque o ‘ir pela palestina fazendo o bem’ era já o começo do reino de Deus: de um reino em que a morte e a injustiça não têm lugar. Na praxis do reino de Deus em Jesus está já antecipada a ressurreição. A fé pascal afirma que o assassinato – e toda a forma de mal – não têm futuro. É precisamente assim que a morte é vencida. O Crucificado é também o ressuscitado.»

[E. Schillebeeckx, ‘Los hombres, relato de Dios’, Salamanca 1994, 202]


E aqui reaparece a importância da solidariedade total entre o destino de Jesus e o nosso próprio destino, entre a sua ressurreição e a nossa. Se o mal o morde a Ele, morde-nos a nós – o mesmo terá que suceder com a sua vitória. Por outro lado, se a sua ressurreição fosse única – já realizada, ainda que à nossa espera – nunca poderíamos estar verdadeiramente seguros de que o seu afrontamento do mal reflectia, na verdade, o destino comum da humanidade, nem de que a sua vitória na ressurreição representasse idêntica esperança para nós.

Andrés Torres Queiruga

[fotos PB: D. Helder Câmara, Brasil & parede da Igreja da Reconciliação, Taizé]