E agora?
Após as celebrações (da Páscoa e do 25 de Abril), regressa-se a quê?
Após um certo júbilo que dificilmente se correlaciona («Ressuscitou, Ressuscitou!!!»), após os punhos cerrados erguidos ao ar, meio impotentes, duma «cassete riscada» («25 de Abril sempre, Fascismo nunca mais!!!»), eis-nos de volta «ao deserto do real» [Slavoj ZizeK].
Todas as vezes que o futuro se fecha, a fuga empurra-nos para a mitologização do agora ou para o revivalismo do passado. E esse agora pode ser tão inebriante como o álcool dum mito pessoano, pascoaliano e sebastianista. Neste contexto, a ‘filosofia da saudade’ [Pascoaes fala até da «revelação da saudade»] pode desempenhar um papel que desperta uma certa curiosidade esperançosa. «Deu-nos, a revelação da Saudade, o conhecimento da essência espiritual da nossa Raça, na sua íntima figura extática e nas suas exteriores e activas qualidades. Logicamente nos dará também o conhecimento do seu profundo sonho secular, cada vez mais despido da originária névoa encobridora e mais alumiado nas suas formas definidas. Sabemos que a Saudade, ou a alma pátria, significa, em vida activa e sentimental, em génio popular, a eterna Renascença, a eterna aspiração humana, já celebrada nos Mistérios de Elêusis, entrevista nas éclogas de Virgílio, tentada, mais tarde, pelas artes plásticas, na Itália, e, nos tempos modernos, pelas obras de certos escritores que lhe inspiraram as feições da sua raça, como Victor Hugo, Wagner, Nietzsche e Ibsen – mas só instintivamente sentida pelos nossos poetas, incluindo o Povo.» [‘Arte de ser Português’, Teixeira de Pascoaes]
O seu exotismo, refulge, nunca como HOJE, na arte de traçar os contornos de se «ser português», fascínio comovente, possuído de um dramatismo helénico em cima da HORA: «colocar a nossa Pátria ressurgida em frente ao seu Destino». [‘Arte de ser Português’, Teixeira de Pascoaes] E, de seguida, a também empolgante laboração de conceitos culturais, tais como, RAÇA, HERANÇA E TRADIÇÃO, CARÁCTER OU PERSONALIDADE, e PÁTRIA.
Em tempos de crise, o exótico fascina e atrai!
A Filosofia, a Espiritualidade e a Cultura em geral, são quase irresistíveis, tão fortes que são os seus apelos.
O nosso catolicismo português de agora procura, também, o seu futuro.
Sem consciência histórica, desmemoriado, atolado num mar de propostas sedutoras, descobre a custo, por entre um ‘nevoeiro demasiado transparente’, o isco da CULTURA (que alguém, ironicamente, já denominou de dentífrico de urgência, pepsodente branqueador de última hora…). Esbracejando dentro da nuvem, a Igreja Católica portuguesa vira as costas à radicalidade do Evangelho (1 Cor 9:22 - «fiz-me fraco com os fracos para ganhar os fracos») e procura «novas formas de expressão cultural» para aquele (velhinho) Evangelho de Jesus de Nazaré, numa linha de in-culturação, que mais não é do que a harmonização ou sintonização das formas de expressão duma certa «arte de ser católico e português» [frei Bento Domingues] com os tempos pós-modernos.
A Religião sempre se exprimiu sob formas culturais – e parece que se deu bem com isso. O casamento entre Religião e Cultura é, pois, universal e pacífico, sendo um fenómeno individualista (questão entre o homem e deus), a-histórico e a-social. O «diálogo» Fé-Razão (ou Religião e Cultura) já deu o que tinha a dar, para efeitos de Anúncio do Reino - nunca passou de um exercício intelectual racionalizador ou polemizador; nunca tocou o coração, apenas a Razão. Não se entende que seja elevado, agora, a filão evangelizante.
O Cristianismo, porém, sempre se manifestou como fenómeno contra-cultural e cordial. As relações entre o Evangelho Libertador de Jesus de Nazaré e a Cultura sempre foram tensas (vide a história do cristianismo). Até Constantino, o impulso emergente do Espírito Pentecostal abalou, primeiro, o Judaísmo e, depois, o Império romano. Mesmo depois de Constantino (séc. III), e de uma forma que considero rebaixante para a Fé no Crucificado, sobretudo a partir da identificação do cristianismo com o Império romano, ele foi arma de arremesso usada para criar clivagens irresolúveis com a cultura persa e serviu, até, para fortalecer o eurocentrismo [recorde-se o infeliz e, quem sabe, intencional 'discurso', há tempos, por parte de Bento XVI, atiçando e provocando a herança do Islão num claro confronto de 'pugilato' com a herança cristã]. Ou seja, posto ao serviço do menosprezo das igrejas orientais e usado como factor de enfrentamento dos «inimigos da fé» (os crentes do Islão), o cristianismo tornou-se apenas «parte substancial daquilo que se chama civilização ocidental» [Manuel Sotomayor e José Fernandez Ubiña], esvaindo-se do seu carácter supra-cultural, supra-nacional e ecuménico. Apesar de tudo e de todos, o Cristianismo continua sendo um fenómeno contra-cultural.
Importa dizer que a Arte, a Natureza, a Beleza apenas indiciam Deus.
Porém, Deus, o Deus de Jesus de Nazaré (que, em boa parte, já vem de trás) não se revela na Arte, não se revela na bela e fascinante Natureza que, usualmente, nos inunda duma certa harmonia, quietude e paz (se formos capazes de esquecer e, por uns instantes, passar por cima dos seus cataclismos de horror). O Deus de Jesus Cristo revela-se apenas na História dos homens, aí onde o coração da História explode em drama de ser e querer-existir mais plenamente. “O Senhor disse: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel (…)»”. [livro do Êxodo 3:7-8] Mais tarde, precisamenente em cima do drama do acontecimento bárbaro da morte de Jesus de Nazaré, Deus volta a revelar-se (desta vez pela boca dum pagão, um centurião romano): “Então, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo. A terra tremeu e as rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos, que estavam mortos, ressuscitaram; e, saindo dos túmulos depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos. O centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o tremor de terra e o que estava a acontecer, ficaram apavorados e disseram: «Este era verdadeiramente o Filho de Deus!»”. [evangelho segundo Mateus 27:51-54]
Após as celebrações da Páscoa cristã e do 25 de Abril português, importa perguntar: e agora?
Após as viagens, depois de séculos e séculos de viagens, o cristianismo deve regressar a Casa. A Cultura é um álibi fascinante (pastoralmente falando), mas nunca converteu ninguém. [faça-se a avaliação objectiva do impacto do encontro Papal, no Centro Cultural de Belém, com as pessoas da Cultura e tentemos responder à seguinte pergunta: quantas daquelas pessoas não cristãs pediram para ser integradas em Comunidades Cristãs eucarísticas ou pediram o Baptismo?] Ao longo dos séculos, a única coisa que a Cultura foi capaz de fazer foi: destruição de identidades, nivelamento do diferente, justificação de guerras, colonização (política e mercantil) e a fabricação de elites burguesas. Sempre que o Cristianismo foi usado como ‘arma cultural’, fragilizou-se e ficou refém da humilhação, da invasão, da exploração , da guerra, justificando a barbárie. A Globalização é o mais jovem e acabado produto do fenómeno cultura pós moderna: ele aí está, erguido sobre as suas sete patas de barbárie!, qual Grande Besta Apocalíptica. As propostas de ‘diálogo com o Mundo’ (que partem de Bento XVI e G. Ravasi) são o que de melhor o Vaticano tem para propor como «nova evangelização da Europa». Que tem, o Evangelho de Jesus de Nazaré, a dizer-lhe? Apenas: regressemos a Casa!
E porquê ‘regressemos a casa’?
Em que consiste ‘regressar a Casa’?
[Numa outra entrada deste blog, abordamos já esta questão: a estratégia de S. Paulo no Areópago (Actos 17:16-34) e, depois, seu mea-culpa na Carta aos Coríntios (1 Cor 2)]
'Regressar a casa' consiste, apenas, em ser fiel ao Espírito do Ressuscitado. Aquele que foi bárbara e injustamente morto, Deus sentou-o à sua direita. Aquele que «passou irradiando o bem e curando a todos» de toda a espécie de mal [Actos 10:38], independentemente da sua religião, nacionalidade ou género, Esse foi reconhecido como ‘rosto de Deus’, espelho onde podemos ver a Deus.
Discurso de Pedro em casa de Cornélio – Cap. 10: 34Então, Pedro tomou a palavra e disse: «Reconheço, na verdade, que Deus não faz acepção de pessoas, 35mas que, em qualquer povo, quem o teme e põe em prática a justiça, lhe é agradável. 36Enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando-lhes a Boa-Nova da paz, por Jesus Cristo, Ele que é o Senhor de todos. 37Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do baptismo que João pregou: 38como Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo mal, porque Deus estava com Ele. 39E nós somos testemunhas do que Ele fez no país dos judeus e em Jerusalém. A Ele, que mataram, suspendendo-o de um madeiro, 40Deus ressuscitou-o, ao terceiro dia, e permitiu-lhe manifestar-se, 41não a todo o povo, mas às testemunhas anteriormente designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele, depois da sua ressurreição dos mortos.
42E mandou-nos pregar ao povo e confirmar que Ele é que foi constituído, por Deus, juiz dos vivos e dos mortos.
43É dele que todos os profetas dão testemunho: quem acredita nele recebe, pelo seu nome, a remissão dos pecados.» [Bíblia da DIFUSORA BÍBLICA]
Os cristãos não têm mais nada a fazer, se não: ser testemunhas VIVAS do que Ele fez. Como? Andando de lugar em lugar fazendo o bem e libertando; reconhecendo a todos (a todas e a todos MESMO) como obra da criação de Deus [cf. At 10:15]. Depois, reunindo, para 'deitar mais azeite na lamparina' – ou seja, manter a esperança acesa. Como? REGRESSANDO A CASA - comendo a eucaristia com(ao lado de) Jesus nosso irmão, morto e ressuscitado; combatendo o desespero. Como? Recolhendo a herança de TODOS os profetas da humanidade [Gandhi, Óscar Romero, I. Ellacuria, Helder Câmara, Pedro Casaldáliga], a qual culmina no Profeta dos profetas, JESUS DE NAZARÉ, aquele que anuncia a incontável multidão dos que viveram a tribulação, passaram sua vestes pelo sangue do martírio, lavaram suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro – a esses Deus promete que enxugará todas as lágrimas dos seus olhos! [cf. Apocalipse 7:14]
Sem Casa, sem Comunidade Local de escala humana, sem «comunidade de gente de sangue com veias dentro» (comunidade comunicante de vida-a-palpitar, e comunicativa de vida a viver), não há pastoral (da Cultura ou outra) que resista ao tempo.
Sem Comunidade de Partilha de Bens não há Igreja! [1 Cor 11:33 - «esperai uns pelos outros»] Sem Comunidade de Partilha de Sofrimentos, de Rostos, Sangue, Suor e Lágrimas não há Igreja! Uma Igreja de auditórios bem instalados não é a Igreja de Cristo! Uma Igreja extática, enlevada de olhos em branco, suspirosa e consolada, não é Igreja!
Sem Comunidade de Partilha de Bens não há Igreja! [1 Cor 11:33 - «esperai uns pelos outros»] Sem Comunidade de Partilha de Sofrimentos, de Rostos, Sangue, Suor e Lágrimas não há Igreja! Uma Igreja de auditórios bem instalados não é a Igreja de Cristo! Uma Igreja extática, enlevada de olhos em branco, suspirosa e consolada, não é Igreja!
Uma Igreja sem o Espírito de Jesus Cristo, assassinado mas recolhido (posto a salvo, ressuscitado) por Deus, não é a Igreja dos que O «servem de noite e dia» [Ap 7:15]. Uma Igreja que não é capaz de fazer opções recusando a pastoral de massas (cf. At 10:40-41: «Deus ressuscitou-o, ao terceiro dia, e permitiu-lhe manifestar-se, não a todo o povo, mas às testemunhas») ou que não denuncie a dominação cultural neo-liberal, não é a Igreja do Ressuscitado a partir da Cruz !
Uma Igreja que perca o espírito de profecia e o do discernimento da inteligência (1 Cor 14:1.15), ou seja, uma Igreja que não interrogue e enfrente, não é Igreja!
Uma Igreja que perca o espírito de profecia e o do discernimento da inteligência (1 Cor 14:1.15), ou seja, uma Igreja que não interrogue e enfrente, não é Igreja!
A Cultura que Jesus cultivou foi esta: a da universal Cruz da Ressurreição! aquela que a todos salva – vítimas e verdugos. A Cultura que (também) está com os pobres para lhes incutir um pouco de esperança.
Sem uma teologia da Cruz, toda e qualquer pastoral será sempre extática ou eufórica e, mais tarde ou mais cedo, frustrará porque passará, como inevitavelmente toda a Cultura tenderá a passar. O êxtase diante duma obra de Arte será diferente de um outro diante do Santíssimo envolto em incenso? Em si, êxtase é êxtase, e não deverá haverá diferença espiritual entre os dois. Quem entra em êxtase e repele a inteligência não edifica a Comunidade, porque não instrui (1 Cor 14:19). Os êxtases culturais nem são religiosos, nem são laicos - são êxtases, apenas. A Fé não pode ter como suporte o extático do belo ou outro, sob pena de não «amassar comunidade» , de dispersar ou 'desordenar' a assembleia (1 Cor 14:2.32-33) . O êxtase 'fala em línguas', e «quem fala em línguas edifica-se a si mesmo [mas quem profetiza edifica a assembleia» (v.4)].
Sem uma teologia da Cruz, só nos vangloriamos a nós próprios; apenas alimentamos a nossa consciência burguesa, a nossa vaidade, cultivamos uma fé de 'separados', de elite farisaica!
A vida dentro da Casa de Jesus assemelha-se mais a uma “tenda de refugiados” [Ernst Käsemann], que a um auditório em êxtase, que a uma multidão pública, que a um fenómeno de massas ou a um big-face-book intimista. Nela, na «tenda» de Jesus, na Casa, a mesa-comum estará sempre posta, municiada e servida por gente frágil e simples - gente que serve em Casa que acolhe. «Gente pobre que do pouco faz muito!» [presbítero Leonel Oliveira - Porto]
Sem uma teologia da Cruz, só nos vangloriamos a nós próprios; apenas alimentamos a nossa consciência burguesa, a nossa vaidade, cultivamos uma fé de 'separados', de elite farisaica!
Esta é a única cultura que na pastoral perdura.