teologia para leigos

11 de abril de 2011

RESSURREIÇÃO REPENSADA [FAUS E QUEIRUGA] 1/6


1.«agora vemos como num espelho fosco…» [1Cor 13:12]



Páscoa 2011 - Contexto humano: o princípio esperança


Poucos meses antes de morrer, em 1980, e numa entrevista concedida se não me engano ao diário Le Monde, o filósofo Jean Paul Sartre reconhecia que «diante desta mixórdia miserável que o nosso planeta é, volta a atormentar-me o desespero: a ideia de que tudo terá um fim, de que só existem fins particulares por que lutar. Não existe um só objectivo humano. Nada mais que desordem». O filósofo reconhecia a necessidade de uma ética bem fundada. E confessava: «(diante do desespero) resistirei com a máxima justiça e sei que morrerei na esperança, uma esperança, contudo, que é necessário fundamentar-se».

Não se tratam de especulações filosóficas ininteligíveis, mas de algo que marca profundamente toda a nossa condição humana e que tentamos redizer duma maneira mais universalizável:

·       O triunfo da morteQuanto sofrimento até morrer», dizia o poeta. Ou, com as palavras mais sóbrias de Sartre: «Tudo acabará»).
·       O triunfo do verdugo (ainda por cima, é ele que acaba por escrever a História). Com as palavras de Sartre: o desespero diante da «mixórdia miserável do nosso planeta onde só existem fins particulares e nenhum objectivo humano».
·       O triunfo do fracasso, ou a derrota das utopias, pois que, ao fim e ao cabo, a realidade acaba por se impor («Nada mais que desordem»).

Estas três grandes questões – a morte, a injustiça e a utopia – marcam a vida e a história humanas e clamam por uma razão positiva que nos permita acreditar que a esperança não é mero voluntarismo cego que não pára de semear a vida com vãs promessas. A grandeza das declarações de Sartre provém precisamente da fé em que, resistir a essa dinâmica, é uma questão de «justiça» e que há que «manter a esperança». Pois, render-se de antemão ante a evidência de que essas questões não têm solução, acaba por significar, por um lado, o embrutecimento a que chegaram as pessoas, e, por outro, aceitar que a sociedade humana no seu conjunto se degrade ao nível duma mixórdia mais do que miserável. Ou, por outras palavras: a resistência a essa tríplice lei não prova que ela não seja verdadeira. Mas mostra, isso sim, que é inaceitável.

Será demasiado pessimista esta descrição do nosso contexto humano? Não será possível prescindir dele e viver «relativamente bem»? Permitam-me um par de pinceladas para me explicar melhor.

A morte acaba por ter a última palavra. O decisivo não é morrer, mas saber que se morrerá. O problema não é como é que a morte influirá quando chegar (nessa altura já cá não estarei), mas como influencia agora que sei que virá, sendo certo que o esquecimento disso mesmo é já uma forma de influenciar. Pois que a reacção «se só temos quatro dias para viver, então vivamo-los…» é sem dúvida a que mais convida a fechar os olhos diante do que quer que seja e a abri-los apenas para si próprio.

A História acaba sempre por ser escrita pelos vencedores. Os vencedores dão sempre por assente que a sua causa é a mais justa e que, com eles, a justiça sempre triunfa. Mas acabam sempre por esconder, não só a parcialidade da sua possível justa causa, bem como os meios injustos e cruéis que são imprescindíveis para que qualquer causa triunfe, o que acaba por desautorizá-la. A patética imagem do presidente Aznar, defendendo quase aos gritos a sua colaboração na barbárie da NATO no Kosovo, já que «havia sido um êxito» (enquanto o criminoso Milosevic permanecia no seu posto, o país que não era culpado de nada ficava destruído e os ódios alcançavam níveis quase incuráveis) parece-me uma imagem da humanidade universal e não apenas o ridículo dum personagem particular.

A realidade impõe-se. Lembremos a trajectória de tantos amores eternos que acabam sendo bons guiões para filmes como American Beauty. Lembremos a decepção de tantas ilusões profissionais juvenis. Recordemos aquele ministro que exortava os jovens a não cometerem os erros que ele cometeu, ele que tinha sido comunista na juventude, até que conseguiu descobrir o verdadeiro progresso… Recordemos também a frase de T. Adorno – que mais tarde retomaremos – sobre a necessidade de olhar as coisas «a partir da utopia», caso queiramos pensar correctamente. A utopia, essa impossível ânsia humana de plenitude. Quando se põe de parte esse ponto de vista, toda a crítica se torna impossível (salvo a que serve para insultar o adversário e engordar à custa dele). Cai-se na canonização de todas as coisas.

Está na moda dizer mal das utopias. Mas quando morrem as utopias nascem as idolatrias ou pequenas causas legítimas convertidas em absoluto, às quais acabamos por oferendar sacrifícios humanos. A própria defesa absoluta da vida é já uma utopia, a única que parece sobejar nos tempos que correm. Mas pensemos no que aconteceria se, reconhecendo-a como tal (como utopia), deixássemos de olhar as coisas a partir do valor absoluto da vida.

Morte, injustiça, frustração. Se quisermos, acrescentemos a estes três aspectos do nosso viver, a aparente irreversibilidade da vida. Jaime (30 anos, vítima da heroína e da SIDA) dizia-me poucos dias antes de morrer: «Não sou uma pessoa religiosa, mas a vida é mesmo canalha: erras uma vez e já não tens remédio. Foi o que me aconteceu a mim». Procurei garantir-lhe que, não a dimensão religiosa, mas a dimensão crente da pessoa humana implica a confiança de que sempre ‘haverá um jeito’ para o que quer que tenha sido a sua vida. E que foi isso mesmo que muitos reconheceram em Jesus de Nazaré. (…)

Basta a evocação destes problemas.
Fiquemos, por agora, apenas com esta conclusão: é enormemente humana a pergunta se em algum lugar alguma vez aconteceu uma vitória ou uma palavra que proclamasse decisivamente a desautorização da morte esmagando-lhe todo o poder, se aconteceu a desautorização dos vencedores reabilitando as suas vítimas e a desautorização da realidade que sempre acaba por vingar. Esta é uma pergunta profundamente humana, mesmo que não lhe saibamos dar uma resposta. Porque, só à custa do rebaixamento do seu nível e da sua qualidade de vida, é que o ser humano poderia iludir esta questão.

José Ignacio González Faus, sj, responsável pelo Centro de Estudos ‘Cristianisme i Justícia’ [Barcelona]


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[foto pb: mural em Checkpoint Charlie, Berlim]