teologia para leigos

12 de abril de 2011

RESSURREIÇÃO REPENSADA [FAUS E QUEIRUGA] 2/6


2. «agora vemos como num espelho fosco…» [1Cor 13:12]




Páscoa 2011 - Em busca dum significado para a Ressurreição

«A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, tua vitória? Onde, o teu poder? O poder da morte é a força do mal. Mas Deus, por meio de Jesus Cristo, dá-nos a vitória sobre o mal.» [1 Cor 15:55]

«Bendito seja Deus que, em sua grande misericórdia, mediante a Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos, nos fez renascer de novo para uma esperança viva.» [1 Pe 1:3]


O sentido de um acontecimento não é o mesmo que o seu significado. Com a primeira expressão buscamos uma descrição o mais precisa possível dos factos aos quais tentamos aceder. De alguma forma, o sentido pertence aos factos em si, já que ao nosso conhecimento humano só se dão ‘factos já interpretados’. O significado é algo ulterior: tem o seu quê de ‘consequência’ que aos poucos se destila dos factos. E tratando-se de um acontecimento escatológico como o que acabamos de descrever [a Ressurreição], ao qual só podemos aceder com uma linguagem simbólica (…), o significado dos factos tem que ver com aquela capacidade do «dar que pensar» que P. Ricoeur atribui aos símbolos.




Se nos interrogamos, pois, sobre o que daí advém, ou sobre o que dá que pensar o facto de Jesus ter ressuscitado de entre os mortos, surgem algumas reflexões.

         

Defesa das vítimas – É facto velho, e, contudo, desconhecido de muitos, que o significado mais primigénio da Ressurreição não está naquilo que possa ter de vitória sobre a morte, mas no facto de ser uma vitória sobre a injustiça. Vejamos dois ou três pormenores provenientes da Bíblia que podem ajudar-nos a compreender isto. (a) A morte, na Bíblia, tanto é um facto natural («regressar ao pó donde se saiu», Gn 3:19), como um castigo do pecado («pelo pecado entrou a morte no mundo», Rm 5:12). Esta ambiguidade é devedora da mesma ambiguidade que o facto morte tem. Assim, é um facto natural, mas (ao contrário do animal) o Homem vive-a como anti-natural: porque o Homem não é apenas o animal que morre, mas o que sabe que vai morrer. Vivem-no como profundamente anti-natural quando se trata, não da própria morte, mas da perda de seres queridos:  a morte parece contradizer uma certa pretensão de imortalidade que se esconde nas mais profundas experiências do amor humano. Finalmente, é um facto «natural» em abstracto, mas muitas das mortes concretas que conhecemos são profundamente anti-naturais: morte em plena juventude, após violência ilegítima, etc., ao ponto da frase de Paulo («a morte entrou no mundo pelo pecado») ser interpretada por alguns como referida à morte violenta: porque o pecado, na sua mais funda dimensão, não é mais do que um atentado contra a vida. (b) A vida nesta terra, para os crentes do Antigo Testamento, é o lugar de encontro com Deus. O salmista constata que «os mortos já não louvam o Senhor», nem a bondade do Senhor será exaltada pelos que descem à «mansão dos mortos», «na terra do esquecimento» [Sl 88:11-13]. E quando ao rei Ezequias se lhe anuncia uma grave doença, este lamenta-se: «Não mais verei o Senhor na terra dos vivos». (Is 38:11) Por este valor teologal da vida é que o povo judeu pode acreditar em Deus durante séculos sem esperar, nem conhecer outra vida.
Este valor da vida provém dos primeiros vislumbres bíblicos da ideia de Deus (do Êxodo até aos Salmos e Profetas) que vinculam intimamente Deus com a ideia de Justiça. Precisamente por isso se pressupõe que – como Deus é justo – ao homem que, nesta terra, seja justo e piedoso tudo lhe há-de correr pelo melhor. As calamidades e as desgraças serão «a herança dos malvados», porque quando Deus «se levanta para julgar» isso significa exactamente «para salvar os humildes da terra». (Sl 76:10) O homem bom prospera nos seus negócios, tem uma vida plácida e morre muito velho rodeado de filhos e netos. Vale a pena reproduzir um exemplo entre muitos que é bem significativo, concretamente uma oração que rezaram, ano após ano, muitos judeus piedosos:

«Ditoso o que teme o Senhor e segue os seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar,
e os teus filhos serão como rebentos de oliveira ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
O homem que obedece ao Senhor.» [Sl 128]

No entanto, a história da fé bíblica é a história de uma aposta que vai abrindo caminho por entre a constatação repetida de que as coisas não são bem assim: àqueles a quem vai bem a vida são quase sempre os que não temem o Senhor, os que não respeitam o semelhante, os sem escrúpulos. Infinitas vezes, aos honrados as coisas correm mal, infinitas vezes eles são vítimas da opressão que enriquece os malvados. E além do mais, aos que denunciam tal situação e lutam contra ela costumam ser eliminados de forma violenta. A Bíblia está cheia de exemplos desses.

Nestas circunstâncias, como é possível acreditar em Deus? Como pode, a fé nesse Deus justo, manter-se de pé séculos após séculos? (…) O escandaloso é que a morte seja tantas vezes obra, não da natureza, mas da injustiça, que é o que de mais anti-natural existe se admitimos que, no Antigo Testamento, «a natureza» de Deus é precisamente a justiça. (c) É no contexto desta dura experiência que aparece (perto do final do Antigo Testamento) a doutrina da ressurreição final, concebida não como mera escapatória da morte, mas como o triunfo definitivo da Justiça de Deus, a qual justifica esse incontível anseio humano de que os verdugos não acabem por triunfar sobre as vítimas, numa história que, não só está tecida de vitórias de verdugos sobre vítimas, mas que além do mais é escrita pelos próprios verdugos.




Por isso, se insistiu infinitas vezes no facto de que o anúncio cristão não é simplesmente que «alguém» ressuscitou de entre os mortos (isso poderia referir-se apenas a uma vitória sobre a morte), mas que Jesus ressuscitou de entre os mortos.




E Jesus é uma vítima: a maior vítima (ou a mais inocente) da história humana. Por isso, (contra a linguagem bastante difundida na Igreja «oficial») a teologia insiste hoje, não só que a Ressurreição de Jesus não pode ser separada da sua morte, como também


 a morte de Jesus não pode ser separada da sua vida: Jesus morreu por viver como viveu, pela conflitualidade que a sua vida de homem justo desencadeou.


J I González Faus

[fotos: 1. Memorial ao Holocausto, Berlim; 2. e 4. Haiti depois do sismo]