teologia para leigos

31 de dezembro de 2011

COMO SE ADQUIRE A CONSCIÊNCIA?

2011-2012

E quem mandou este homem bater, esta Noite, à minha porta?

processo duma conversão




Georges Rouault_Flores




Diário

[31 Dez, à tarde]

«Não sei quem escreveu que vivemos em adeus e despedidas. Andamos de mala aviada, prontos a partir não importa para onde. Partir… E vamo-nos desligando das coisas que nos prendiam: as casas, os móveis, os quadros, os livros. Nesta renúncia (que só por ser forçada não tem especial mérito) acabaremos talvez por ser homens livres. Desprendidos das coisas que nos tiranizavam o coração, vamos adquirindo consciência da nossa condição de peregrinos para quem tudo – objectos e lugares, todas essas bugigangas que nos distraem da nossa essencial nudez – é provisória. Não ter nada de nosso senão a vida, ela mesma tão efémera…»

[31 Dez, à meia-noite]

«Bate-nos um homem à porta e diz-nos: «-Tenho sete filhos e quatro contos na gaveta. Não peço dinheiro emprestado, mas trabalho – qualquer que ele seja.» E carregamos o peso de mais esta cruz sobre os ombros cansados


[extracto de ‘Diário Quase Completo’, de João Bigotte Chorão, INCM, Biblioteca de Autores Portugueses, ISBN 972-27-1078-8, p. 260]



Poema para o Ano Novo

E descarnado
vai este tronco ardendo já
num outro fogo

28 de dezembro de 2011

OS CÓDIGOS MORAIS SÃO IMPRESCINDÍVEIS AO PODER 1/2

Subitamente irrompeu, em Portugal, o ódio ao Utente do RSI! Anos atrás existia o ódio às ‘lojas dos 300’geridas por portugueses. Depois veio  o ódio ao pequeno comerciante chinês - estes foram/são a causa da crise de tudo! Agora é o próprio Governo de Direita que dispara contra as chamadas camadas sociais corporativistas anichadas (quais oportunistas) nas ‘zonas de conforto’ social

Em tão poucas semanas, Portugal virou uma destilaria de ódio!, de Códigos Morais de Pacotilha, armas para uso populista fáceis de manusear, marketing chantagista [ex.: 'vivemos TODOS - o país viveu acima das suas posses'; 'os subsídios do Estado precisam de ser merecidos e retribuídos à sociedade através de trabalho à comunidade'; 'não há almoços grátis'; 'o tempo dos empregos para toda uma vida, esse tempo morreu, não volta mais - temos que nos convencer disso'; etc.]. Assiste-se à «moralização da política» de um modo tão obsessivo e culpabilizante, que faz lembrar os tempos dos anos 50 em que a Moral Católica era o único ‘metro-padrão’ dos costumes e do pensamento, a catalogar e a segregar exclusão social. Na raiz de tudo, o temor, o medo vertido em Código Moral securizante.

Zé dos Talks

A narrativa moral psicologizante…

Vídeo_A génese da Crise económico-financeira

 


Em Dezembro passado, a convite da Associação Prado, participei na primeira edição dos Zé dos Talks[1], uma versão lusa dos FredTalks[2]. Fica a cima o vídeo peculiar da sessão (o som de início é mau, mas depois melhora).


Ricardo Paes Mamede
28 Março 2012

Mas, afinal, como/para quê se fabricam os Códigos Morais?

«Cada código moral constitui a expressão do modo como um grupo, que se assume como líder numa sociedade, entende conveniente para si próprio que a maioria se comporte; fica claro que a moral é uma forma de gestão por objectivos» [Oliver Thomson]


Igreja da SS. Trindade_Fátima [pavimento]

1/2

1.A Génese da Moral

Em 1705, Bernard Mandeville, médico londrino de ascendência francesa, mas nascido e criado na Holanda, escreveu um poema notável intitulado «A Colmeia Rabugenta», subsequentemente republicado com o título «A Fábula das Abelhas». Nesta fábula, a colmeia prospera, feliz e poderosa, desde que as abelhas individuais sejam gananciosas, ambiciosas e corruptas mas, quando as abelhas se convertem a uma moralidade menos egoísta, o seu império começa a desabar. As abelhas…

Dentro de uma árvore oca e entradas
Com satisfação e sinceridade abençoadas

Mandeville não foi o primeiro nem seria o último filósofo a chamar a atenção para a diferença entre moral individual e nacional mas, provavelmente, ninguém usou de tal acutilância e simplicidade para sublinhar os objectivos alternativos dos sistemas morais concebidos pelo homem.

O século actual tem assistido a um afastamento gradual e mundial dos códigos das grandes religiões, não raro sem filosofias firmes ou bem definidas para as substituir. (…) Embora existam fundamentalistas, oriundos ma maioria das religiões, a defender a origem divina dos seus códigos, é correcto, na actualidade, dizer que uma vasta maioria reconhece esses códigos morais como sendo concebidos pelo homem: são normas de comportamento pensadas por grupos ou indivíduos, destinadas a tornar a existência mais agradável para a maioria da população.

Esta artificialidade implícita não significa que a moral seja algo não natural, nem que o Homem sem código moral seja necessariamente mau. Afinal, encontramos sinais de comportamento moral nos animais. (…) Hebb observou que «se um chimpanzé estiver a comer e vir outro chimpanzé a pedir comida, sente-se condicionado a prescindir de parte da sua, embora mostre sinais claros de raiva e irritação». (…) No tempo do homem primitivo, havia sinais incipientes de que cada sociedade desenvolvera o seu próprio código moral. Diz-nos Redfield: «Cada sociedade pré-civilizada apoiava-se em conceitos éticos não verbalizados, mas continuamente realizados.» (…)

Num comentário ao instinto do operário do século XX, Richard Hoggart salientou: «”Eu cá gosto de coisas justas” poderá ser um guia suficiente para o cosmos e poderá ser hipócrita mas, dito com sinceridade por um homem de meia-idade após uma vida difícil, pode representar um triunfo considerável sobre circunstâncias adversas.»

Estas são as características básicas do comportamento moral, aquilo a que G.K. Chesterton chamou «as certezas tolas da existência». Ou, nas palavras de Anthony Storr: «Pode depreender-se que, desde o princípio da vida, existe um impulso de realização pessoal, de busca de identidade própria, enquanto pessoa, e que esta é uma força tão poderosa quanto o próprio sexo.» (…)

Sherrongton observou que «a biologia apregoa o indivíduo por si próprio» mas o «altruísmo […] parece, até à data, o produto mais nobre da Natureza».

Todavia, filósofos e teólogos têm, por vezes, preferido uma visão pessimista do homem enquanto ser naturalmente imoral ou, na melhor das hipóteses, amoral. Santo Agostinho de Hipona foi pioneiro no conceito de pecado original (graças, talvez, a uma juventude bastante devassa) e Espinosa um dos muitos que seguiram uma orientação semelhante: «Se os homens nascessem livres não teriam, desde que permanecessem livres, concepção absolutamente nenhuma de bem e de mal». (…)

Em sociedades mais amplas, encontramos ainda toda uma série de subsistemas morais, códigos diferenciados para guerreiros, sacerdotes, mães e inúmeros pequenos grupos. Numa comunidade normal existe, não só, um conjunto principal de normas amplamente aceites para toda a nação, ou para um grupo de nações, como também códigos comerciais, códigos hospitalares, códigos escolares, códigos militares, códigos sindicais, códigos desportivos, até códigos criminais.

Do mesmo modo, parece óbvio o facto de os códigos morais não apenas variarem como, também, terem durações inerentes; a sua popularidade e credibilidade primeiro crescem e depois diminuem. Por vezes, até podem ser rejuvenescidos por pensamentos novos, podem desaparecer e depois regressar - têm uma espécie de ciclo de vida - e, enquanto se desvanecem, as pessoas vivem aquilo a que normalmente se chama ‘crise moral’. E.H. Carr descreve esta falta de orientação do seguinte modo: «Quando perdemos as fórmulas confortáveis que, até então, nos têm norteado entre as complexidades da existência, sentimo-nos afogar num mar de factos, até voltarmos a encontrar pé ou aprendermos a nadar.»


2.As Causas das Diferenças Morais

Já esclarecemos que diferentes tipos de pressões externas ajudam a forjar diferentes tipos de moral. Para citar alguns exemplos extremos, oriundos de zonas de ambiente hostil, o código moral da tribo Tugue na Índia considerava uma virtude o assassínio por estrangulamento de homens que não fossem Tugues (mas não de mulheres). (…) Na Alemanha pós-Depressão, foram vários os oficiais seniores das SS promovidos pela sua contribuição para o genocídio. É surpreendente que a violência tenha sido tantas vezes exaltada pelos códigos morais, mas, tal facto, poderá ser o resultado de pressões populares e de uma sociedade violenta, em que a esperança de vida é curta ou onde a própria vida tem menos valor do que outras considerações.

No seu todo, a História demonstra que as definições de hábitos bons e maus têm sido substancialmente díspares em situações diferentes, mas, em cada exemplo, a pressão sobre o indivíduo traduz-se na prossecução da ética do seu próprio povo, independentemente do modo como essa mesma ética possa ser comparada com outras morais aceites de forma mais generalizada. Diz-nos R.S. Peters que o «homem é um animal obediente a regras». Porém, as regras mudam consoante as pressões, ambições e ideias daqueles que as inventam e que têm de convencer os outros a obedecer-lhes, donde a máxima de Stevenson: «Moral é persuasão E a persuasão sai facilitada porque a maior parte das pessoas não quer pensar pela sua cabeça. Eis um comentário de Edward de Bono: «O objectivo é parar de pensar. Em suma, as pessoas detestam ter de pensar e tomar decisões, porque isso é mentalmente cansativo. Existe uma preferência fundamental por processos decisórios automáticos, baseados em padrões.» A liberdade de tomar decisões é um fardo doloroso, como foi salientado por Bergson, Jean-Paul Sartre e os existencialistas. Por conseguinte, os códigos de moral de pacotilha, que anulam esta dor, são deveras convenientes, desejáveis e úteis. Na fórmula de W.R. Whyte, «Valores bons são valores que permitem aos grupos interagirem, com benevolência, entre si e aos indivíduos uns com os outros.» Porém, e dado que os ambientes sociais se alteram, a natureza dos valores e da benevolência também se altera. A posição de Westermarck, «Os conceitos morais prendem-se com a indústria e a sociedade: o certo e o errado não são naturais, inatos nem intuitivos, apenas implantados por pressões sociais […]», pode ser comparada à análise de Karl Marx: «A fábrica braçal cria uma sociedade com um senhor feudal, a fábrica a vapor cria uma sociedade com um capitalista industrial.»

Por conseguinte, os códigos morais tendem a remeter para as sociedades onde crescem e, embora possa existir uma norma absoluta, as opiniões sobre o certo e o errado têm variado consideravelmente. São vários os factores reconhecíveis neste processo que vale a pena aflorar.

O primeiro prende-se com circunstâncias económicas, a disponibilidade de alimentos e outros meios de sustento. (…) Uma escassez induz partilha, racionamento cooperativo (o que faz da abstinência uma virtude), cultiva a moral da conservação e encoraja a distribuição equitativa, mesmo entre os elementos mais fracos de uma sociedade. Mas pode induzir o efeito contrário: pânico, açambarcamento, elitismo material. (…) Num certo tipo de código, a pobreza não é nenhuma desgraça, noutro já o é. No primeiro, a mendicidade até pode ser respeitável, no segundo é o prestígio que recompensa a riqueza e a ostentação. No primeiro, o altruísmo poderá ser recompensado no além, no segundo é considerado uma imbecilidade.

Por outro lado, uma superabundância relativa de bens materiais tende a fomentar o desperdício, a desencorajar a conservação, a menosprezar a partilha, a conferir, em contrapartida, respeitabilidade moral ao excesso de indulgência e a encorajar a desigualdade de distribuição e exploração. (…)

Sempre existiram contrastes, nesta matéria. O Romano da República orgulhava-se de comer com frugalidade, o Herói cómico da Roma Imperial, Trimalquião, obrigou-se a vomitar para comer mais. Maomé, Buda, Lao Tzu e Sócrates pregavam a temperança dos apetites. Na Renascença, na Restauração, na década «marota iniciada em 1890, nos alegres anos 20», do século XX, tais entidades teriam sido desmancha-prazeres, pelo menos nos estratos superiores da sociedade, onde o valor dado ao conforto material levou Loelia, Duquesa de Westminster, a afirmar: «Quem for visto num autocarro depois dos trinta anos de idade é um vencido da vida.»


O segundo maior factor causal, no que diz respeito à criação de atitudes morais, é a natureza do poder numa sociedade. Esta faz variar a moral se se trata de uma época cavaleiresca, se de infantaria com arco, com escudo e espada (esta, estimulando o igualitarismo grego, a disciplina rigorosa e o ethos de discrição, a diluição das barreiras, etc.), se de pirataria de alto mar (a valentia corsária selvagem). (…) Quem detém os cordões da bolsa utiliza-a para ajudar a instilar o tipo de ética passível de manter essa riqueza. Deste modo, o algodão fez da escravatura, na América, uma virtude e o petróleo fez da velocidade igualmente uma virtude. (…) Uma comunidade camponesa produz uma moral com ênfase na família nuclear enquanto unidade de produção, ao passo que uma economia baseada em oficinas domésticas salienta o papel da maternidade e da geração de crianças produtivas; o comércio tem produzido a moral burguesa da frugalidade; uma economia altamente tecnológica produz uma ética com a tónica na competitividade acentuada; uma economia orientada para o consumidor encoraja uma ética de indulgência dos sentidos que faça da vaidade pessoal uma virtude. (...)

A quarta área de pressão sobre o desenvolvimento da moral é a natureza do poder político. A monarquia tende a exigir obediência, reverência, lealdade, devoção cega e estratificação social da recompensa. Bismarck definiu as virtudes prussianas: «honra, lealdade, obediência e bravura, as quais moldam o exército, desde o corpo de oficiais até ao mais jovem recruta».

A quinta condicionante moral é o preconceito ou a tradição, os vestígios da moral das duas gerações anteriores legados à seguinte geração. Sentimentos raciais, superioridades de classe ou de outra ordem genética, orgulho na cor, na casta ou na crença, tendem a ser inculcadas desde tenra idade, pelo que são prontamente transmitidos de geração em geração. Veja-se os Protestantes do Ulster, os Sikhs de Bengala e os Xiitas palestinianos - todos herdaram gerações de paranóia.

Como já vimos, dado que cada código moral constitui a expressão do modo como um grupo, que se assume como líder numa sociedade, entende conveniente para si próprio que a maioria se comporte, fica claro que a moral é uma forma de gestão por objectivos. (…) Assim sendo, um código moral pode ser definido enquanto sistema de padrões éticos pelo qual determinada sociedade controla o comportamento dos seus indivíduos e os motiva para atingirem os seus objectivos. Trata-se de um processo de controlo psicológico de grupo que, geralmente, constitui um quadro de manipulação muito mais amplo, representado pelo código legal dessa mesma sociedade. Quem se rebele contra o código será considerado imoral (…)

A moral tem predilecção por absolutos, preferência por ‘pretos e brancos’ recusando os vários tons de cinzento. Esta predilecção decorre, naturalmente, da necessidade de maior clareza e simplicidade em normas intransigentes. Donde os numerosos «nãos» dos dez mandamentos serem a espinha dorsal da sua simplicidade e convicção.

(continua)

Oliver Thomson, História do Pecado, ed. Guerra e Paz, Out 2010 ISBN 978-989-8174-86-4 (excertos).

27 de dezembro de 2011

OS CÓDIGOS MORAIS SÃO IMPRESCINDÍVEIS AO PODER 2/2


2/2

3.Formação Moral – Propaganda

Foi Robert Owen, o pioneiro da melhoria nas condições de trabalho de New Lanark, quem observou que «o carácter do homem é feito para ele e não por ele» e que, por conseguinte, os padrões morais comunais são uma faceta da persuasão em massa.

Registam-se seis principais técnicas de formação moral.

Uma das mais antigas, e se calhar ainda a mais importante de todas, é a imitação de heróis e heroínas. Cada sociedade tende a produzir o seu próprio bloco de modelos, reais ou fictícios, os quais se tornam no foco da mimese comportamental. A Idade Média teve os seus neuf pieux, de entre os quais, Aníbal, Alexandre Magno, Carlos Magno e, claro, o rei Artur. Depois, Cristo, Buda e Maomé, a Virgem Maria, São Francisco, Florence Nightingale, George Washinton, Lenine, Mao e por aí diante, num sem fim de personagens que a história sempre cria. Um santo tinha que ser um espectáculo ou um criador de imagens, tal como o herói tinha que ser maior do que a vida.

A segunda maior técnica de formação moral é o recurso ao ritual, o qual engloba o princípio pavloviano da habituação, o cubo de açúcar paliativo no final de cada truquezinho altruísta, que cresce até se transformar num arsenal permanente de reacções morais predeterminadas a dadas situações.(…) - comer com faca e garfo, ceder o lugar a uma idosa no autocarro, tirar o chapéu, o peregrinar (reforço das normas grupais), o rezar o terço (aliando a repetição verbal a um acto físico), etc. etc.

A terceira é a criação de metas e prémios, medalhas e certificados, símbolos perenes de desempenho que proporcionam níveis bastante mesquinhos, mas eficazes, de satisfação.

A quarta, a utilização da embalagem perfeita sob a forma de mnemónica: os dez mandamentos, os oito caminhos budistas para o céu e as dez depravações, os sete pecados capitais da Idade Média, os cinco valores dos Sikhs todos começados com ‘K’, os cinco ‘M’ do Tantra indiano. A redução dos ensinamentos éticos a fórmulas curtas e de fácil memorização é uma componente fulcral da propaganda e da formação moral comunal: Santo Agostinho e São Bernardo usavam rimas para sublinhar passos importantes nos seus sermões.

Talvez a maior ferramenta da moral didáctica tenda a ser a parábola (…) À medida que a sociedade se desenvolve, a parábola é transmutada em mito (…) – a fidelidade de guerreiros leais, o altruísmo das mães, a vaidade dos ricos, a crueldade dos senhores, a bondade dos camponeses, os perigos de ofender a natureza e assim por diante. Cada sociedade cria um grande herói tomba-gigantes ou mata-monstros como Perseu ou São Jorge. A maior parte delas teve salvadores que se sacrificaram.

Joseph Campbell descreveu a função social da mitologia como aquela que estabelece «sistemas de sentimentos», modelos comportamentais para todas as ocasiões. Muito do esforço criativo que é produzido pelos novos mitos de cada geração, mais do que didáctico, é um desejo subconsciente de racionalizar atitudes morais já assumidas e de as integrar na mobília psicológica dos próprios criadores seus pares, e - chegado o tempo - dos seus descendentes.

É em parte devido a este processo que, atitudes morais consideradas por muitas sociedades completamente desumanas e cruéis, são racionalizadas como novas tradições. Deste modo, a antipatia invejosa para com os pequenos comerciantes judeus transformou-se em castigo justificado pela crucifixão de Cristo, a preocupação com o carreirismo eclesiástico transformou-se na perseguição competitiva aos hereges.

Numa direcção oposta, o medo da fome perverteu-se na necessidade de sacrifício humano, o medo de uma morte solitária perverteu-se enterrando vivas as viúvas na Índia, o medo de uma futura adversidade converteu-se na necessidade de denunciar bebés fracos à nascença.(...)
(fim)

Oliver Thomson, História do Pecado, ed. Guerra e Paz, Out 2010 ISBN 978-989-8174-86-4 (excertos)

25 de dezembro de 2011

NATAL E FÉ DE INFANTÁRIO

 


«Se não vos firmardes
não sereis firmes!» [Isaías 7:9b]
ou os perigos duma “Fé de infantário”







«Esta noite, Art tinha como destino um pequeno país à beira-mar. Gostava de descer a sentir o cheiro salgado, e, talvez por isso, sentia um entusiasmo adolescente quando iniciou a viagem.

«Mas cá em baixo, Art pôs-se a pensar que tudo tinha sido um desencontro, que tinha confundido a noite inconfundível e acabado por vir numa qualquer noite de um inverno frio

[Rosa Alice Branco, “A artrose das renas”, in «Minicontos (quase) de Natal», JORNAL DAS LETRAS, 14-27 DEZ 2011, p.10]




Não dê

Neste Natal
não dê dinheiro a um pobre
Habitua-o mal
Não dê comida a um pobre
Habitua-o mal
Não dê de beber a um pobre
Ele vai gastar tudo em vinho
Não dê guarida a um pobre
Ele gosta mesmo é de chão
Não dê livros a um pobre
Ele queima-os para se aquecer
Não dê carinho a um pobre
Ele estranha e fica nervoso
Não diga bom dia a um pobre
Dá-lhe falsas esperanças
Não dê saúde a um pobre
É uma despesa inútil

Se quer dar-lhe mesmo
alguma coisa
[porque enfim está no espírito de natal e você é uma alma piedosa]
Dê-lhe porrada.
Vai ver é o que ele gosta
É o que ele está habituado
E os pobres já sabemos como é
os pobres (coitados) não são
muito de mudança não.

Rui Zink

[in «Minicontos (quase) de Natal», JORNAL DAS LETRAS, 14-27 DEZ 2011, p.10]






No Advento disseram-me: «Todos estamos à espera. Espera também!». Alimentaram-me a expectativa: que nos seria dado um Menino! «Espera e verás!», diziam-me.

Não me entusiasmei muito, diga-se. Essa história já era velha, para mim.

Um Rei muito bazófias - na escola primária tinham-me contado isso mesmo, a propósito dum outro rei, D. Sebastião…-, um Rei, ‘com a mania que era rei’, tentou convencer toda a gente disso: que esperássemos, que viria, sim!, que não demoraria a surgir um Menino, «luz das nações» blá blá… blá blá… blá blá…, que não tardaria! Era uma questão de semanas.

Para mim sempre me pareceu que essa história era uma ‘história adventicial’… muito mal contada.

Afinal, eu estava enganado. Já não é a primeira vez que erro gravemente no meu percurso de vida… e isso é triste. Houve, de facto, um Rei tal e qual – chamava-se Acaz [2Rs 16] – e o menino afinal existia mesmo e viera ao mundo sim senhor: era seu filho Ezequias! [2Rs 18] E a Virgem era de carne e osso e ancas e mamas e devia ser muito bela, saudável, robusta, boa cozinheira e cuidadosa com a alimentação do Menino [a fiar no que os livros sagrados nos contamIsaías 7:14-15].

Fiquei perturbado!
Fui confirmar aos Livros. E que vejo eu?!

Num livro [Mateus 2:10], o protagonista é A Estrela do Oriente!
Num outro livro [Lucas 2:8.17], os protagonistas são Os Pastores!

Um Deus-Menino, nuzinho, rechonchudinho e sorridente… ‘ficara na sombra’!

Afinal, Mateus [2:2] refere um adulto, fala d’o Rei dos Judeus e Lucas [2:42-43.46-47.49] fala de um «menino» já adulto (v.42) «sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas» e a enrascá-los… com «a sua inteligência e as suas respostas» (v.46-47)

Nem nenhum Deus-Menino bebezinho sorridente com coroa e ceptro, nem Pediatria como profissão! E, por este caminho, nem regueifas Miluvit nas coxinhas do bebé salvador do mundo… onde ir beijar nesta «noite feliz, noite de luz, ó Jesus»!

Fico, entretanto, com duas questões-não-pediátricas: que significado tem ‘A Estrela’? E que significado tem ‘Os Pastores’? Está aí alguém? Está aí alguém que me ajude?

E fruto desse engano histórico e perigoso – Atenção: este Rei Acaz ‘mancava das duas pernas’ como certo Primeiro Ministro, ou seja, vivia como um tolo no meio da ponte, sempre hesitante quanto a alianças, se com Merkel se com os Bispos…; Isaías 7:2 – fruto destes enganos tolos andámos TODOS às prendas, enganando todo um mês a ver se o subsídio de Natal esticava… “importando mais que exportando”!

Ironia do destino!
Nem existe Deus-Menino algum… nem combatemos a Crise!

Mais uma vez, «confundimos a Noite inconfundível» (RAB) e extraviamo-nos na montanha escura, nevada e sem trilhos firmes guiados por uma «fé de infantário»…
 
Afinal de contas, onde está esse Rei que só aos poderosos «perturba»? [Mateus 2:3] (EU também quero saber…)



«Neste Natal
não diga bom dia a um pobre.
Dá-lhe falsas esperanças…» [RZ]




«É pelo exterior, é por aquilo que a Igreja mostra aos olhos dos homens que estes a passam a conhecer e, através dela, são ou serão conduzidos ao Evangelho, a Deus. Ou, pelo contrário, são afastados, repelidos ou ainda levados a encaminharem-se para um tipo de religião mais material, para um sistema no qual preponderem mais propriamente comportamentos sociológicos  do que uma religião pessoal com todas as exigências espirituais que isso comporta.

«Quanto a isto, tudo o que torna a Igreja visível no concreto, tudo aquilo através do qual as pessoas tomam contacto com ela, da mesmíssima forma como acontece na nossa relação com os outros - por exemplo, a importância do rosto, do olhar, das formas e das roupas - é duma extrema importância; a forma dum recado, dum simples anúncio, dum boletim paroquial ou ainda o tipo de ornamentação ou duma celebração…, o aspecto exterior dum padre, o seu trato, a sua linguagem, o seu estilo de vida ou o das religiosas, o das pessoas da Igreja: tudo elementos sem importância, quotidianos, mas significativos e até decisivos da visibilidade da Igreja como parábola do Reino de Deus ou como sacramento do Evangelho».

Yves Congar, Pour une Église servante et pauvre, 1963, p. 107-108, citado em «Fidèle à l’avenir – à l’écoute du Cardinal Congar», Frère Émile, de Taizé, Les Presses de Taizé, 2011, ISBN 978-2-85040-309-5.

24 de dezembro de 2011

POEMA NATALÍCIO

Natal 2011






POEMA PARA O PRESÉPIO



-Um chá?!

-Um chá é breve!

-Entra!

-Faz de conta que estás em tua casa...


O renovo – Deus adira o amar ao perdoar



pb\

PS: 'Convite a 4 vozes' das 4 personagens... para mim, para ti, para nós, para todos.

22 de dezembro de 2011

CONTO DE NATAL

Conto de Natal para um tempo cravejado de medos…




A estrelinha lilás


Esta noite sonhei que começara a chover muito. O barco onde íamos meteu água e o céu lançava sobre as nossas cabeças faíscas agudas – um dos nossos amigos morreu e nós morríamos de medo.

De repente, um como nós ergueu-se, abriu os braços e gritou como um trovão: − Não temais! A tempestade acalmou, a maldade do mar desapareceu, o céu abriu-se de azul e sol e todos nos sentimos muito pequeninos diante de tamanho milagre. Ao canto da barcaça um velho de barbas brancas resmungou: Será ele?

Ao fim de alguns dias de viagem em cima das águas chegamos a uma terra igual a tantas outras. Dois homens esperavam-nos na praia.
Ei! Tu aí… Anda connosco. Depressa! Eram soldados e apontavam para o rapaz que tinha aberto os braços e gritado não temais. O rapaz, que devia ter perto de 18 anos de idade – cabelos compridos, barba muito preta, sedosa, rente à pele e olhos cheios de vida – foi metido numa prisão. Passou lá três dias de fome e três noites de frio, com um tronco bem amarrado às costas.

Ao fim de três dias e três noites foi levado à presença do Imperador que lhe disse: Ouvi dizer que não tens medo!? O rapaz abanou a cabeça que sim que sim. O Imperador repetiu três vezes com força: – A quem não tiver medo eu mando-o abrir os braços e amarro-o com cordas a um madeiro. Ouviste bem? O rapaz arregalou os olhos e voltou a abanar a cabeça três vezes. – Tirem-lhe o carrego! Agora ele vai ver do que a casa gasta para se fazer homem. Agora ele terá de aprender por si mesmo a ter tino, a ter respeitinho! Sobretudo, a temer o medo…

Agora vai! – concluiu o Imperador. E deu ordem aos soldados para o libertarem. O menino foi à vida, mas nem assim conseguiu sentir as pernas a tremer. Às vezes, punha duas velhas latas de azeitonas de borco e, por cima, tábuas podres a fazer de pranchas. Pinchava, pinchava, abanava-as, quase que era atirado ao chão, mas nunca as partira, nem sequer tinha conseguido arrepiar-se. Apesar da idade, parecia uma criança nascida para envergonhar os pais. Depois, subiu a uma torre muito alta, andou às voltas lá em cima, pôs-se em biquinhos de pés mesmo na pontinha mais alta do pináculo! Abriu os braços, baloiçou-se para a frente e para trás, mas as vertigens não apareceram. Apenas uma brisa suave no rosto! Ele, que sempre se sentira o maior do mundo, nesse dia, triste como a noite por não ser capaz de fabricar medo, decidiu desistir e partir para uma terra que fosse a sério, uma terra onde não tivesse que pensar muito para ter medo a sério. Gostava de desafiar perigos como quem brinca e, ali, naquela terra vulgar, nada… − era tudo uma seca, até para se ter medo:-(

Mas mal pôs o pé na areia da praia para de novo embarcar, surgiu uma multidão aos gritos: Eia! Escuta! Espera um pouco! O rapaz virou-se para trás. – Desde que chegaste aqui não nos cansamos de te espiar. Vimos tudo. Vimos tudo o que andaste a fazer. E até vimos que tu és destemido! Não fiques assim. Não desanimes. Não embarques. Afasta a tua tristeza. Volta para trás que nós damos-te um pouco do nosso medo – temos tanto para dar… e assim serás um poucochinho feliz junto de nós.

O rapaz disse: Vocês devem estar loucos! Vocês são capazes de me dar de presente um pedaço do vosso medo?!!! E assim, de graça, sem nada em troca?!!! Vocês só podem estar mesmo meio loucos de medo…!!! E decidiu ficar. Aquela gente parecia generosa. E, à medida que iam todos caminhando para a cidade, cada um punha-lhe às costas o seu próprio tronco de madeira, coisa que ele aceitou com a alegre leveza dum espírito destemido. Finalmente vou ser capaz de ser feliz nesta terra de medricas! E tudo à custa destes pobres patetas bondosos. Já começo a sentir um cheirinho a felicidade De facto – pensou o rapaz dos olhos faiscantes e barbas sedosas – as pessoas quando andam esmagadas de terror quase que encostam o queixo à biqueira dos sapatos. Mas ele, que era jovem e fortalhaças, caminhava de costas erguidas e até conseguia brincar com os mais pequenitos. Um dia, para espanto de muitos, viram-no com os troncos pesados às costas a saltar ao eixo com a canalha. E não é que ele os vencia a todos…

E assim, aos poucos e poucos, as pessoas daquela cidade começaram também a carregá-lo com seus troncos de estimação que tinham lá pelos cantos, em casa, reserva para quando sentissem raiva. Aos poucos, o rapaz de músculos fortes e rosto vincado, já carregava quase todos os troncos dos habitantes daquela cidade. Havia quem dissesse que quantos mais troncos lhe amarrassem às costas, mais feliz ele se sentia (o que muito me custa a crer… mas que ele há loucos, lá isso os há…).

Passou três anos ali, na cidade de medo. O ar era, agora, mais leve nas ruas e nas casas. Os pássaros cantavam mais e melhor, muitos fugiam das gaiolas e os patetas dos adultos achavam-lhe graça! Os homens assobiavam nos campos, dependuravam hortelã na orelha. As mulheres perfumavam a casa, escolhiam vestidos e voltavam a perder-se nas conversas!

Ao fim de três anos ou três milénios, os soldados – aqueles antipáticos que nem lhe haviam ofertado um só tronco sequer! – procuraram-no para lhe anunciar a notícia.
– O Imperador manda dizer:  Sei que és um medricas! Sei que andas carregado de medo, carregado dos medos de quase todos nós. Como prémio pela tua vontade em querer ser cidadão desta província a medo inteiro, mando que te seja oferecido um palácio de grades com vistas para a cidade! De lá poderás contemplar as belas vistas de todo o meu império de gente temorária que me saúda e me mede a medo o ano inteiro.




O rapaz deu pinchos de contente!
Indicaram-lhe o caminho – a via mais íngreme –, até que chegaram ao cimo dum monte alto. O rapaz subira aquela incrível encosta com uma perna às costas. (chegados aqui, temos que reconhecer que esta história é tão tola como o rapaz, porque com milhares de troncos às costas, o rapaz, apesar de ser um fortalhaças, seguramente já não conseguiria arranjar espaço para a sua perna… bom; adiante…) O rapaz subira, então, a encosta com as duas pernas às costas e os braços bem abertos! Ah, valente - assim é que é!

De facto, lá de cima, as vistas eram soberbas! A cidade parecia uma montagem de legos! Apetecia ser menino de novo, menino de condomínio aberto…

Lá em baixo, os palácios, as ágoras, os templos, as avenidas, os obeliscos, o rio como uma cobra, às vezes com rápidos, um tufo de verdura aqui, outro acolá. À esquerda, camelos em fila sobre o pente das dunas. À direita, a praia e, partindo dela como uma saia larga, um soberbo mar azul sem ondas e sem fim, um mar de nadar e chorar por mais de mansidão. O horizonte era tudo e tudo era horizonte e, daquele ponto alto e amplo, os olhos tinham a grandeza dum sonho de rei. Melhor: a grandeza dum sonho de Príncipe, dum Filho de Rei!

Era demais! O seu coração estourava de felicidade! Não era possível ser mais feliz! Ali, de facto, do alto do mundo, ainda era mais completamente impossível que alguém tivesse um pingo sequer de medo. Naquele momento, era o rapaz mais feliz sem nada ter feito para o merecer! Devia uma visita ao Grande Imperador por tanta bondade generosa… mesmo que com as costas ajoujadas de troncos maciços.

Saltou tanto, tanto, de felicidade, que se atirou aos soldados para os abraçar. Mas… não conseguiu, pois tinha os braços amarrados aos troncos por cordas – ele não podia defraudar a confiança que a multidão tinha depositado nele. Nunca iria deixar cair ao chão os troncos dos outros que tanto o incentivaram a ser um poucochinho feliz com eles.

Paciência. Não abraçara os soldados, mas, em vez disso, pensou: «Posso ensaiar uma brincadeira de roda para os reverenciar!». Tentando aumentar ainda mais a sua cota de medo, pensou: «Que tal se andasse à roda até ficar tonto?!» Desatou, então, a girar em círculos, a girar em círculos, a girar em círculos, em círculos, tão rápidos, tão velozes, tão velozes que… oh surpresa das surpresas!, começou a levantar voo… de braços abertos… como se fosse uma libelinha azul! Uma espécie de menino-helicóptero!!! J [muitos risos patetas…] carregado com os troncos sagrados do medo de todo o mundo.

E elevou-se … disparado pelos ares… tão alto, tão alto, tão alto…, que rapidamente se tornou apenas um pontinho bem lá no longínquo céu, tão longe e tão alto, que mais parecia uma estrelinha lilás no imenso universo do amor de Deus.

Cá em baixo, na Terra, uma tremenda ovação!


Tudo isto aconteceu há muitos anos, no tempo em que Jesus por cá andou.
Mas ainda hoje, em Nazaré, as mães, para entreterem os filhos na hora da sopa, chamam todos os meninos da aldeia, pedem-lhes para darem as mãos e fazerem um círculo. Depois contam-lhes a história do menino de medo que não tinha medo de nada, nem do Imperador!, e que mandara pelo ar todos os carregos! No fim da história, para alegria das mães, os meninos pedem mais sopa!, sem nunca deixarem de andar à roda de mãos dadas, braços bem abertos, com um raminho de amendoeira verde preso às costas por um alfinete.

Vocês acreditam que se vence o medo fazendo de conta que somos amigos… do medo? Acham mesmo? Também há quem diga que isso só resulta se dermos as mãos uns aos outros sem nunca desviar o olhar d’ aquele pontinho lilás, muito alto! que há no céu estrelado de todos os nossos sonhos.

E tu que achas? Quando fores dormir, experimenta. Vais ver que, com um raminho de amendoeira bem apertado na tua mão pequenina, consegues voar acima de todos os medos, mesmo que o teu peito aperte um poucochinho.



Bons sonhos… de NATAL!

 

[Ilustrações retiradas de ‘BÍBLIA INFANTIL’, Bethan James & Yorgos Sgouros, Ed. Babel, babel@babel.pt Av. António Augusto de Aguiar, 148 – 6º, 1069-019 Lisboa, T.: 21.3801.100 Fax: 21.3865.396]
Dez_2011
[Existe uma versão para os «mais crescidos», contra pedido por E-mail: paulobateira@gmail.com]