O
SACERDÓCIO
QUESTÃO
ESPINHOSA PARA OS PRIMEIROS CRISTÃOS
[...] Durante a sua vida
pública, a pessoa de Jesus provocara uma grande admiração, e levantara muitas
questões a seu respeito. Quem era aquele homem? Em que categoria deveria ser
ele catalogado? Os evangelhos fazem eco da perplexidade das pessoas e recolhem
as opiniões as mais diversas: Jesus
eleito por Deus ou fabricado por Satanás, mestre de sabedoria ou perigoso
sedutor, filho de David ou profeta antigo que voltara à terra, etc. É significativo que entre tantas e tão variadas hipóteses
nunca se tenha encontrado a ideia do sacerdócio. Aparentemente,
parece que ninguém se interrogou se, por acaso, Jesus não seria o sacerdote dos
últimos tempos vindo para oferecer a Deus o culto perfeito. Esta ausência de
interrogação pode parecer estranha, mas basta recordar a concepção que, à
época, reinava acerca do sacerdócio, para que fique esclarecida tal ausência. Era, para todos, evidente que Jesus não era um sacerdote
judeu. Era sabido que Jesus não pertencia a uma família sacerdotal e
que não possui direito algum a exercer as funções sacerdotais. O sacerdócio excluía
outro tipo de pretendentes[1]. O preceituado
pela Lei era de uma absoluta severidade: «A Aarão e a seus filhos recomendarás
que se encarreguem das suas funções sacerdotais; o
leigo que se aproximar será morto»[2]. Era desta
forma que se manifestava a “santidade” do sacerdócio:
defendia-se uma intransponível separação entre as famílias sacerdotais e as
restantes.
Por nascimento, Jesus pertencia à tribo de Judá. Portanto, não
era sacerdote segundo a Lei (Thora). A ninguém lhe ocorreu a ideia de
lhe atribuir tal título e ele mesmo nunca manifestou a menor pretensão quanto a
isso.
A sua actividade
nada tinha a haver com sacerdócio, no sentido antigo da palavra: a sua
actividade situava-o mais na linha dos profetas.
Começara a proclamar a palavra de Deus − aquilo que outrora fizeram os profetas
− e a anunciar a proximidade do estabelecimento do reinado de Deus. Por vezes,
exprimia-se por meio de acções simbólicas (Mt 21:18-22), nisto, imitando
Jeremias, Ezequiel e outros profetas[3]. Os seus
milagres recordavam os tempos de Elias e Eliseu: multiplicação de pães,
ressurreição do filho duma viúva, cura de leprosos[4]. Num relato de
Lucas, o próprio Jesus convida a que se faça esta correlação; em vários
momentos, Jesus situou-se implicitamente entre os profetas[5]. Na verdade,
muitas pessoas viam nele um profeta e até um grande profeta, «o» profeta esperado[6]. Após a
ressurreição, o apóstolo Pedro proclama que Jesus é o profeta semelhante a
Moisés, prometido por Deus no Deuteronómio[7].
Como é sabido, os
profetas de Israel mantinham as suas distâncias face ao sacerdócio. Criticavam
de forma violenta o formalismo que infectara o culto ritual e, pelo contrário,
exigiam, no concreto da sua existência, uma verdadeira docilidade face a Deus.
A pregação de Jesus ia nesse sentido. Os evangelhos testemunham que Jesus
empreendeu uma acção sistemática, não contra a pessoa dos sacerdotes, mas
contra uma concepção ritual da religião. Ao negar decididamente conceder
importância às regras da «pureza» externa, sem sequer hesitar em colocar a cura
de enfermos acima da observância do Sábado, Jesus
rejeita a maneira antiga de compreender a santificação[8].
Jesus tomou partido contra o sistema de
separação ritual, cujo cume consistia na oferenda sacerdotal das vítimas
imoladas, e optava pela orientação contrária:
em vez duma santificação conseguida à custa da separação das pessoas, propunha
uma santificação que se obtinha acolhendo todos,
inclusivamente os pecadores. A palavra thysía,
que designa os sacrifícios rituais e que aparece com muita frequência (perto de
400 vezes) no Antigo Testamento, em todos os evangelhos, é colocado apenas em
duas ocasiões nos lábios de Jesus, e nessas ocasiões com a finalidade de
recordar aos ouvintes que a Deus não lhe agrada
esse género de culto[9]. Em Marcos, thysía
surge apenas uma vez, dentro duma frase pronunciada por um escriba e aprovada
por Jesus, mas mais uma vez na mesma perspectiva: o amor a Deus e ao próximo
«vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios»[10]. Sem usar a
expressão thysía, há uma outra frase de
Jesus que vai no mesmo sentido: Jesus ordena que se procure a reconciliação com
o irmão antes de apresentar uma oferenda no altar do Templo.[11]
Por outro lado, os
evangelhos referem uma enérgica intervenção de Jesus no interior do Templo[12]. Enfrentando
todos aqueles que vendiam animais para o sacrifício, Jesus enfrenta-se com toda
a organização do culto sacrificial. João assinala concretamente que Jesus
«expulsou do Templo as ovelhas e os bois» (Jo 2:15), ou seja, os animais que
iriam ser oferecidos em sacrifício. E
Marcos observa que os sumos sacerdotes viram com maus olhos o
que acabara de acontecer, por razões que são fáceis de adivinhar.
Há uma certa
relação entre esta iniciativa de Jesus e […].
Albert
Vanhoye
Exegeta e Professor
no Instituto Pontifício de Roma
«Sacerdotes Antiguos, Sacerdote Nuevo – según el Nuevo
Testamento», Sígueme,
Salamanca 52006, 55-59.64-74.
[1] Ex 28:1; Lev 8:2; Nm 16-17; Sir 45:15.25.
[2] Nm 3:10; cf. 3:38.
[3] 1Rs 22:11; Jer 19:10; Ez
4:1-3.
[4] Mt
14:13-21 e 2Rs 4::42-44; Lc 7:11-17 e 1Rs 17:17-24; Mt 8:1-4 e 2Rs 5.
[5] Lc
4:24-27; Mt 13:57; Lc 13:33.
[6] Lc
7:16.39; Mt 21:11.46; Jo 4:19; 6:14; 7:40; 9:17.
[7] Act 3:22, citando Dt 18:18.
[8] Mt 9:10-13 par.; 12:1-13 par.; 15:1-20
par.; Jo 5:16-18; 9:16.
[9] Mt
9:13; 12:7; nestas duas vezes cita Os 6:6.
[10] Mc
12:33. Para além destes três usos (Mt 9:13; 12:7; Mc 12:33) a expressão thysía só aparece duas vezes mais nos
evangelhos: Lc 2:24; 13:1; nenhuma vez em João.
[11] Mt
5:23s. Em grego, a palavra «altar» (thysiastèrion),
aparentada com «sacrifício» (thysía)
é igualmente muito frequente no Antigo Testamento (perto de 400 vezes) e rara
nos evangelhos: 8 vezes. Para além de Mt 5:23s, encontramos-la em Mt 23:18-20 –
onde Jesus critica a casuística dos escribas e fariseus – e em Mt 23:25; Lc
1:11; 11:51, com a finalidade de assinalar um determinado lugar.