teologia para leigos

25 de novembro de 2013

JESUS SACERDOTE? [A. VANHOYE]

O SACERDÓCIO
QUESTÃO ESPINHOSA PARA OS PRIMEIROS CRISTÃOS







[...] Durante a sua vida pública, a pessoa de Jesus provocara uma grande admiração, e levantara muitas questões a seu respeito. Quem era aquele homem? Em que categoria deveria ser ele catalogado? Os evangelhos fazem eco da perplexidade das pessoas e recolhem as opiniões  as mais diversas: Jesus eleito por Deus ou fabricado por Satanás, mestre de sabedoria ou perigoso sedutor, filho de David ou profeta antigo que voltara à terra, etc. É significativo que entre tantas e tão variadas hipóteses nunca se tenha encontrado a ideia do sacerdócio. Aparentemente, parece que ninguém se interrogou se, por acaso, Jesus não seria o sacerdote dos últimos tempos vindo para oferecer a Deus o culto perfeito. Esta ausência de interrogação pode parecer estranha, mas basta recordar a concepção que, à época, reinava acerca do sacerdócio, para que fique esclarecida tal ausência. Era, para todos, evidente que Jesus não era um sacerdote judeu. Era sabido que Jesus não pertencia a uma família sacerdotal e que não possui direito algum a exercer as funções sacerdotais. O sacerdócio excluía outro tipo de pretendentes[1]. O preceituado pela Lei era de uma absoluta severidade: «A Aarão e a seus filhos recomendarás que se encarreguem das suas funções sacerdotais; o leigo que se aproximar será morto»[2]. Era desta forma que se manifestava a “santidade” do sacerdócio: defendia-se uma intransponível separação entre as famílias sacerdotais e as restantes.

Por nascimento, Jesus pertencia à tribo de Judá. Portanto, não era sacerdote segundo a Lei (Thora). A ninguém lhe ocorreu a ideia de lhe atribuir tal título e ele mesmo nunca manifestou a menor pretensão quanto a isso.

A sua actividade nada tinha a haver com sacerdócio, no sentido antigo da palavra: a sua actividade situava-o mais na linha dos profetas. Começara a proclamar a palavra de Deus − aquilo que outrora fizeram os profetas − e a anunciar a proximidade do estabelecimento do reinado de Deus. Por vezes, exprimia-se por meio de acções simbólicas (Mt 21:18-22), nisto, imitando Jeremias, Ezequiel e outros profetas[3]. Os seus milagres recordavam os tempos de Elias e Eliseu: multiplicação de pães, ressurreição do filho duma viúva, cura de leprosos[4]. Num relato de Lucas, o próprio Jesus convida a que se faça esta correlação; em vários momentos, Jesus situou-se implicitamente entre os profetas[5]. Na verdade, muitas pessoas viam nele um profeta e até um grande profeta, «o» profeta esperado[6]. Após a ressurreição, o apóstolo Pedro proclama que Jesus é o profeta semelhante a Moisés, prometido por Deus no Deuteronómio[7].

Como é sabido, os profetas de Israel mantinham as suas distâncias face ao sacerdócio. Criticavam de forma violenta o formalismo que infectara o culto ritual e, pelo contrário, exigiam, no concreto da sua existência, uma verdadeira docilidade face a Deus. A pregação de Jesus ia nesse sentido. Os evangelhos testemunham que Jesus empreendeu uma acção sistemática, não contra a pessoa dos sacerdotes, mas contra uma concepção ritual da religião. Ao negar decididamente conceder importância às regras da «pureza» externa, sem sequer hesitar em colocar a cura de enfermos acima da observância do Sábado, Jesus rejeita a maneira antiga de compreender a santificação[8]. Jesus tomou partido contra o sistema de separação ritual, cujo cume consistia na oferenda sacerdotal das vítimas imoladas, e optava pela orientação contrária: em vez duma santificação conseguida à custa da separação das pessoas, propunha uma santificação que se obtinha acolhendo todos, inclusivamente os pecadores. A palavra thysía, que designa os sacrifícios rituais e que aparece com muita frequência (perto de 400 vezes) no Antigo Testamento, em todos os evangelhos, é colocado apenas em duas ocasiões nos lábios de Jesus, e nessas ocasiões com a finalidade de recordar aos ouvintes que a Deus não lhe agrada esse género de culto[9]. Em Marcos, thysía surge apenas uma vez, dentro duma frase pronunciada por um escriba e aprovada por Jesus, mas mais uma vez na mesma perspectiva: o amor a Deus e ao próximo «vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios»[10]. Sem usar a expressão thysía, há uma outra frase de Jesus que vai no mesmo sentido: Jesus ordena que se procure a reconciliação com o irmão antes de apresentar uma oferenda no altar do Templo.[11]

Por outro lado, os evangelhos referem uma enérgica intervenção de Jesus no interior do Templo[12]. Enfrentando todos aqueles que vendiam animais para o sacrifício, Jesus enfrenta-se com toda a organização do culto sacrificial. João assinala concretamente que Jesus «expulsou do Templo as ovelhas e os bois» (Jo 2:15), ou seja, os animais que iriam ser oferecidos em sacrifício. E Marcos observa que os sumos sacerdotes viram com maus olhos o que acabara de acontecer, por razões que são fáceis de adivinhar.

Há uma certa relação entre esta iniciativa de Jesus e […].

Albert Vanhoye
Exegeta e Professor no Instituto Pontifício de Roma

«Sacerdotes Antiguos, Sacerdote Nuevo – según el Nuevo Testamento», Sígueme, Salamanca 52006, 55-59.64-74.





[1] Ex 28:1; Lev 8:2; Nm 16-17; Sir 45:15.25.
[2] Nm 3:10; cf. 3:38.
[3] 1Rs 22:11; Jer 19:10; Ez 4:1-3.
[4] Mt 14:13-21 e 2Rs 4::42-44; Lc 7:11-17 e 1Rs 17:17-24; Mt 8:1-4 e 2Rs 5.
[5] Lc 4:24-27; Mt 13:57; Lc 13:33.
[6] Lc 7:16.39; Mt 21:11.46; Jo 4:19; 6:14; 7:40; 9:17.
[7] Act 3:22, citando Dt 18:18.
[8] Mt 9:10-13 par.; 12:1-13 par.; 15:1-20 par.; Jo 5:16-18; 9:16.
[9] Mt 9:13; 12:7; nestas duas vezes cita Os 6:6.
[10] Mc 12:33. Para além destes três usos (Mt 9:13; 12:7; Mc 12:33) a expressão thysía só aparece duas vezes mais nos evangelhos: Lc 2:24; 13:1; nenhuma vez em João.
[11] Mt 5:23s. Em grego, a palavra «altar» (thysiastèrion), aparentada com «sacrifício» (thysía) é igualmente muito frequente no Antigo Testamento (perto de 400 vezes) e rara nos evangelhos: 8 vezes. Para além de Mt 5:23s, encontramos-la em Mt 23:18-20 – onde Jesus critica a casuística dos escribas e fariseus – e em Mt 23:25; Lc 1:11; 11:51, com a finalidade de assinalar um determinado lugar.
[12] Mt 21:12s par.; Jo 2:14-16.