Libertemos
a Oração
(um testemunho
pessoal)
Abadia de Boquen |
Pelo título desta conferência[1]
podem desde já prever que a nossa matéria é muito complexa. Fala-se em libertar
a oração e isto supõe imediatamente que se saiba o que é a Oração. Supõe-se
também que se saiba exactamente quem sou eu, e quem é Deus, e qual o tipo de
relação que se pode estabelecer entre os dois, além de que, se se começar de
repente a falar de Oração, receio que o nosso discurso se torne muito
artificial em comparação com o discurso de Roger Garaudy [Marselha, 1913 -
Paris, 2012] e de José María González Ruiz [Málaga, 1915-2005].
Penso que o que está no centro é o homem, a sua própria vida, e,
presentemente, não se pode introduzir um discurso sobre a Oração que seja
completamente estranho à problemática dos homens de hoje. Se, de repente, se
começasse a falar de Oração, e se saltasse por cima desta problemática,
parece-me que se cairia num discurso absolutamente alheio à nossa vida
quotidiana. Um exemplo: se se partir de uma concepção da Oração como diálogo com Deus, é-se introduzido
de imediato numa terminologia que não corresponde à nossa experiência
quotidiana.
Suponho que a vossa experiência será um pouco
como a minha. Quando começo uma Oração, não faço outra experiência senão a de
um monólogo ou, se estamos em comunidade para celebrar em conjunto, as palavras
que são ditas são palavras que vão de um para outro, de uns para os outros
membros da comunidade, mas, uma vez mais, trata-se dum discurso entre homens.
E, quando se trata da Escritura, se se fala da Palavra de Deus, eu não vejo,
não sinto senão as palavras dos homens, isto é, dos profetas, dos outros e não
as palavras de Deus directamente. Assim, todo o discurso que habitualmente se
faz sobre a Oração coloca-nos no mundo dum pensamento diferente daquele no qual
se desenvolve a nossa existência.
Por outro lado, quando se fala de libertação
da oração, a expressão «libertação» pode ser compreendida de modos
diferentes. «Libertar a oração» pode significar «libertar a oração de todas as
fórmulas falsas» nas quais a verdadeira Oração pode estar aprisionada. Não quer
dizer, directamente, libertar-se da Oração, mas sim «libertar-se destas formas
falsas da oração». E, num terceiro sentido, a libertação da oração pode também
querer dizer «atingir um tipo de oração que seja para nós fonte de libertação»,
que seja obtenção duma libertação através da Oração.
Portanto, já pelo título «libertemos
a oração» vemos quanto é difícil defrontar os diversos problemas paralelos a
este. Assim, preferi, em primeiro lugar, apresentar-vos a minha própria
experiência de Oração, e, em segundo lugar, ver como através desta experiência
nos podemos, efectivamente, libertar de tantas fórmulas falsas ou difíceis de
Oração.
Partindo de uma experiência pessoal,
que é muito limitada ─
é preciso que se tome consciência destas limitações ─ tem-se a vantagem de estar no plano
da nossa existência concreta.
Para mim, o problema da
Oração não é o essencial na minha vida, porque o problema que é essencial na minha vida é o sentido da minha vida, o problema de crescer, o problema
de me construir, o problema de construir o mundo com os outros,
de construir a sociedade na qual estamos inseridos. E, quando todos os dias
faço a experiência desta vida, deste esforço para crescer, faço ao mesmo tempo,
na minha vida, a experiência de tantas
dificuldades para ser aquilo que, com um certo pressentimento, penso ser justo.
. Queria ser uma fonte, uma luz,
embora existam em mim tantas trevas.
. Queria ser uma liberdade em acto
embora existam em mim tantos determinismos que fazem de mim uma espécie de
máquina que funciona sem que haja no seu interior esta presença, esta liberdade,
esta consciência desperta para dar um sentido à minha vida.
. Queria ser uma fonte de unidade
entre os homens e, no entanto, encontro em mim tantas forças que me dividem e
tantos esforços que me opõem aos outros; talvez, os outros também se oponham a
mim.
Portanto, no construir a minha própria vida, no construir a sociedade à qual pertenço encontro tanta obscuridade, tanta dificuldade!
Relacionado com esta problemática,
houve um momento em que entrei em contacto com a
história de Israel e com a história deste homem, Jesus de Nazaré.
Relacionado com esta experiência de busca dum sentido vivo para a minha existência e
para a minha existência com os outros, quando
encontro os outros estabelece-se uma espécie de
dialéctica. Quando nós encontramos os outros há sempre uma espécie
de dialéctica que se estabelece entre nós e os outros; estabelece-se um
confronto que procura descobrir um pouco do sentido da vida do homem, porque todo o homem é para os outros homens um sinal a ler,
um sinal para ser lido e do qual se deve descobrir o significado, caso ele nos
ajude a compreender melhor o que é decisivo na nossa vida.
Nesta dialéctica, e não de modo
diverso, deste confronto com os outros homens encontro o povo de Israel,
encontro a figura muito excepcional de Jesus de Nazaré. E na leitura que faço
destes acontecimentos, desta história, desta vida, aprofunda-se a dimensão da
minha experiência humana.
Quando Jesus diz, no Evangelho,
«compreenda quem tiver ouvidos para compreender» (Mt 11:15), penso que queria
dizer: só quem fez a experiência
da prisão, da escravidão pessoal compreende a mensagem da libertação que existe
nesta vida, nesta história do povo de Israel, nesta vida do homem Jesus. Sinto
que, para compreender o que está no interior destas histórias, os meus ouvidos
são muito mais perspicazes, quando, através da minha vida, tive experiências
dolorosas, difíceis, na construção do mundo, na construção da minha vida.
Confrontando a minha experiência com o que se diz da de Jesus e do seu ensinamento
─ da sua vida e do seu
ensinamento, os quais devem ser sempre inseridos na história de Israel ─, sinto que nestas histórias existem elementos absolutamente determinantes para a
minha vida, ainda que não consiga prová-lo aos outros, ainda que não possa
impô-los aos outros nem provar aos outros ─ com argumentos científicos ou matemáticos ─ que tenho razão para acreditar
neles.
(…)
[9 pp.]
Bernard Besret, monge de Cister [entre
1953-1974].
Doutor em Teologia, prior da Abadia Cisterciense de Boquen entre
1964 e 1969, teólogo influente no Concílio Ecuménico Vaticano II, cuja Biografia
merece uma atenção muito particular. Converte-se ao Taoismo em 1997 [cf. FONTE Wikipedia].
[1] Esta é uma entre várias
participações numa mesa-redonda sobre Oração. É frequentemente evidente o estilo coloquial deste texto e doutras
intervenções, que se produziram no 25º “Simpósio de Jovens”, em Itália, no
início dos anos 70, editado pela “Livraria TELOS” – Porto sob o título «UM RISCO CHAMADO ORAÇÃO» em 1973.