Raramente nos lembramos – se é que isso
alguma vez nos foi ensinado na catequese ou nos movimentos laicais – que «o carácter
único da salvação que se realiza no Messias Jesus (…) é irrupção do poder, mas
na debilidade»
[Rafael Aguirre Monasterio e Antonio Rodríguez Carmona].
Este texto de José Comblin −
falecido há pouco anos, figura profética do maior
quilate dos últimos 60 anos, fonte inesgotável de surpresas evangélicas
libertadoras, teólogo sadio (apelidado por bispos seus inimigos, e pela
ditadura brasileira também, de teólogo “zangado, ácido e perigoso”, nisso
coincidindo ‘política’ e ‘religião’ tal como com o Profeta Elias [1Rs 18:17])
– este longo texto do
Padre José, que será seguido da sua II Parte mais tarde («A oração de Jesus II –
Porque me abandonaste?»), inicia-nos nos meandros, tão dramáticos, quanto
íntimos e trágicos, da Oração de Jesus. O mesmo é dizer, pega-nos pela mão e
leva-nos a percorrer os labirintos de sangue da mais estreme dúvida de quem
ouve o bater da jugular, mergulhado na difícil solidão, que sempre antecede as
grandes decisões da vida.
A oração, aqui, é tudo menos refúgio
ou rochedo. Mesmo para o chegar a ser (Sl 94:18-19), não será nunca fácil contornar
a lanceta da revolta e do desespero (Sl 94:1-2). Eis um testemunho diante do qual não
diremos “que faço da oração?”, mas “que fiz da minha vida” até aqui, ou "que queres de mim Senhor?"
Este texto lança o alerta: certos modelos de oração e certas "celebrações litúrgicas" podem tornar-se na morte da Fé no Reino...
Este texto lança o alerta: certos modelos de oração e certas "celebrações litúrgicas" podem tornar-se na morte da Fé no Reino...
A
Oração de Jesus
I - “Mas o que tu queres”
As orações de Jesus são poucas. Contudo,
elas constituem pontos altos da mensagem evangélica. (…) Essas orações
levantam, sem dúvida, um problema histórico. Não podemos garantir, com
argumentos históricos, que elas tenham sido pronunciadas literalmente tal como
são apresentadas. Mas essa literalidade não é imprescindível. Sabemos que
ninguém poderia ter inventado nem o estilo nem o conteúdo das orações de
Cristo. Os redactores escreveram-nas a partir da experiência que tiveram do
próprio Jesus.
As
orações revelam-nos alguns aspectos da humanidade de Jesus: mostram-no
totalmente humano. A exegese cristã tem por dever insistir nesse aspecto,
porque é justamente essa humanidade que separa o
cristianismo de todas as mitologias e religiões inventadas pelos
homens. (…) À medida que a nossa época está passando por uma fase de
secularização, podemos dizer que há uma crise de oração. De qualquer modo, não
sairemos da crise pelo apego angustiado a usos e costumes tradicionais ou a
formulários de outros tempos, mas, sim, pelo regresso às origens da oração
cristã, pela volta às fontes e ao essencial.
As
tradições evangélicas mais antigas referem-nos apenas dois exemplos da oração
de Jesus, ambos no contexto da paixão e da morte. O primeiro está colocado no
início da Paixão e o segundo no fim: o primeiro, no jardim denominado Getsémani (Mt 26:35; Mc 14:32-42; Lc 22:39-46; Jo
18:1-2); o segundo, no Calvário (Mt
27:45; Mc 15:33-41; Lc 23:44-49; Jo 19:28-30). Essa colocação não pode ser
arbitrária. De acordo com a tradição evangélica, há uma relação íntima entre a
oração de Jesus e o acontecimento em que ela se situa. Portanto, podemos
afirmar que oração e acontecimento se iluminam mutuamente.
Vejamos,
primeiro, a oração de Getsémani. «Chegam, então, a uma propriedade denominada
Getsémani, e Jesus diz aos seus discípulos: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou
rezar’. Toma consigo Pedro, Tiago e João e começa a sentir pavor e angústia. E
diz-lhes: ‘Minha alma está a morrer de tristeza; ficai aqui e vigiai’» (Mc
14:32-34).
1. Vigiar
Esta
é a oração da vigília. Ela realiza-se antes do acontecimento, no entanto, tão
intimamente unida ao próprio acontecimento que se pode dizer que faz parte
dele. Como é que a oração e o acontecimento se vinculam assim de modo tão
estreito? É a primeira consideração que devemos fazer.
Muitos
acham que oração e história não somente
caminham independentemente uma da outra como que até se excluem. De facto,
muitos fenómenos contribuem para tal opinião. Quase sempre, nas religiões
orientais que mais desenvolveram a sua arte e a sua prática, a oração consiste
num relacionamento com deuses ou forças situadas fora deste mundo e
indiferentes ao desenrolar dos acontecimentos. Entrar em estado de oração
consiste então em sair da história deste mundo, em tornar-se distante ou
insensível ao fluir de acontecimentos que sucede na vida e recordar as verdades eternas, as realidades imutáveis para contemplá-las ou interpretá-las.
De facto, à primeira vista, a experiência superficial da oração dos religiosos ─
de modo particular a experiência dos contemplativos, mas também a dos cristãos
piedosos ─ parece confirmar que não
há grande diferença entre as antigas religiões orientais e o catolicismo dos
nossos dias.
Temos,
por outro lado, uma realidade particular: o caso daqueles que procuram, na
oração, um refúgio fora e longe da marcha concreta dos acontecimentos, porque
foram atingidos e feridos por eles. Na verdade, muitos
recorrem à oração depois de terem sido derrotados pela vida, quando
já não encontram recursos em si mesmos ou ao seu alcance. São os que rezam
depois de consumado o facto: Jesus rezava antes.
Ora, já que não rezaram antes,
é muito provável que a oração feita depois
permaneça inútil, eventualmente, até, nociva. Por não
terem rezado antes, eles não puderam entrar na marcha do Reino de Deus
e viver os acontecimentos dentro dessa dinâmica. A oração feita depois da ocorrência procura frequentemente
neutralizá-la, exorcizá-la ou recuperá-la. Diante do acontecido ─ uma desgraça,
uma doença, uma derrota, uma humilhação, uma frustração ─ a pessoa sente-se
desamparada e suplica a um deus que suprima, anule o acontecido ou mude o seu
rumo com vistas a uma vantagem posterior. O que se pede à força sobrenatural é
que não tenha acontecido o que aconteceu. Quem
reza depois quer que um deus faça a história voltar atrás, apagando
assim o mal que os afectou.
Essa
oração corresponde ao grito de um animal ferido.
A capacidade de fantasiar confere à pessoa ferida a possibilidade de expressar
o grito sob a forma de um apelo a uma força eventual que a imaginação coloca
diante dela. Essa fantasia, porém, não muda radicalmente a qualidade do grito.
O grito é humano, demasiado humano, mas de uma humanidade superficial. Essa
opção impede a verdadeira oração de Cristo.
Essa
forma de oração é bastante comum na vida das multidões e é espontânea em cada
um de nós, pelo menos em certas ocorrências totalmente imprevisíveis, e sob a
forma de reflexos incontroláveis: é o
caso do desastre, dos acidentes de qualquer tipo, terramotos e outros desastres
naturais, raios, quedas, emergências diversas, insegurança, assaltos,
tiroteios, etc. Não nos vamos deter nessa forma de oração.
Além
do exemplo da oração que vem depois do ocorrido, a experiência do mundo
religioso mostra-nos exemplos de vidas de oração que, pelo menos aparentemente,
nunca interferem com a história exterior. Nessas vidas, a oração desenrola-se
segundo ritmos tais que as ocorrências do mundo nunca a afectam. O conteúdo da
oração relaciona-se com realidades independentes dos objectos exteriores. A
pessoa religiosa parece rezar para executar uma tarefa imposta por um mundo
paralelo. Essa tarefa não parece ter significado neste mundo. Para compreender
o seu valor seria preciso entrar nesse outro mundo e sair deste. Nesse outro
mundo, os acontecimentos deste mundo são insignificantes; nesse outro mundo os verdadeiros acontecimentos são as celebrações, os ritos, as orações. Assim, as
religiões inventaram um verdadeiro mundo de deuses e de espíritos. Nesse
mundo existem acontecimentos próprios, invisíveis aos olhos carnais. Os rituais
permitem às pessoas iniciadas uma participação nos acontecimentos invisíveis.
Assim, o coro dos monges seria uma participação no mundo dos anjos, e os ciclos litúrgicos ─ o ciclo de cada dia, de
cada semana, de cada ano ─ acompanhariam as realidades sobrenaturais. A repetição cíclica seria o modo humano de assumir
os factos eternos dos deuses: a pessoa seria chamada a celebrar, através duma repetição sem
fim, alguns acontecimentos celestes.
Certas
tradições cristãs parecem ter adoptado essa existência paralela própria das
religiões antigas. A oração, que é simplesmente o cumprimento dum ciclo ─ ciclo de cada dia, de cada semana, de
cada ano ─ entra na categoria de celebração. Em certas tradições religiosas
cristãs, o nascimento e a morte de Jesus, a Páscoa
e o Pentecostes, a eleição e a missão dos apóstolos, o baptismo ou a
transfiguração de Jesus são acontecimentos que saíram deste mundo e entraram
numa epopeia eterna: são realidades
celestes, já deixaram de ser parte da nossa história. Não precisam ser
compreendidas dentro da trama da nossa história política, económica ou
cultural: precisam de ser apenas celebradas.
A Páscoa transformou-se num acontecimento celestial, objecto duma aclamação
angelical, à qual os homens precisam de se associar cada dia, cada semana, cada
ano. O sentido dessa Páscoa foi determinado para
sempre por textos litúrgicos imutáveis. Basta reler esses textos para recordar
o significado que eles contêm. A Páscoa tornou-se algo imóvel, tão
imutável como o próprio ciclo litúrgico. Nesse caso, celebrar a Páscoa é
esquecer-se das coisas que ocorrem e passam neste mundo para entrar num
acontecimento dum outro mundo que não passa e se desenrola sempre da mesma
maneira. Assim, a pessoa pode ter a impressão de viver livre das contingências
deste mundo, das circunstâncias imprevistas,
desagradáveis, surpreendentes, muitas vezes deprimentes ou
insignificantes de um mundo desencantado, para entrar num mundo estável, cheio
de significados, um mundo em que tudo está em ordem, com cada coisa no seu lugar.
Nenhuma
oração cristã se reduz exclusivamente a este esquema. Porém, existiram e ainda
existem muitas realizações em que a força desse esquema pesa sobre o dinamismo
espiritual e reprime a verdadeira oração cristã.
A
oração que consiste em viver numa existência paralela, fora deste mundo
variável e frágil, pode dar segurança, tranquilidade, paz interior, ânimo para
o trabalho, mas, em outros casos e momentos, também pode engendrar um aparelho
de escravidão mais subtil e insinuante do
que a escravidão material, igualmente ou até mais implacável, exigente e
destruidor da liberdade.
(…)
José Comblin
[18
pp.]
CONSULTE A BIOGRAFIA DE JOSÉ COMBLIN na Wikipedia