teologia para leigos

20 de setembro de 2013

A ORAÇÃO DE JESUS_1 [J. COMBLIN]

Raramente nos lembramos – se é que isso alguma vez nos foi ensinado na catequese ou nos movimentos laicais – que «o carácter único da salvação que se realiza no Messias Jesus (…) é irrupção do poder, mas na debilidade» [Rafael Aguirre Monasterio e Antonio Rodríguez Carmona].

Este texto de José Comblin − falecido há pouco anos, figura profética do maior quilate dos últimos 60 anos, fonte inesgotável de surpresas evangélicas libertadoras, teólogo sadio (apelidado por bispos seus inimigos, e pela ditadura brasileira também, de teólogo “zangado, ácido e perigoso”, nisso coincidindo ‘política’ e ‘religião’ tal como com o Profeta Elias [1Rs 18:17]) – este longo texto do Padre José, que será seguido da sua II Parte mais tarde («A oração de Jesus II – Porque me abandonaste?»), inicia-nos nos meandros, tão dramáticos, quanto íntimos e trágicos, da Oração de Jesus. O mesmo é dizer, pega-nos pela mão e leva-nos a percorrer os labirintos de sangue da mais estreme dúvida de quem ouve o bater da jugular, mergulhado na difícil solidão, que sempre antecede as grandes decisões da vida.

A oração, aqui, é tudo menos refúgio ou rochedo. Mesmo para o chegar a ser (Sl 94:18-19), não será nunca fácil contornar a lanceta da revolta e do desespero (Sl 94:1-2). Eis um testemunho diante do qual não diremos “que faço da oração?”, mas “que fiz da minha vida” até aqui, ou "que queres de mim Senhor?"

Este texto lança o alerta: certos modelos de oração e certas "celebrações litúrgicas" podem tornar-se na morte da Fé no Reino...


A Oração de Jesus

I - “Mas o que tu queres”






As orações de Jesus são poucas. Contudo, elas constituem pontos altos da mensagem evangélica. (…) Essas orações levantam, sem dúvida, um problema histórico. Não podemos garantir, com argumentos históricos, que elas tenham sido pronunciadas literalmente tal como são apresentadas. Mas essa literalidade não é imprescindível. Sabemos que ninguém poderia ter inventado nem o estilo nem o conteúdo das orações de Cristo. Os redactores escreveram-nas a partir da experiência que tiveram do próprio Jesus.

As orações revelam-nos alguns aspectos da humanidade de Jesus: mostram-no totalmente humano. A exegese cristã tem por dever insistir nesse aspecto, porque é justamente essa humanidade que separa o cristianismo de todas as mitologias e religiões inventadas pelos homens. (…) À medida que a nossa época está passando por uma fase de secularização, podemos dizer que há uma crise de oração. De qualquer modo, não sairemos da crise pelo apego angustiado a usos e costumes tradicionais ou a formulários de outros tempos, mas, sim, pelo regresso às origens da oração cristã, pela volta às fontes e ao essencial.



As tradições evangélicas mais antigas referem-nos apenas dois exemplos da oração de Jesus, ambos no contexto da paixão e da morte. O primeiro está colocado no início da Paixão e o segundo no fim: o primeiro, no jardim denominado Getsémani (Mt 26:35; Mc 14:32-42; Lc 22:39-46; Jo 18:1-2); o segundo, no Calvário (Mt 27:45; Mc 15:33-41; Lc 23:44-49; Jo 19:28-30). Essa colocação não pode ser arbitrária. De acordo com a tradição evangélica, há uma relação íntima entre a oração de Jesus e o acontecimento em que ela se situa. Portanto, podemos afirmar que oração e acontecimento se iluminam mutuamente.

Vejamos, primeiro, a oração de Getsémani. «Chegam, então, a uma propriedade denominada Getsémani, e Jesus diz aos seus discípulos: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou rezar’. Toma consigo Pedro, Tiago e João e começa a sentir pavor e angústia. E diz-lhes: ‘Minha alma está a morrer de tristeza; ficai aqui e vigiai’» (Mc 14:32-34).


1. Vigiar

Esta é a oração da vigília. Ela realiza-se antes do acontecimento, no entanto, tão intimamente unida ao próprio acontecimento que se pode dizer que faz parte dele. Como é que a oração e o acontecimento se vinculam assim de modo tão estreito? É a primeira consideração que devemos fazer.

Muitos acham que oração e história não somente caminham independentemente uma da outra como que até se excluem. De facto, muitos fenómenos contribuem para tal opinião. Quase sempre, nas religiões orientais que mais desenvolveram a sua arte e a sua prática, a oração consiste num relacionamento com deuses ou forças situadas fora deste mundo e indiferentes ao desenrolar dos acontecimentos. Entrar em estado de oração consiste então em sair da história deste mundo, em tornar-se distante ou insensível ao fluir de acontecimentos que sucede na vida e recordar as verdades eternas, as realidades imutáveis para contemplá-las ou interpretá-las. De facto, à primeira vista, a experiência superficial da oração dos religiosos ─ de modo particular a experiência dos contemplativos, mas também a dos cristãos piedosos  parece confirmar que não há grande diferença entre as antigas religiões orientais e o catolicismo dos nossos dias.

Temos, por outro lado, uma realidade particular: o caso daqueles que procuram, na oração, um refúgio fora e longe da marcha concreta dos acontecimentos, porque foram atingidos e feridos por eles. Na verdade, muitos recorrem à oração depois de terem sido derrotados pela vida, quando já não encontram recursos em si mesmos ou ao seu alcance. São os que rezam depois de consumado o facto: Jesus rezava antes. Ora, já que não rezaram antes, é muito provável que a oração feita depois permaneça inútil, eventualmente, até, nociva. Por não terem rezado antes, eles não puderam entrar na marcha do Reino de Deus e viver os acontecimentos dentro dessa dinâmica. A oração feita depois da ocorrência procura frequentemente neutralizá-la, exorcizá-la ou recuperá-la. Diante do acontecido ─ uma desgraça, uma doença, uma derrota, uma humilhação, uma frustração ─ a pessoa sente-se desamparada e suplica a um deus que suprima, anule o acontecido ou mude o seu rumo com vistas a uma vantagem posterior. O que se pede à força sobrenatural é que não tenha acontecido o que aconteceu. Quem reza depois quer que um deus faça a história voltar atrás, apagando assim o mal que os afectou.

Essa oração corresponde ao grito de um animal ferido. A capacidade de fantasiar confere à pessoa ferida a possibilidade de expressar o grito sob a forma de um apelo a uma força eventual que a imaginação coloca diante dela. Essa fantasia, porém, não muda radicalmente a qualidade do grito. O grito é humano, demasiado humano, mas de uma humanidade superficial. Essa opção impede a verdadeira oração de Cristo.

Essa forma de oração é bastante comum na vida das multidões e é espontânea em cada um de nós, pelo menos em certas ocorrências totalmente imprevisíveis, e sob a forma de reflexos incontroláveis: é o caso do desastre, dos acidentes de qualquer tipo, terramotos e outros desastres naturais, raios, quedas, emergências diversas, insegurança, assaltos, tiroteios, etc. Não nos vamos deter nessa forma de oração.

Além do exemplo da oração que vem depois do ocorrido, a experiência do mundo religioso mostra-nos exemplos de vidas de oração que, pelo menos aparentemente, nunca interferem com a história exterior. Nessas vidas, a oração desenrola-se segundo ritmos tais que as ocorrências do mundo nunca a afectam. O conteúdo da oração relaciona-se com realidades independentes dos objectos exteriores. A pessoa religiosa parece rezar para executar uma tarefa imposta por um mundo paralelo. Essa tarefa não parece ter significado neste mundo. Para compreender o seu valor seria preciso entrar nesse outro mundo e sair deste. Nesse outro mundo, os acontecimentos deste mundo são insignificantes; nesse outro mundo os verdadeiros acontecimentos são as celebrações, os ritos, as orações. Assim, as religiões inventaram um verdadeiro mundo de deuses e de espíritos. Nesse mundo existem acontecimentos próprios, invisíveis aos olhos carnais. Os rituais permitem às pessoas iniciadas uma participação nos acontecimentos invisíveis. Assim, o coro dos monges seria uma participação no mundo dos anjos, e os ciclos litúrgicos ─ o ciclo de cada dia, de cada semana, de cada ano ─ acompanhariam as realidades sobrenaturais. A repetição cíclica seria o modo humano de assumir os factos eternos dos deuses: a pessoa seria chamada a celebrar, através duma repetição sem fim, alguns acontecimentos celestes.

Certas tradições cristãs parecem ter adoptado essa existência paralela própria das religiões antigas. A oração, que é simplesmente o cumprimento dum ciclo ─ ciclo de cada dia, de cada semana, de cada ano ─ entra na categoria de celebração. Em certas tradições religiosas cristãs, o nascimento e a morte de Jesus, a Páscoa e o Pentecostes, a eleição e a missão dos apóstolos, o baptismo ou a transfiguração de Jesus são acontecimentos que saíram deste mundo e entraram numa epopeia eterna: são realidades celestes, já deixaram de ser parte da nossa história. Não precisam ser compreendidas dentro da trama da nossa história política, económica ou cultural: precisam de ser apenas celebradas. A Páscoa transformou-se num acontecimento celestial, objecto duma aclamação angelical, à qual os homens precisam de se associar cada dia, cada semana, cada ano. O sentido dessa Páscoa foi determinado para sempre por textos litúrgicos imutáveis. Basta reler esses textos para recordar o significado que eles contêm. A Páscoa tornou-se algo imóvel, tão imutável como o próprio ciclo litúrgico. Nesse caso, celebrar a Páscoa é esquecer-se das coisas que ocorrem e passam neste mundo para entrar num acontecimento dum outro mundo que não passa e se desenrola sempre da mesma maneira. Assim, a pessoa pode ter a impressão de viver livre das contingências deste mundo, das circunstâncias imprevistas, desagradáveis, surpreendentes, muitas vezes deprimentes ou insignificantes de um mundo desencantado, para entrar num mundo estável, cheio de significados, um mundo em que tudo está em ordem, com cada coisa no seu lugar.

Nenhuma oração cristã se reduz exclusivamente a este esquema. Porém, existiram e ainda existem muitas realizações em que a força desse esquema pesa sobre o dinamismo espiritual e reprime a verdadeira oração cristã.

A oração que consiste em viver numa existência paralela, fora deste mundo variável e frágil, pode dar segurança, tranquilidade, paz interior, ânimo para o trabalho, mas, em outros casos e momentos, também pode engendrar um aparelho de escravidão mais subtil e insinuante do que a escravidão material, igualmente ou até mais implacável, exigente e destruidor da liberdade.

(…)

José Comblin

[18 pp.]



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