A Oração de Jesus
II - “Porque me abandonaste?”
No fim da Paixão, os Evangelhos colocam, nos lábios de Jesus, outra oração.[1] O supliciado chegou ao fim dos seus sofrimentos. Jesus está para morrer. “À hora nona, Jesus clamou em alta voz: ─ “Eloí, Eloí, lama sabactaní”, o que significa: ─ “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mc 15:34).
(…)
Aliás, Jesus invocou esse critério: a árvore é julgada pelos frutos (Mt 7:20). Ora, onde estão os frutos? Os discípulos? Todos fugiram. O povo? Ausente. A conversão de Israel? Eis aí os princípes de Israel triunfantes, mais confiantes do que nunca na sua sabedoria. Tudo dá razão aos ex-discípulos que se encontram com Jesus perto de Emaús: foi uma ilusão! A derrota mostra que tudo era ilusão. Deus não estava com ele.
Na realidade, nada desnorteia mais a pessoa do que a falta de relação entre os actos e o êxito. Espontaneamente, esperamos que os resultados respondam aos nossos actos e que os actos bons, racionais, dotados de muitas qualidades positivas, produzam efeitos bons proporcionais às qualidades dos actos. Inclusivamente, na missão cristã. Preparamos a missão, estabelecemos actos, gestos, campanhas articuladas, sacrificamos muita coisa à execução dos actos previstos, sacrificamos dinheiro, terra, família, possibilidades, carreira, saúde e a própria vida. Depois disso, constatamos que os resultados diferem muito das expectativas.
Espontaneamente, achamos que o êxito é o resultado dos esforços feitos e, portanto, justifica os actos que o visavam. Ao invés, julgamos que o fracasso condena os actos anteriores e procuramos neles as deficiências que o explicam. O êxito engendra a boa consciência e o fracasso a consciência de culpa. Como se a derrota fosse a condenação e a vitória a aprovação. Assim, os vencedores crerão que a vitória é a recompensa das suas qualidades, e os vencidos crerão que a derrota é o castigo dos seus vícios. A própria teologia católica ensinou isso até há bem pouco tempo. De facto, poucas vezes sucede que os vencedores confessem os seus pecados ou tenham consciência de serem mais pecadores do que os vencidos; e, de modo natural, os vencidos fazem a confissão dos seus pecados, como se os tivessem descoberto aquando da própria derrota.
Se, na mente do povo, toda a derrota já é sinal de reprovação divina, tanto mais no caso de Jesus. Daí esse novo elemento de abandono: o facto de se sentir sem argumento, sem advogado, no momento exacto em que o argumento é necessário.
O que ensina esse episódio é que não há relação lógica, evidente, racional, entre os actos humanos e os resultados. As pessoas não fazem a História à vontade, não são as donas da História. Interferem nela. Interferem na História das nações e das civilizações e também na História do Reino de Deus. Porém, os resultados dessa interferência não aparecem imediatamente. Não há critérios definidos de antemão que nos permitam conhecer os resultados de determinada acção. O que se chama êxito ou derrota pode ter pouca relação com os actos anteriores. A História prossegue. O que sucede num momento ulterior pode desmentir o que sucedeu num momento anterior. Assim, a ressurreição desmente a morte de Jesus.
Contudo, no momento, tudo tem as aparências de uma derrota; então, como apagar a impressão de culpabilidade que sugere essa derrota? Apesar de estar consciente da sua inocência, Jesus sente-se acusado, reprovado, portanto, abandonado não apenas externamente, mas também pela convicção interior das pessoas. Ele sabe que o povo e os seus o acusam interiormente por tê-los decepcionado. Acham que ele os enganou levando-os a acreditar numa ilusão. Mais ainda, essa ilusão levou-os, a eles também, a uma derrota, e como não teriam rancor por essa derrota? Os seus o abandonaram, também, no seu coração.
Abandonado por Deus
Jesus reza assim: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Ninguém poderia ter inventado que o Filho de Deus tivesse experimentado a ausência de Deus. Essa palavra é autêntica. Ela revela-nos o fundo da experiência religiosa cristã. No hora em que Jesus está totalmente desamparado, Deus responde com o silêncio. Deus fica calado, aparentemente ausente, de tal modo que Jesus chega a sentir-se abandonado. Experiência de um vazio tremendo, de alguém que está em falta, que devia estar presente e não está.
Desse modo, Jesus experimenta a solidão humana nos combates desta vida, e Deus não interrompe essa solidão. Essa foi a experiência que fizeram também os profetas e os místicos, ainda que as lendas populares mantenham, entre as pessoas ingénuas, a convicção de que as pessoas mais religiosos e as mais espirituais gozem da convivência dos anjos e dos santos, de tal modo que, para elas, o calvário se transforma num paraíso.
É verdade que a humanidade teme essa solidão humana, a solidão da criatura humana nas horas decisivas da sua vida e, (…).
José Comblin
[14 p.]
[1] Cf. A primeira Oração, «A ORAÇÃO DE JESUS – I – «Mas o que tu queres» (20 Set. 2013); in: http://asaladecima.blogspot.pt/2013/09/a-oracao-de-jesus1-j-comblin.html