teologia para leigos

27 de setembro de 2013

ESCUTEMOS O POBRE [F. CARRASQUILLA]

Depois de ter terminado a tradução deste VI Cap. que agora tem diante de si (o último capítulo deste extenso trabalho sobre antropologia do pobre), fiquei a pensar que aquilo que VERDADEIRAMENTE merecia ser editado em português eram os cinco capítulos anteriores a este.

Que extraordinária meditação, reflexiva e ao mesmo tempo maternal e amorosa, não sobre os pobres, mas sobre as pessoas pobres, as pessoas mal apresentadas por fora, e sobretudo, destruídas por dentro!

Um imprescindível instrumento de trabalho. Um tesouro!

Bom – na impossibilidade de mais, deixo, na folha de rosto, o link de todo o documento em castelhano (que contém 79 páginas).

A Igreja católica desenvolveu, ao longo dos tempos, diversas ambiguidades na sua relação com os marginalizados, ambiguidades com origem em causas diversas. Dois exemplos: faz sentido a Igreja institucionalizar a distribuição de bens fora do contexto íntimo duma dinâmica comunitária? Em matéria de «assistência aos pobres» (pseudo-ajuda), faz sentido a Igreja pôr-se ao serviço dum Governo Neo-liberal e de Capitalismo financeirizado selvagem como almofada para as suas políticas austeritárias?

Estas duas perguntas são cada vez mais pertinentes. A primeira, de natureza teológica (eclesiológica; cf. «A Igreja não pode ser uma ONG» - Papa Francisco). A segunda, de natureza estratégica (evangelização / missionação). Esta segunda tem a premência da época que atravessamos, pois é uma época em que as finanças penetraram todas as relações comerciais, numa extensão directa sem precedentes. E em que a envergadura deste fenómeno é a da maior "acumulação de capital" e de "intensificação das suas crises" (Ben Fine, 2005). «Para Krippner, na sua panorâmica sobre a financeirização contemporânea nos Estados Unidos, tal [fenómeno] "não corresponde necessariamente a uma fase inteiramente nova do capitalismo..."» (Ben Fine). Aquilo a que chamamos 'disfuncionamento do sistema' tem causas (leis) sistémicas, são resultado da flexibilização em todos os mercados e da desvalorização do salário (...). «Por outras palavras, as leis que determinam a repartição de rendimentos são centrais na crise de hoje. Nunca como agora David Ricardo esteve tão actual, quando afirmou nos seus Princípios que «[o] principal problema da Economia Política consiste em determinar as leis que regem esta distribuição». (João Ferreira do Amaral, Gerald Epstein, Ben Fine, Jan Toporowski, "Financeirização da Economia - a última fase do neoliberalismo", FEUC, Ed. 'LIVRE', Lisboa 2010, ISBN 978-972-8920-69-2, Telf.: 21.886.7519) 

Perante esta «espiral do inferno» em que «é o futuro de cada um de nós que alguém anda a caçar» (ibidem, p. 5), a Igreja deve rever e re-equacionar toda a sua estratégia caritativa. É nesta linha que se posiciona o texto do padre Federico Carrasquilla. Parte deste pano de fundo económico, financeiro e político para redirecionar a "estratégia" evangélica da Fé, bem como a forma inteligente e eficaz da Igreja viver a sua relação com os pobres. O apresentador do livro, o padre Horacio Arango, diz o seguinte:



«A mi juicio, esta antropología plantea como condición que el esfuerzo reflexivo se articule a partir de una experiencia vital de encuentro con los pobres, que incluye de alguna manera nuestra propia experiencia de pobreza.»

«Una mirada atenta a los pobres - nos dice Federico -, al mundo de significaciones que allí se descubre, mejor aún, una mirada desde el corazón de los pobres, nos permite descubrir una serie de valores que ponen a las personas en el centro de interés: la acogida, la gratuidad, la fiesta, entre otros valores, nos hacen descubrir que en el mundo de pobres cuentan primero las personas.» [Horacio Arango, sj]


Apetece perguntar: a ajuda aos pobres por parte da Igreja católica em Portugal realiza, dentro dela, o "encontro vital" com os pobres e a sua (da Igreja) "experiência de pobreza"?

O enriquecimento espiritual e as consequências revolucionárias (no sentido social e político da expressão) por parte do texto do padre Federico, escrito por quem viveu no meio dos pobres de vários continentes décadas a fio, é uma ajuda preciosa a muita “boa vontade cristã” pouco inteligente e ineficaz, que, por vezes, não faz mais do que curar feridas cancerosas com mercurocromo e pensos rápidos… É urgente lê-lo. Lê-lo não, mastigá-lo e regressar sempre a ele, tal como fazemos com o evangelho de Jesus, Jesus o pobre de Nazaré, que, precisamente por ser pobre, era o «Irmãozinho Universal», o Salvador universal, na feliz expressão de Charles de Foucauld.






Como é que Jesus viveu a sua condição de pobre?
Qual a atitude de Jesus diante do pobre?




Elementos de Antropologia Evangélica

Até aqui analisamos o seguinte: [o que é a Antropologia do pobre]; o que é ser pobre; em que consiste o mundo do pobre; em que consiste a desestruturação de que o pobre sofre; e em que consiste o compromisso com o pobre.

Agora, trata-se de fazer uma leitura bíblica de tudo isso: ou seja, a partir da prática de Jesus, que se deve pensar de tudo isso? Iremos procurar aproximar-nos da maneira como Jesus viveu a sua ‘existência pobre’ e como reagiu diante do pobre. Este tema é muito amplo e dispomos de igualmente ampla bibliografia. Mas, neste texto, não pretendemos mais do que fornecer alguns elementos de Antropologia Evangélica, os quais nos permitam ler, a partir da fé, a existência do pobre, tal como a analisamos nos capítulos anteriores. Sendo assim, primeiramente, veremos como é que Jesus viveu a sua condição de pobre e como é que se situou diante do pobre. Depois, em que consiste a originalidade de Jesus, quanto a esta questão.


1.   Como é que Jesus viveu a sua condição de pobre

1.a Significado humano da pobreza em Jesus

Que significou, para Jesus, a existência pobre? Antes de mais nada, há que constatar que Jesus levou uma vida pobre e viveu entre pobres. Tal facto não pode ser ocultado e possui um significado antropológico: para Jesus, a pobreza foi a forma que escolheu para viver a sua existência humana, e, como homem, tal facto exprime uma certa maneira de ser e de actuar. Jesus viveu como homem à maneira do pobre. Por isso, a existência pobre, em Jesus, tem, não apenas, um sentido espiritual (este aspecto era enfatizado e talvez demasiado sublinhado, sobretudo na América Latina, antes da Conferência de Medellín,): enfatizava-se que Jesus fora pobre por uma questão de humildade pessoal, que se fez pobre “para nos dar o exemplo”, que Jesus se fez pobre tal como se faz pobre um rico quando se veste de roupas pobres. Assim considerada, a existência pobre de Jesus não tem qualquer significado nem questiona minimamente o estilo de vida das pessoas. Nem sequer chega a ter um significado sociológico, como chega a ter a seguinte afirmação: “sofreu a condição sociológico do pobre”.

A seguir ao concílio ecuménico Vaticano II, sobretudo na América Latina, insistiu-se na dimensão sociológica da pobreza de Jesus: que Jesus se fizera como os pobres; que pertencia à classe social dos pobres. Passou-se, então, duma concepção puramente espiritualista a uma concepção sociológica. Mas, a verdade é que a existência de Jesus tem, antes de mais nada, um significado antropológico: fazer-se pobre foi a sua maneira de assumir a condição humana.

Separando as duas concepções a espiritual e a sociológica fica-se com uma leitura rafada e parcializada da Encarnação. Aquilo que recupera a dimensão total da Encarnação é a dimensão antropológica, na medida em que complementa a dimensão espiritual e a sociológica.

Em Jesus, a pobreza tem três dimensões:

- para Jesus, ser pobre é uma maneira de ser homem (dimensão antropológica),
- o qual exprime humildade (dimensão espiritual),
- a qual se concretiza num estilo de vida à maneira dos pobres (dimensão sociológica).

Ampliemos esta maneira de ver a pobreza de Jesus, porque ela é essencial, não apenas para compreender a existência pobre de Jesus, como para descobrir o seu significado para o ser humano.

Estas três dimensões aparecem na Carta aos Filipenses 2:5 e seguintes: «Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não insistiu em ser igual a Deus; mas, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz». «Rebaixou-se a si mesmo» - eis a dimensão espiritual. «Tomando a condição de servo» - dimensão antropológica: ainda por cima, fez-se homem pobre. «Obediente até à morte e morte de cruz» - concretizando a condição humana de pobre, assumiu a condição dos mais pobres de entre os pobres: dimensão sociológica.

Para respeitar o sentido total da existência de Jesus é preciso ter em conta estas três dimensões e recuperar, sobretudo, a dimensão antropológica, porque, se se leva apenas em conta a dimensão espiritual ou a dimensão sociológica, está-se a falsear o sentido real da existência de Jesus e o respectivo valor para a compreensão da existência humana, bem como a orientação do tipo de compromisso com o pobre.

Vejamos isto mais em concreto, pois são perigos concretos em que já se caiu e que em alguns sítios ainda se mantêm.

Insistir no facto da pobreza de Jesus ser apenas, ou primordialmente, sinal de humildade, dissolve ou desvirtua o sentido da Encarnação. Isto é frequentemente comum numa certa orientação teológica latino-americana, a qual, no fundo, pretende retirar força e radicalidade à opção pelos pobres. Já se disse e ainda se escreve: “que a opção de Deus não foi pelo pobre, mas pelo homem”. Tal afirmação desvirtua a Encarnação, já que o Homem não existe em abstracto: o que existe é este homem concreto, e a determinante primeira do homem concreto é a sua condição material, o medo em que vive mergulhado. Este homem, concreto, existe como pobre ou como rico. Quando dizemos que a opção de Jesus é pelo homem pairamos no abstracto e dissolvemos o escândalo da Encarnação. Um Deus que se veste de pobre não é um escândalo: é como cobrirmo-nos duma vestimenta que não nos pertence. Escândalo não é um rico vestir-se pobremente. O que é incompreensível é que o Deus menino tenha que por-se em fuga diante dum tirano que o quer matar e tenha que ser levado ao colo. Que tal figurinha seja um Deus, isso, sim, é um escândalo: para a razão humana é algo insólito. A pergunta é: que raio de Deus é esse que não tem poder nem sabe defender-se?

Portanto, se nos ficarmos apenas pelo meramente espiritual, anula-se o escândalo e o verdadeiro sentido da Encarnação. Porém, se se diz que, antes de mais nada, Deus se fez um da classe pobre (no sentido sociológico), ou seja, que viveu à maneira dos pobres, estamos a retirar sentido universal à existência de Jesus, na medida em que nem todos podem pertencer à classe pobre. A significação humana de Jesus destina-se ao mundo inteiro, mas nem todo o mundo pode pertencer a um grupo social determinado.

Que Jesus tenha nascido pobre, isso não é circunstancial nem acidental, mas que tenha nascido num casebre, no meio dos animais, numa gruta, isso não é acidental. Que Jesus nasceu numa estrebaria isso é casual (factual), mas nascer pobre não é casual: nascer pobre tem significado humano. Portanto, Jesus pobre é a sua maneira de ser e de fazer-se homem. Essa foi a maneira que teve de assumir a existência humana; assim, constitui uma proposta para todos os homens. Por outras palavras, Deus decidiu que o seu Filho se fizesse homem e, por isso, teve que escolher um estilo de vida: escolheu a existência pobre. Jesus, na sua maneira de ser homem, foi pobre: eis a oferta de vida com que quer presentear todo o mundo. A vida pobre de Jesus é um chamamento dirigido a todo o mundo e não apenas aos religiosos. O religioso é aquele que radicaliza essa maneira humana que Jesus teve de viver. Portanto, os votos têm um significado humano[1]. Que significa fazer voto de pobreza? Significa optar por uma maneira de viver que seja a que Jesus levou. No entanto, a oferta de vida pobre que Jesus faz é oferta para todos os homens. Por isso, o cristão é o que assume, na sua vida, a maneira de Jesus.

Finalmente, é necessário fazer uma afirmação fundamental: o valor último e o significado definitivo dessa existência humana de Jesus vem dum dado da fé: para o cristão, Jesus é Deus – é o Filho de Deus – é a imagem do Deus invisível, primogénito de toda a criatura em quem Deus quis que habitasse toda a Plenitude. Por isso, em tudo o que comentemos acerca da existência pobre de Jesus, é preciso ter presente que essa existência pobre é a existência humana de Deus, é a maneira e o lugar a partir do qual Deus quis revelar-se e mostrar-se aos homens. Eis, portanto, o valor daquilo que vamos dizer acerca da pobreza de Jesus e, portanto, da pobreza do pobre.


1.b Jesus optou por levar uma vida pobre

A vida pobre de Jesus é o resultado de uma opção, é pura gratuitidade. Jesus foi pobre porque quis. É o que está escrito na Segunda Carta aos Coríntios (8:9): «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza». Jesus é a única pessoa que pode escolher o seu estilo de vida: nós, sem querer, nascemos determinados (…)

Federico Carrasquilla M

[15 pp.]

[«Escuchemos a los Pobres – Aportes para una Antropolgía del Pobre», 79 pp.]





[1] Leonardo Boff, «Vida segundo o Espírito», VOZES, 1983, p.64. [Nota do tradutor]