Mística e Política:
Contemplativo na
Libertação
(…) A experiência da fé viva e
verdadeira constrói a unidade oração-libertação. Porém, é preciso entender
correctamente o que é a experiência da fé. Como temos dito muitas vezes, a fé, em primeiro lugar, é uma forma de viver todas as coisas à luz de Deus.
A fé define o de onde e o para onde da nossa existência, e isso é Deus
e o seu desígnio de amor comunicado e realizado em todas as coisas. Para o
homem de fé, a realidade é,
originalmente, não profana ou sagrada, mas simplesmente
sacramental: revela Deus, evoca Deus, vem embebida da divina
realidade.
Por isso, a experiência de fé unifica a vida, na medida em que contempla
a realidade unificada por Deus, Deus como origem e destino de tudo.
Como forma de vida, a fé viva
implica a postura contemplativa do mundo: vê e encontra as pegadas de Deus por
todo o lado. Mas não basta que a fé seja viva: importa que seja verdadeira. A
fé só é verdadeira quando se transforma em amor, em verdade e em justiça. A Deus agradam-lhe não apenas os que O aceitam,
mas os que constroem o Seu Reino, que é Reino de verdade, Reino de amor e Reino
de justiça. Só essa fé comprometida é fé salvífica, e por isso verdadeira. «A
fé sem obras é inútil» (Tg 2:21). «Uma fé pura, mas
sem obras, também a têm os demónios» (Tg 2:20).
A fé cristã sabe que Cristo tem uma densidade sacramental especial nos pobres. Eles
não têm apenas necessidades que devem ser socorridas; possuem uma riqueza única
e própria: são portadores privilegiados do
Senhor, destinatários primeiros do Reino, com um potencial evangelizador de todos os homens e da Igreja (Puebla
1147). O crente não tem apenas uma visão sócio-analítica do pobre,
identificando a sua paixão e as causas que geram os mecanismos do seu
empobrecimento. Supondo tudo isto, o crente olha a classe dos empobrecidos com
os olhos da fé e descobre, neles, o rosto sofredor do Servo de Yahvé. E esse
olhar não se detém no contemplar, como que «usando»
o pobre [«servindo-se» do pobre] para se unir ao Senhor.
Cristo encontra-se identificado com
os pobres e quer ser aí servido e acolhido: «Eu estava com fome…» (Mt
25:35). Alguém está deveras com o Senhor nos pobres quando se compromete a
lutar contra a pobreza que humilha o homem e contra tudo o que vai contra a
vontade de Deus, tudo o que é fruto de relações de pecado e de exploração. A
mesma fé verdadeira implica e exige um compromisso
libertador: «… e deste-me de comer»
(Mt 25:35). Se não empreende uma acção libertadora, não somente não ama o
irmão, como também não ama a Deus (1Jo 3:17). O Amor não pode ser apenas «com
palavras e de boca, mas com obras e de verdade» (1Jo 3:18).
Esta experiência espiritual confere
unidade à relação fé-vida, mística-política. O problema que se coloca aqui é: como manter esta unidade? Como alimentá-la diante
de tantas forças de desagregação? Esta visão, contemplativa e ao mesmo tempo
libertadora, não emerge espontaneamente: é a expressão mais significativa da fé
viva e verdadeira. Porém, como dar consistência
a esta fé?
Aqui emergem os dois pólos: a oração
e a prática.
Sem dúvida, a questão não é ficarmos
na polarização ou na justaposição. Cairíamos assim, de novo, em algum daqueles «monofisismos» que já criticamos. Impõe-se articular
dialecticamente os dois pólos. É necessário considerá-los como dois espaços abertos um ao outro, que se implicam
mutuamente. Deve-se, porém, privilegiar um dos pólos da relação: o da
oração.
(…)
Frei Leonardo Boff, ofm
[9
pp.]