E se
Deus não fosse perfeito?
─ por uma espiritualidade simpática
1. Diz-me com que Deus
andas e dir-te-ei como rezas e vives
«Põe-te numa posição cómoda. Relaxa-te. Esvazia a tua mente. Desliga as
tensões e, lentamente, enche-te de paz interior. Deixa-te inundar da paz de
Deus. Sente-te acolhido por Deus, descansa no Seu colo…».
Frequentemente, os métodos de
oração, que enchem as prateleiras das livrarias religiosas, limitam-se ao
ensino de técnicas
corporais e psicológicas de pacificação e de unificação interiores,
evitando a mais pequena reflexão teológica sobre o Absoluto, a quem se dirige
dita oração.
Por trás desta redução da
espiritualidade a um mero problema “técnico” está a convicção de que os que
oram dentro da mesma tradição religiosa partilham uma única compreensão de
Deus: acaso não o nomeiam, todos, do mesmo modo?
A intuição que anima estas linhas
parte da suspeita de que, ainda que coincidamos no mesmo vocabulário quando nos
referimos à divindade, pode acontecer
que no sótão das nossas crenças mais profundas estejamos a nomear e a adorar
deuses diferentes. Este interrogar a qualidade da nossa linguagem
teológica não passaria duma questão supérflua se não estivéssemos convencidos
de que uma errada compreensão de Deus n’Aquele em quem cremos tem consequências
desastrosas, não apenas para o nosso modo de orar, mas também para a nossa
maneira de viver e, em última análise, para o nosso compromisso cristão com a
sorte ou com o infortúnio dos mais desfavorecidos: diz-me com que Deus andas…
Os métodos de oração não são neutros: todos pressupõem uma
pré-compreensão da divindade. Pior: não raro, o deus a que se reza corresponde
a uma projecção inconsciente do próprio modo de orar. Por exemplo, os sistemas
de inspiração oriental não apenas nos oferecem valiosas técnicas de relaxamento
profundo, de silêncio do coração, de harmonia, de desprendimento face à
realidade, etc., mas também toda uma cosmovisão
religiosa que inclui a afirmação de um Deus desligado da realidade,
garante da harmonia, silencioso e situado para lá de qualquer sensibilidade.
Não pomos em questão os benefícios
com que a
sabedoria oriental enriquece a nossa stressada cultura nem a sua
inegável revalorização dos aspectos passivos e receptivos da experiência
espiritual, os quais, ainda que presentes nas nossas grandes escolas místicas,
foram sepultados sob o gelo de uma religião excessivamente doutrinal e
moralista. Pois bem, admitindo todos estes aspectos positivos, devemos perguntar-nos
pelo «rosto do deus oriental» para que não caiamos em espiritualidades perversas que
podem consagrar, para sempre, estruturas sociais injustas. Nada temos contra a
procura da harmonia interior como meio para nos relacionarmos com um Absoluto “harmonioso”:
a espiritualidade cristã admite, sem problemas de maior, a “harmonia” como um
atributo de Deus. No entanto, quando, nas culturas como a hindu, essa harmonia
cósmico-social pressupõe a imutabilidade, quer da ordem natural, quer da ordem
social, então, ela pode acabar por legitimar o sanguinário sistema de castas
como se fosse a concretização terrena da harmonia divina. É em situações como
esta que a reflexão teológica, como “discurso sobre Deus”, adquire a sua
verdadeira dimensão.
A teologia ─ num mundo onde são cada vez mais os
homens e as mulheres que se preocupam em alimentar a dimensão espiritual das
suas vidas ─ não é um
jogo especulativo para espíritos ociosos, mas uma responsabilidade exigida por milhões de
“intocáveis”, os quais, por todo o planeta, se interrogam por que é que a sua sorte de deserdados parece não
sofrer mudança alguma, apesar de tanto exercício de espiritualidade.
Só perguntando-nos pelos fundamentos
teológicos da nossa espiritualidade é que poderemos evitar os
perigos de místicas desencarnadas que alienam as pessoas e as introduzem em
paraísos de papel, que convertem as nossas orações numa ofensa àqueles irmãos
para quem sobreviver dia após dia constitui a sua maior aventura.
2. Sede perfeitos como
Deus é perfeito?
O evangelista Mateus di-lo
claramente: «Sede
perfeitos como o vosso Pai do céu é perfeito» (Mt 5:48). Nesta frase
condensa-se a meta de qualquer espiritualidade que não busca mais nada que não
seja tornar-nos íntimos do Absoluto a quem oramos.
Porém, em que consiste a Perfeição divina?
E porquê o nosso empenho em questionar tal perfeição? Vamos por partes.
Ao
rodear o imperativo mateano […]
José Laguna, músico e
teólogo
CiJ
– Barcelona
[25 pp.]